Книга - Arena Um: Traficantes De Escravos

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Arena Um: Traficantes De Escravos
Morgan Rice


Trilogia Da Sobrevivência #1
O bestseller número 1! Nova Iorque. 2120. Os americanos foram dizimados, eliminados pela Guerra Civil. Neste mundo pós-apocalíptico, sobreviventes são poucos e raros. E a maioria daqueles se sobreviveram viraram membros de gangues violentas, predadores que vivem nas grandes cidades. Eles patrulham o campo em busca de escravos, novas vítimas para levarem às cidades para seu esporte favorito: Arena Um. O estádio da morte, onde os oponentes devem lutar até morrerem, das maneiras mais bárbaras possíveis. Há apenas uma regra nesse jogo: ninguém sobrevive. Nunca. Em meio à natureza, no alto das Montanhas Catskill, Brooke, de 17 anos, luta para sobreviver, escondendo-se com sua irmã mais nova, Bree. Elas tomam cuidado para evitar as gangues de comerciantes de escravos que patrulham o interior. Mas, um dia, Brooke comete um descuido e Bree acaba sendo capturada. Os comerciantes de escravos a levam embora, em direção à cidade, e em direção ao que com certeza resultará em morte. Brooke, filha de um fuzileiro da Marinha, foi criada para ser forte, para nunca desistir em uma luta. Quando sua irmã é raptada, Brooke não perde tempo, vai atrás dela, usa tudo ao seu dispor para perseguir os comerciantes de escravos e pegar sua irmã de volta. E, durante o caminho, ela conhece Ben, 17, outro sobrevivente como ela, cujo irmão também foi sequestrado. Juntos, eles se aventuram em uma missão de resgate.





Morgan Rice

ARENA UM TRAFICANTES DE ESCRAVOS LIVRO I DA TRILOGIA DA SOBREVIVÊNCIA




Sobre Morgan Rice

Morgan Rice é a autora do best-seller #1 DIÁRIOS DE VAMPIROS, uma série destinada a jovens adultos composta por onze livros (mais em progresso); da série de Best-seller #1 – TRILOGIA DE SOBREVIVÊNCIA, um thriller pós-apocalíptico que compreende dois livros (outro será adicionado); a série número um de vendas, O ANEL DO FEITICEIRO, composta por treze livros de fantasia épica (outros serão acrescentados).



Os livros de Morgan estão disponíveis em áudio e página impressa e suas traduções estão disponíveis em: alemão, francês, italiano, espanhol, português, japonês, chinês, sueco, holandês, turco, húngaro, checo e eslovaco (em breve estarão disponíveis em mais idiomas).



Morgan apreciará muitíssimo seus comentários, por favor, fique à vontade para visitar www.morganricebooks.com (http://www.morganricebooks.com/) faça parte de nosso newsletter, receba um livro gratuito, ganhe brindes, baixe nosso aplicativo gratuito, obtenha as novidades exclusivas em primeira mão, conecte-se ao Facebook e Twitter, permaneça em contato!



Elogios selecionados para Morgan Rice

"Eu vou admitir, antes de ARENA UM, eu nunca havia lido alguma coisa pós-apocalíptica antes. Eu nunca imaginei que seria algo que fosse me agradar… Porém, fiquei positivamente surpresa de como este livro é viciante. ARENA UM é um desses livros que você lê noite adentro até seus olhos ficarem cansados porque você não quer parar… Não é nenhum segredo que eu adoro heroínas fortes nos livros que leio… Brooke é valente, destemida, implacável e, apesar de haver romance no livro, Brooke não se deixa levar por isso… Eu recomendo muito ARENA UM.”

–-Dallas Examiner



“Rice faz um ótimo trabalho de trazer o leitor para dentro da história desde o início, usando uma incrível qualidade descritiva que transcende a mera pintura do cenário… Bem escrito e extremamente rápido de ler.”

–-Black Lagoon Reviews (sobre Transformada)



“Um história ideal para jovens leitores. Morgan Rice fez um ótimo trabalho tramando uma inesperada reviravolta… Inovador e único. A série acontece em torno de uma garota… uma incrível garota!… Fácil de ler mas de ritmo extremamente acelerado. Apropriado para maiores de 12 anos.”

–-The Romance Reviews (sobre Transformada)



“Prendeu minha atenção desde o início e não deixou mais escapar… Esta história é uma aventura incrível, de ritmo intenso e cheia de ação desde o início. Não há um momento entediante sequer.”

–-Paranormal Romance Guild  (sobre Transformada)



“Cheio de ação, romance, aventura e suspense. Ponha as suas mãos nesse e se apaixone mais uma vez.”

–-vampirebooksite.com (sobre Transformada)



“Uma trama incrível e é especialmente o tipo de livro difícil de parar de ler à noite. O suspense do final é tão espetacular que imediatamente você vai querer comprar o livro seguinte, só para ver o que acontece.”

–-The Dallas Examiner {sobre Loved}



“TRANSFORMADA é um livro que pode competir com CREPÚSCULO e DIÁRIOS DO VAMPIRO, e fará com que você queira continuar lendo até a última página! Se você gosta de aventura, amor e vampiros, este é o livro para você!”

–-Vampirebooksite.com (sobre Transformada)



“Morgan Rice prova mais uma vez que é uma talentosa contadora de histórias… Agradará uma grande variedade de público, incluindo jovens fãs do gênero vampiro/fantasia. Termina em um surpreendente suspense que o deixará impressionado.”

–-The Romance Reviews (sobre  Amada)



“O ANEL DO FEITICEIRO reúne todos os ingredientes para um sucesso instantâneo: tramas, intrigas, mistério, bravos cavaleiros e florescentes relacionamentos repletos de corações partidos, decepções e traições. O livro manterá o leitor entretido por horas e agradará a pessoas de todas as idades. Recomendado para fazer parte da biblioteca permanente de todos os leitores do gênero de fantasia.”

–-Books and Movie Reviews, Roberto Mattos



Livros de Morgan Rice




O ANEL DO FEITICEIRO


EM BUSCA DE HERÓIS (Livro #1)


UMA MARCHA DE REIS (Livro #2)


UM DESTINO DE DRAGÕES (Livro #3)


UM GRITO DE HONRA (Livro #4)


UM VOTO DE GLÓRIA (Livro #5)


UMA CARGA DE VALOR (Livro #6)


UM RITO DE ESPADAS (Livro #7)


UM ESCUDO DE ARMAS (Livro #8)


UM CÉU DE FEITIÇOS (Livro #9)


UM MAR DE ESCUDOS (Livro #10)


UM REINADO DE AÇO (Livro #11)


UMA TERRA DE FOGO (Livro #12)


UM GOVERNO DE RAINHAS (Livro #13)




TRILOGIA DE SOBREVIVÊNCIA


ARENA UM: TRAFICANTES DE ESCRAVOS (Livro #1)


ARENA DOIS (Livro #2)




DIÁRIOS DE UM VAMPIRO


TRANSFORMADA (Livro #1)


AMADA (Livro #2)


TRAÍDA (Livro #3)


DESTINADA (Livro #4)


DESEJADA (Livro #5)


PROMETIDA EM CASAMENTO (Livro #6)


JURADA (Livro #7)


ENCONTRADA (Livro #8)


RESSUSCITADA (Livro #9)


SUPLICADA (Livro #10)


DESTINADA (Livro #11)












Ouça (https://itunes.apple.com/br/artist/morgan-rice/id417552527?mt=11&uo=4) a TRILOGIA DA SOBREVIVÊNCIA no formato de audio book!




Disponível em:




Amazon (http://www.amazon.com/Arena-One-Slaverunners-Survival-Trilogy/dp/B00BPBX2E4/ref=tmm_aud_title_0?ie=UTF8&qid=1402588021&sr=1-1)


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Direitos reservados© 2012 por Morgan Rice



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Este é um trabalho fictício. Nomes, personagens, empresas, organizações, locais e incidentes são frutos da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, é mera coincidência.


“Se eu tivesse morrido uma hora, apenas, antes de isso se dar,
Teria tido uma vida abençoada; Doravante,
Nada mais há de sério no universo.”

    --Shakespeare, Macbeth






I





UM


Hoje o clima está menos tolerante que nos outros dias. O vento açoita impiedosamente, derrubando a neve acumulada no pesado pinheiro diretamente em meu rosto, enquanto caminho montanha acima. Meus pés, enfiados em botas para alpinismo muito pequenas para mim, desaparecem nos quinze centímetros de neve. Eu escorrego e deslizo, lutando para manter meu equilíbrio. O vento vem em rajadas tão gélidas, que me tiram o fôlego. Sinto-me como se estivesse andando em um globo de neve real.

Bree me diz que é dezembro. Ela gosta de contar os dias que faltam para o Natal, riscando-os um por um em um calendário velho que encontrou. Ela o faz com tamanho entusiasmo que não me atrevo a contá-la que estamos bem longe de dezembro. Não vou contar que este calendário é de três anos atrás nem que não teremos um novo, já que não fabricam mais desde o dia em que o mundo acabou. Não vou acabar com sua fantasia. É para isso que servem as irmãs mais velhas.

De qualquer maneira, Bree se apega muito às suas crenças, e ela sempre acreditou que neve significa dezembro então, mesmo se eu dissesse, duvido que ela mude de ideia. É como se fosse uma criança de dez anos.

O que Bree se recusa a aceitar é que o inverno chega rápido aqui em cima. Estamos no alto das montanhas Catskills e, aqui, o tempo passa diferente, a passagem das estações é diferente. Aqui, a três horas ao norte de onde um dia fora a cidade de  Nova Iorque, as folhas caem no fim de agosto, espalhando-se pelas cadeias montanhosas que se estendem até onde a vista pode alcançar.

Nosso calendário esteve atualizado uma vez. Quando tínhamos acabado de chegar, três anos atrás, eu me lembro de ver a primeira neve cair e verificar o mês, incrédula. Eu não entendia porque na página estava escrito outubro. Supus que a neve havia caído mais cedo que o usual. Mas logo entendi que não era isso. Estas montanhas são altas o suficiente, frias o suficiente, para que o inverno tome o lugar do outono.

Se Bree virasse o calendário para trás, ela veria bem ali, o ano que já passou, em letras grandes e feias: 2117. Obviamente, três anos atrás. Penso que ela está absorta demais em seu entusiasmo para prestar atenção a isso. É o que eu espero. Mas, ultimamente, uma parte de mim tem começado a suspeitar que, na verdade, ela sabe, mas que prefere apenas se perder em sua fantasia. Eu não a culpo.

É claro, nós não temos um calendário utilizável há anos. Nem celular, computador, TV, rádio, internet, nenhuma tecnologia de qualquer tipo – sem mencionar eletricidade, ou água corrente. Mesmo assim, de alguma forma, nós temos conseguido sobreviver, apenas nós duas, por três anos, dessa maneira. Os verões sempre foram suportáveis, com poucos dias de fome. Pelo menos podemos pescar e os riachos da montanha parecem sempre carregar salmões. Há também frutinhas e ainda alguns pomares de maçãs e peras selvagens que ainda, depois desse tempo todo, dão frutos.  De vez em quando, nós até conseguimos pegar um coelho.

Mas os invernos são intoleráveis. Tudo está congelado ou morto e todo ano eu tenho certeza de que não aguentaremos. E este tem sido o pior inverno de todos. Eu continuo dizendo a mim mesma que as coisas irão melhorar; mas estamos há dias sem uma refeição decente e o inverno apenas começou. Nós duas estamos fracas pela fome e Bree, ainda por cima, está doente. Não é um bom presságio para o futuro.

Enquanto eu subo penosamente a montanha, refazendo os mesmos passos desafortunados de ontem, procurando por nossa próxima refeição, começo a sentir que nossa sorte se esgotou. Apenas o pensamento de que Bree está deitada, me esperando em casa, é que me faz seguir em frente. Paro de sentir pena de mim mesma e, ao invés disso, mantenho rosto dela em minha mente. Sei que não posso encontrar medicamentos, mas espero que seja apenas uma febre passageira e que uma boa comida e um pouco de calor sejam tudo que ela precisa.

Eu sei que o que ela realmente precisa é fogo. Mas eu não acendo mais a nossa lareira; não posso arriscar que a fumaça e o cheiro denunciem nossa localização a um comerciante de escravos. Porém, hoje eu irei surpreendê-la, por pouco tempo, vou correr esse risco. Bree adora fogueiras, e isso vai levantar seu ânimo. E, se pelo menos eu pudesse encontrar algum alimento para complementar  – mesmo algo pequeno como um coelho – isso completaria sua recuperação. Não apenas fisicamente. Eu notei que ela começou a perder as esperanças nesses últimos dias – posso ver em seus olhos – e eu preciso que ela seja forte. Recuso-me a ficar parada e vê-la partir, como aconteceu com mamãe.

Uma nova rajada de vento bate em meu rosto, de uma forma tão longa e cruel que eu preciso abaixar minha cabeça até que ela passe. O vento ruge em meus ouvidos e eu faria qualquer coisa por um bom casaco de inverno. Visto apenas um agasalho gasto, encontrado há muitos anos ao lado da estrada. Acho que pertencia a um menino, o que é bom, porque as mangas são longas o suficiente para cobrir minhas mãos e são quase o dobro do tamanho de luvas. Meço 1,70m , não sou exatamente baixa, então, quem utilizou isso deve ter sido alto. Às vezes me pergunto se ele se importaria de eu estar utilizando sua roupa. Mas então me dou conta que provavelmente ele está morto. Assim como todos os outros.

Minhas calças não são muito melhores: ainda uso os mesmos jeans, me dá vergonha quando percebo que continuo utilizando os mesmos desde que escapamos da cidade, anos atrás. Se há uma coisa que me arrependo é ter saído tão apressadamente. Suponho que eu tenha achado que encontraria algumas roupas por aqui, que talvez alguma loja ainda estivesse aberta em algum lugar ou quem sabe até o Exército da Salvação. Isso foi idiotice minha: afinal, todas as lojas de roupas foram saqueadas há muito tempo. Foi como se o mundo, da noite para o dia, tivesse ido da abundância à escassez. Eu consegui pegar algumas peças de roupa espalhadas nas gavetas da casa de papai. Essas, eu as dei para Bree. Estava feliz que pelo menos algumas de suas roupas, como suas vestimentas térmicas e meias, iriam mantê-la aquecida.

O vento finalmente para, então eu levanto minha cabeça e me apresso a subir antes que ele retorne, me forço a dobrar minha velocidade até alcançar o platô.

Eu chego ao topo, respiração ofegante, as pernas queimando, e olho ao redor, devagar. As árvores são mais escassas aqui em cima e, ao longe, há um pequeno lago montanhês. Está congelado, como todos os outros; e o sol brilha tão intensamente que meus olhos ficam semicerrados.

Olho imediatamente para a minha vara de pescar, a que eu deixei encaixada entre duas pedras no dia anterior. Ela se projeta sobre o lago, uma longa linha liga a ponta da vara até um pequeno buraco no gelo. Se a vara encurvar, significa que eu e Bree teremos janta hoje à noite. Se não, eu saberei que não funcionou – novamente. Eu me aproximo com pressa, passando entre algumas árvores, através da neve, e dou uma boa olhada.

Está reta. É claro.

Meu coração aperta. Penso em caminhar sobre o gelo e usar minha machadinha para abrir mais um buraco. Mas eu já sei que isso não fará diferença alguma. O problema não é a posição – o problema é o lago. O chão está congelado demais para que eu possa cavar e procurar minhocas e eu nem sei onde encontrá-las. Não sou caçadora por natureza nem sei fazer armadilhas. Se eu soubesse que eu acabaria aqui, eu teria dedicado minha infância inteira à Educação ao Ar Livre e a aprender técnicas de sobrevivência. Mas agora me sinto inútil em quase tudo. Não sei montar armadilhas e raramente minhas linhas de pesca pegam algo.

Sendo a filha de meu pai, filha de um fuzileiro da Marinha, a única coisa em que eu sou boa –  lutar – não serve para nada aqui. Se sou inútil no reino animal, pelo menos posso me defender daqueles seres de duas pernas. Desde cedo, querendo ou não, meu pai insistiu que eu fosse sua filha – a filha de fuzileiro da Marinha e eu fosse orgulhosa disso. Ele queria que eu fosse o filho que ele nunca teve. Inscreveu-me em aulas de boxe, de luta livre, artes marciais mistas… Tive infinitas lições de como usar uma faca, como atirar uma arma, como achar pontos fracos, como lutar sujo. E, mais que tudo, ele insistiu que eu fosse valente, que nunca mostrasse medo, nem chorasse.

Ironicamente, nunca tive a chance de usar nenhuma das coisas que ele me ensinou, e isso não podia ser mais inútil aqui; não há ninguém à vista. O que eu realmente preciso saber é como achar comida – não como chutar alguém. E, se  por ventura, encontrasse outra pessoa, eu não iria lhe dar um chute, eu pediria ajuda.

Eu penso com esforço e me lembro de que há outro lago por aqui, em algum lugar, um menor; eu o vi uma vez, em um verão quando eu me aventurei e subi ainda mais a montanha. Fica a uns 400 metros de subida íngreme, eu não tentei mais ir lá desde então.

Eu olho para cima e suspiro. O sol já está se pondo, um pôr-do-sol sombrio de inverno aparece em tonalidades avermelhadas; eu já me sinto fraca, cansada e congelada. Preciso de mais energia do que tenho só para descer a montanha. A última coisa que eu quero é subir ainda mais. Mas uma voz baixinha dentro de mim apela para que eu continue escalando. Quanto mais tempo eu passo sozinha esses dias, mais forte é a voz de papai em minha cabeça. Ela me deixa ressentida e tento bloqueá-la, mas, não sei por que, não consigo.

Pare de reclamar e continue em frente, Moore!

Papai sempre gostou de me chamar pelo meu sobrenome. Moore. Isso me irritava, mas ele nunca se importou.

Se eu voltar agora, Bree não terá nada para comer à noite. O lago lá em cima é a minha melhor chance, nossa única fonte de comida. Eu também quero que Bree tenha uma fogueira, e toda a lenha aqui embaixo está encharcada. Lá no alto, onde os ventos são mais fortes, eu posso encontrar lenha seca o suficiente para acendê-la. Dou mais uma olhada montanha acima e decido seguir em frente. Abaixo minha cabeça e começo a escalar, levando minha vara comigo.

Cada passo é doloroso, sinto milhões de agulhas pulsando em minhas coxas, o ar gelado perfura meus pulmões. O vento me golpeia e a neve me castiga, como se houvesse uma lixa em meu rosto. Um pássaro grasna bem lá no alto, como se zombasse de mim. Bem quando eu sinto que não consigo dar mais nenhum outro passo, eu alcanço o platô seguinte.

Este aqui, tão alto, é diferente de todos os outros: é densamente carregado com pinheiros, dificultando visualizar mais de 3 metros à frente. O céu se oculta sob sua enorme copa e a neve está coberta de agulhas verdes. Os troncos gigantescos conseguem impedir a passagem do vento também. Sinto como se tivesse entrado em um pequeno reino privado, oculto ao resto do mundo.

Eu paro e me viro, apreciando a vista: é incrível. Eu sempre achei que tínhamos uma excelente vista da casa meu pai, no meio da montanha, mas aqui, no topo, é espetacular. Picos de montanha aparecem em todas as direções e, além deles, à distância, posso ver o rio Hudson, cintilando. Vejo também as estradas sinuosas que cortam a montanha, incrivelmente intacta. Provavelmente devido ao pequeno número de pessoas que vem até aqui. Eu, na verdade, nunca vi carros nem nenhum outro veículo. Apesar da neve, as ruas estão livres; as estradas íngremes e angulares se aquecem ao sol, sendo perfeitamente drenadas e, para minha surpresa, muito da neve já derreteu.

Sou então atingida por uma pontada de preocupação. Preferia quando as estradas estavam cobertas de gelo e neve, quando eram intransitáveis aos veículos, pois as únicas pessoas que hoje em dia tem carros e combustíveis são os comerciantes de escravos – caçadores de recompensas impiedosos que trabalham para abastecer a Arena Um. Eles patrulham todos os lugares, à procura de sobreviventes, para sequestrá-los e levá-los à arena, como escravos. E lá, me falaram, são obrigados a lutar até a morte para entretenimento da plateia.

Bree e eu temos tido sorte. Não vimos nenhum comerciante de escravos desde que chegamos aqui em cima – mas eu acho que é somente porque moramos no alto, em uma área remota. Apenas uma vez eu ouvi o gemido estridente do motor de um comerciante de escravos, ao longe, do outro lado do rio. Sei que eles estão lá embaixo, em algum lugar, patrulhando. E eu não quero correr nenhum risco – me asseguro de mantermos discrição: raramente queimamos lenha, a menos que seja necessário, e fico de olho em Bree o tempo todo. Na maior parte das vezes, eu a levo para caçar comigo – a teria levado hoje comigo, se não estivesse tão doente.

Eu me viro para o platô e fixo meus olhos no pequeno lago. Completamente congelado, brilhando sob a luz da tarde, parece uma joia perdida, escondida atrás de um bosque de árvores. Aproximo-me, dando alguns passos vacilantes no gelo para me certificar de que este não se quebrará. Quando percebo que é bem sólido, ando um pouco mais. Escolho um ponto, tiro a machadinha do meu cinto e atinjo o gelo, repetidas vezes. Uma rachadura aparece. Retiro minha faca, me ajoelho e golpeio com força bem no meio da rachadura. Enfio a ponta da faca ali e faço um pequeno buraco, de tamanho suficiente para retirar um peixe.

Corro de volta para a borda, escorregando e deslizando e então fixo a vara de pescar entre dois galhos, desenrolo a linha e corro de volta para mergulhá-la no buraco. Eu a tiro da água algumas vezes, com a esperança de que o brilho do metal do anzol atraia alguma criatura viva debaixo do gelo. Mas não consigo deixar de sentir que isso não passa de um esforço inútil, não consigo deixar de suspeitar que tudo que um dia já viveu nessas montanhas morreu há muito tempo.

É ainda mais frio aqui em cima e eu não consigo ficar parada, olhando a linha de pesca. Eu preciso continuar me mexendo. Viro-me e me afasto do lago, meu lado supersticioso me falando que talvez eu pegue um peixe se eu não ficar aqui, em pé, olhando. Ando em pequenos círculos em volta das árvores, esfregando minhas mãos para mantê-las aquecidas. Quase não faz efeito.

Então me lembro da madeira seca. Olho para o chão à procura de lenha, mas é uma tarefa inútil. O chão está coberto de neve. Olho para as árvores e vejo que os troncos e galhos também estão cobertos de neve. Mas, ali, ao fundo, detecto algumas árvores atingidas pelos ventos, sem neve. Dirijo-me em direção a elas e inspeciono a casca, deslizando meu dedo. Fico aliviada ao ver que alguns galhos estão secos. Tiro minha machadinha e corto um ramo dos grandes. Tudo que preciso é uma braçada de lenha, e esse galho é perfeito.

Eu o seguro quando ele cai, sem deixar que toque a neve, e então o apoio contra o tronco e o corto novamente na metade. Eu repito isso de novo e de novo até ter um pequeno estoque de lenha, o bastante para carregar em meus braços. Eu deixo essa pilha encostada em um galho, a salvo e sem ser molhada pela neve que está abaixo.

Eu olho em volta, inspecionando outros troncos e, quando olho mais de perto, algo atrai minha atenção. Aproximo-me de uma das árvores, observando-a atentamente e percebo que sua casca é diferente das outras. Eu olho para cima e percebo que não se trata de um pinheiro e sim de um bordo. Estou surpresa por ver um, aqui no alto, e ainda mais surpresa por reconhecê-lo. Na verdade, um bordo é provavelmente a única coisa na natureza que eu reconheceria. Sem eu querer, uma memória vem à tona.

Uma vez, quando eu era mais nova, meu pai colocou na cabeça que me levaria a uma excursão na natureza. Deus sabe o porquê, mas ele me levou para extrair a seiva dos bordos.  Dirigimos por horas em direção a algum lugar desolado no interior, eu, carregando um balde de metal e meu pai, um bocal, e então passamos mais algumas horas andando pela floresta com um guia, em busca dos bordos perfeitos. Eu me lembro do seu olhar de decepção quando extraímos seiva da primeira árvore e um líquido claro escorreu para dentro do nosso balde. Ele estava esperando que saísse xarope.

Nosso guia riu, dizendo a meu pai que árvores de bordo não produziam xarope – elas produziam seiva.  A seiva precisava ser fervida para virar xarope. Em um processo que demorava horas, ele falou. E era necessário cerca de 80 galões de seiva para fazer um quarto de galão de xarope.

Papai olhou para o balde que transbordava seiva e ficou vermelho, como se alguém lhe tivesse vendido gato por lebre. Ele era o homem mais orgulhoso que eu já conheci e, se havia algo que ele odiava mais do que se sentir bobo, era alguém zombando dele. Quando o guia riu, papai arremessou o balde nele, errando por pouco e então pegou minha mão e fomos embora.

Depois dessa, ele nunca mais me levou para passear na natureza de novo.

Mas eu não me importei – na verdade, eu tinha gostado do passeio, mesmo com meu pai enfurecido na viagem inteira de volta. Eu havia consegui pegar um pequeno copo de seiva antes de ele me levar embora e lembro-me de ter bebido um pouco no carro, na volta para casa, quando ele não estava olhando. Eu adorei. Tinha gosto de água com açúcar.

Estando aqui, parada, na frente desta árvore, eu a reconheço como se fosse uma irmã. Essa aqui é tão alta, fina e magricela que me deixaria surpresa se tivesse seiva. Mas eu não tenho nada a perder. Tiro minha faca e atinjo a árvore, de novo e de novo, no mesmo local. Então, enfio a faca no buraco, empurrando-a cada vez mais fundo, torcendo-a e girando-a. Eu realmente não espero que nada aconteça.

Fico surpresa quando uma gota de seiva sai. E ainda mais surpresa quando, momentos depois, a gota vira um pequeno fluxo. Estendo meu dedo, encosto no líquido e levo a minha boca. Sinto o açúcar e reconheço o gosto imediatamente. Exatamente como eu me lembrava. Nem consigo acreditar.

A seiva está saindo mais rápido agora e estou perdendo grande parte dela, que escorre pelo tronco. Procuro em volta desesperadamente por algo para armazená-la, algum tipo de balde – mas é claro que não há nenhum. E então me lembro de minha garrafa térmica. Tirei minha garrafa da minha cintura e a esvaziei, derramando toda a água. Posso conseguir água em qualquer lugar, especialmente com essa neve toda – mas esta seiva é preciosa. Seguro a garrafa vazia rente à árvore, desejando que eu pudesse ter um bocal de verdade. Deixo-a o mais perto possível do tronco e consigo colher uma boa parte da seiva. Ela escorre mais devagar do que eu gostaria, mas em poucos minutos, consigo encher metade da garrafa.

O fluxo da seiva parou. Espero por alguns segundos, me perguntando se ele recomeçaria, mas isso não acontece.

Olho a minha volta e reparo em outro bordo, a uns três metros de distância. Eu vou correndo até ele, levanto ansiosamente minha faca e o atinjo com força, dessa vez, me imagino enchendo a garrafa térmica com seiva, imagino a cara de surpresa de Bree quando ela provar. Pode não ser nutritivo, mas isso com certeza a deixará feliz.

Mas, desta vez, quando minha faca fere o tronco, há um ruído agudo pelo qual eu não esperava, seguido por um estalo da madeira. Eu olho para cima, vejo a árvore se envergando e percebo, tarde demais, que esta árvore, congelada e envolvida em neve, já está morta. O golpe de minha faca era tudo que ela precisava para inclinar em direção à borda do lago.

Um segundo depois, a árvore inteira, de pelo menos seis metros, cai, espatifando-se no chão. Isto provocou uma enorme nuvem de neve e agulhas de pinheiros. Abaixei-me, aflita que talvez tivesse alertado alguém sobre minha presença. Estou furiosa comigo mesma. Foi um descuido. Uma besteira. Eu deveria ter examinado a árvore antes.

Contudo, depois de alguns minutos, meu pulso volta ao normal, quando me dou conta de que não há ninguém aqui em cima. Volto a ser sensata, lembro-me que árvores caem sozinhas na floresta o tempo todo e essa queda não necessariamente denunciaria minha presença humana. E, quando passo o olhar sobre onde estava a árvore, algo atrai minha atenção. E me encontro observando, incrédula.

Ali, ao longe, escondendo-se por trás de um bosque de árvores, ao lado da montanha, há uma pequena casa de pedra. É uma estrutura pequena, um perfeito quadrado, com 4,5m de largura e profundidade e 3,5m de altura, com paredes feitas de antigos blocos de pedras. Uma pequena chaminé se levanta do telhado e há pequenas janelas nas paredes. A porta principal, de madeira e em forma de arco, está entreaberta.

Esta pequena casa está muito bem camuflada, se mistura perfeitamente com os arredores, tanto que eu, mesmo olhando para ela, mal consigo distingui-la. Seu telhado e paredes estão cobertos de neve e as pedras expostas se integram precisamente com a paisagem. A casa parece antiga, como se tivesse sido construída centenas de anos atrás. Não entendo o que ela está fazendo aqui, nem quem a teria construído ou por qual motivo. Talvez tenha sido feita para algum vigia de um parque estadual. Talvez tenha sido lar de algum eremita. Ou de um sobrevivente louco.

Parece que não tem sido habitada há anos. Analiso cuidadosamente o chão da floresta, à procura de pegadas ou rastros de animais, saindo ou entrando pela porta. Mas não há nada. Penso em quando a neve começou a cair, vários dias atrás e faço as contas em minha mente. Ninguém saiu ou entrou nessa casa há pelo menos três dias.

Meu coração acelera com a ideia do que pode haver dentro. Comida, roupas, medicamentos, armas, materiais – qualquer coisa seria um presente divino.

Movimento-me com cautela através da clareira, olhando por cima de meu ombro para ter certeza de que não há ninguém me observando. Movo-me rapidamente, deixando grandes pegadas visíveis na neve. Quando alcanço a porta da frente, olho para trás uma vez mais e fico parada por vários segundos, apenas ouvindo. Não há nenhum som a não ser o do vento e o de um rio próximo, que corre ao lado da casa. Alcanço minha machadinha e, com sua parte de trás, bato com força na porta. Um barulho alto ressoa, para dar a qualquer animal que possa estar escondido na casa, um aviso final.

Não há resposta.

Abro rapidamente a porta, empurrando a neve para trás e então entro na casa.

O interior é escuro, iluminado apenas pela última luz do dia, entrando através das pequenas janelas, preciso de um momento para que meus olhos se ajustem à penumbra. Eu aguardo, de pé, com as costas contra a porta, alerta caso algum animal esteja utilizando esse espaço como abrigo. Mas, após vários segundos, minha visão se ajusta à fraca luz e está claro que estou sozinha.

A primeira coisa que noto nessa pequena casa é o seu calor. Talvez por ser tão diminuta, com um teto baixo e construída com as pedras da montanha ou talvez por estar protegida do vento. Mesmo com as janelas completamente abertas à natureza e com a porta entreaberta, deve estar uns quinze graus mais quente aqui – muito mais quente do que a casa de meu pai, mesmo com a lareira acesa. Sua casa fora construída com poucos gastos, as paredes são finas e o revestimento é vinílico e fica no canto de uma colina onde parece estar na rota de todas as ventanias.

Mas este lugar é diferente. As paredes de pedras são grossas e bem construídas. Sinto-me cômoda e segura aqui. Só consigo pensar em como este lugar ficaria ainda mais quente se eu fechasse a porta, pregasse tábuas nas janelas e acendesse a lareira – que parece estar em boas condições.

O interior é formado por uma grande sala, aperto meus olhos na escuridão para analisar o chão, procurando por qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, que eu possa resgatar. Incrivelmente, parece que, desde a guerra, ninguém mais entrou nesse lugar. Todas as outras casas em que  entrei tinham as janelas quebradas, escombros espalhados por todos os cantos e certamente haviam saqueado qualquer objeto útil, até as fiações. Mas esta não. Está impecável, limpa e arrumada, como se seu proprietário tivesse acordado um dia e simplesmente ido embora. Pergunto-me se foi antes de a guerra começar. Ao julgar pelas teias de aranha no teto, e sua ótima localização, tão bem escondida entre as árvores, eu acredito que sim. Ninguém entra aqui há décadas.

Vejo o contorno de um objeto na parede do fundo e me dirijo a ele, mãos à frente, tateando no escuro. Quando encosto, percebo que é uma cômoda. Passo meus dedos pela sua superfície lisa de madeira, posso sentir o pó que a cobre. Deslizo meus dedos sobre pequenas maçanetas – as alças das gavetas. Eu as puxo delicadamente, abrindo uma de cada vez. Está muito escuro para enxergar, então toco cada gaveta com minhas mãos, explorando a superfície. Não há nada na primeira gaveta. Nem na segunda. Por fim, abro todas rapidamente, minhas esperanças desaparecendo – quando, de repente, na quinta gaveta, eu paro. Ali, no fundo, sinto alguma coisa. Devagar, eu a tiro aos poucos.

Seguro o objeto contra a luz e, a princípio, não sei dizer o que é; mas logo sinto a folha de alumínio delatora e percebo: é uma barra de chocolate. Há algumas mordidas nele, mas ainda encontra-se em sua embalagem original e bem preservado. Eu desembrulho um pouco e o aproximo de minhas narinas para sentir seu cheiro. Não consigo acreditar: é chocolate de verdade. Não comemos chocolate desde a guerra.

O cheiro me causa uma pontada de fome, preciso de toda minha força de vontade para não abri-lo e devorá-lo. Eu me obrigo a permanecer forte, cuidadosamente o reembrulho e o guardo no meu bolso. Vou esperar até estar com Bree para desfrutá-lo. Eu sorrio ao imaginar a expressão dela quando comer sua primeira mordida. Será impagável.

Reviso rapidamente as gavetas restantes com a esperança de encontrar qualquer tipo de tesouro. Mas todas as demais se encontram vazias. Regresso à sala e a percorro em sua largura e extensão ao longo das paredes, por todos os cantos, procurando qualquer coisa. Mas o lugar está deserto.

De repente, piso em algo macio. Ajoelho-me para pegá-lo e o seguro o contra a luz. Estou impressionada: um ursinho de pelúcia. Está gasto e lhe falta um olho, mas, mesmo assim, Bree adora ursinhos de pelúcia e sente falta do que ela deixou para trás. Ficará eufórica quando vir este aqui. Parece que é seu dia de sorte.

Eu o coloco em meu cinto e, quando me levanto, minha mão esbarra em algo fofo no chão. Eu o agarro e o levanto e fico encantada ao me dar conta que é um cachecol. É preto e está coberto de poeira, por isso que não o vi no escuro, e, ao colocá-lo em meu pescoço e sobre meu peito, já consigo sentir seu calor. Eu o seguro para fora da janela e o chacoalho com força, removendo todo o pó; olho para ele sob a luz, é longo e grosso – não tem nenhum buraco. É como ouro puro. Eu imediatamente o coloco ao redor de meu pescoço e debaixo de minha blusa e já me sinto mais aquecida. Acabo até espirrando.

O sol está se pondo e como parece que eu já encontrei tudo o que podia, começo a sair. Ao me dirigir para a porta, de repente, bato meu pé em algo duro, de metal. Eu paro e me ajoelho, analisando se é uma arma. Mas não é. É uma alça de ferro, redonda, grudada ao chão de madeira. Parece um batente. Ou uma maçaneta.

Eu o puxo para a esquerda e para a direita. Nada acontece. Experimento girá-lo. Nada. Então fico ao lado e tento puxá-lo para cima, com força.

Um alçapão se abre, levantando uma nuvem de poeira.

Olho para baixo e descubro um forro, com um pouco mais de um metro de altura e um chão de terra. Meu coração acelera de alegria diante das possibilidades. Se morássemos aqui, e se acontecesse algum problema, eu poderia esconder Bree aqui embaixo. Essa pequena casa fica cada vez mais valiosa aos meus olhos.

E não é só isso. Ao olhar para baixo, percebo algo brilhante. Empurro a porta de madeira por completo e rapidamente desço a escada. Está escuro aqui embaixo e eu mantenho minhas mãos à frente, tateando o caminho. Assim que dou um passo à frente, sinto algo. Vidro. Há estantes na parede, e enfileirados nelas, há frascos de vidros. Frascos de conservas.

Eu pego um deles e o seguro na luz. Seu conteúdo é vermelho e mole. Parece geleia. Eu rapidamente retiro a tampa, levo o frasco ao meu nariz e sinto seu cheiro. O cheiro acre de framboesas me atinge como uma onda.  Meto o dedo, tiro um pouco do conteúdo e levo a minha boca. Não consigo acreditar: geleia de framboesas. Seu sabor é tão fresco que parece que foi feita ontem.

Aperto a tampa rapidamente, coloco o frasco no meu bolso e volto às estantes. Estendo minhas mãos e sinto mais dezenas de frascos na escuridão. Pego o mais próximo e retorno à luz, segurando-o. Parecem picles.

Estou deslumbrada. Esse lugar inteiro é uma mina de ouro.

Gostaria de levar tudo, mas minhas mãos estão congelando, não tenho nada para carregá-los e está ficando escuro lá fora. Então devolvo o vidro de picles aonde eu o encontrei, subo a escada e, ao regressar para o piso principal, fecho o alçapão atrás de mim. Gostaria de poder trancá-lo. Sinto-me insegura de deixar tudo aqui embaixo, desprotegido. Mas então me lembro de que esse lugar não é tocado há anos – e que eu provavelmente jamais o notaria se aquela árvore não tivesse caído.

Quando saio da casa, fecho a porta por completo, sentindo que devo protegê-la, sentindo como se essa casa fosse nosso lar.

De bolsos cheios, eu me apresso para chegar ao lago – quando, de repente, me amedronto ao perceber movimentos e ouvir barulhos. A princípio, tenho medo que alguém tenha me seguido; e, então, ao me virar lentamente, vejo algo a mais. Um cervo está parado, a três metros de distância, olhando para mim. É o primeiro que eu vejo em anos. É grande, seus os olhos pretos fixos em mim então, de repente, ele se vira e sai correndo.

Estou sem palavras. Passei meses procurando por um cervo, na esperança de chegar perto o suficiente de um e lançar minha faca nele. Mas eu nunca consegui encontrar, em lugar nenhum. Talvez eu não estivesse caçando no local certo. Vai ver eles sempre viveram aqui em cima.

Eu decidi voltar aqui, assim que amanhecer, e esperar o dia todo, se necessário. Se ele já esteve aqui uma vez, talvez retorne. Na próxima vez que eu achar um, vou matá-lo. Um cervo nos alimentaria por semanas.

Estou cheia de novas esperanças enquanto me dirijo ao lago. Assim que me aproximo, olho para minha vara de pescar e meu coração dispara quando vejo que ela está curvada quase na metade. Tremendo de emoção, corro através do gelo, escorregando, deslizando, e pego a linha, que sacode violentamente, e rezo para que ela aguente.

Estendo minha mão e a seguro firmemente. Eu consigo sentir a força de um peixe grande se distanciando e, silenciosamente, afrouxo a linha para que ela não se rompa. Dou um puxão final e o peixe sai voando pelo buraco. É um salmão enorme, do tamanho do meu braço. Ele aterrissa no gelo e dá pulos em todas as direções, deslizando. Corro e me agacho para alcançá-lo, mas ele resvala entre minhas mãos e volta a cair no gelo. Minhas mãos estão muito escorregadias para segurá-lo, então eu desenrolo minhas mangas e dessa vez o agarro com firmeza. Ele se debate e retorce em minhas mãos por uns trinta segundos até, finalmente, ficar parado, morto.

Estou maravilhada. É a minha primeira pesca em meses.

Sinto-me eufórica enquanto atravesso o gelo, em seguida, deixo o peixe na borda do lado, colocando neve por cima dele com medo de que de algum jeito ele ressuscite e volte para o lago. Tiro a vara de pescar e a linha e as seguro com uma mão e o peixe, com a outra. Posso sentir a compota de geleia em um bolso, a garrafa térmica com seiva no outro, junto com a barra de chocolate e o urso de pelúcia na minha cintura. Bree terá muita fartura hoje à noite.

Só falta uma coisa para levar agora. Vou até minha pilha de lenha seca, equilibro a vara em meu braço e, com minha mão livre, eu pego o máximo possível de lenha que consigo carregar. Eu derrubo algumas e não posso pegar tantas como eu gostaria, mas não reclamo. Posso voltar aqui no resto da manhã.

Com mãos, braços e bolsos cheios, eu desço deslizando pela íngreme montanha sob a última luz do dia, tomando cuidado para não deixar cair nenhum tesouro meu. Ao mesmo tempo, não paro de pensar sobre a casa. É perfeita e meu coração bate mais rápido diante de tais possibilidades. É exatamente o que precisamos. A casa de nosso pai é muito visível, construída em uma estrada principal. Tenho me preocupado há meses porque, assim, ficamos muito vulneráveis. Tudo que precisamos é que um comerciante de escravos inesperado passe por ali e então estaríamos em apuros. Estou querendo nos mudar faz muito tempo, mas não sabia para onde. Não há nenhuma outra casa aqui em cima.

Esta pequena casa, no alto, distante de qualquer estrada – e, literalmente construída na montanha – é tão bem camuflada que é quase como se tivesse sido construída apenas para nós. Ninguém conseguiria nos encontrar aqui. E, mesmo que nos encontrassem, não conseguiriam se aproximar com um veículo. Eles teriam que escalar a pé e, sob este ponto de vista, eu os detectaria a quilômetros de distância,

A casa também conta com uma fonte de água doce, um córrego que passa bem na frente de sua porta; eu não teria que deixar Bree sozinha toda vez que eu fosse sair para tomar banho ou lavar nossas roupas. E eu não precisaria carregar baldes de água, um de cada vez, do lago para nossa casa toda vez que preparasse uma refeição. Sem mencionar que, com aquela enorme folhagem das árvores, nós estaríamos escondidas o suficiente para poder acender a lareira toda noite. Estaríamos mais seguras, mais quentes, em um lugar cheio de peixes e caça – e equipadas com um sótão cheio de comida. Já me decidi – vamos nos mudar para lá amanhã mesmo.

É como se tivessem tirado um peso de meus ombros. Sinto-me como se tivesse renascido. Pela primeira vez, desde que me lembro, não sinto a fome me dilacerando, o frio perfurando meus dedos. Até mesmo o vento, enquanto desço, parece estar em minhas costas, me ajudando a descer e eu sei que as coisas finalmente mudaram. Pela primeira vez, desde que me lembro, sei que conseguiremos seguir em frente.

Agora, podemos sobreviver




DOIS


Quando cheguei à casa de meu pai, o sol estava se pondo, a temperatura caía e a neve começava a endurecer, quebrando sob meus pés. Sai da floresta e avistei nossa casa ali, visivelmente situada ao lado da estrada e me senti aliviada, pois ela parecia tranquila, exatamente como a deixei. Eu imediatamente procuro por pegadas na neve – ou sinais de animais- saindo ou entrando e não encontro nada.

Não há nenhuma luz no interior da casa, mas isto é o normal. Eu ficaria preocupada se houvesse. Não temos eletricidade, então luzes significariam apenas que Bree acendeu velas – e ela não o deveria fazer sem mim. Eu paro e escuto por vários minutos, está tudo quieto. Não há ruídos de lutas, pedidos por socorro nem gemidos por doenças. Dou um suspiro de alívio.

Uma parte de mim sempre teme que, ao retornar, eu encontre a porta aberta, as janelas quebradas, pegadas entrando na casa e Bree desaparecida. Já tive esse pesadelo inúmeras vezes e sempre acordo suando, então ando para o outro quarto e me certifico de que ela ainda está lá. E ela sempre está, segura e a salvo, e eu me repreendo por isso. Sei que eu deveria parar de me preocupar tanto, após todos esses anos. Mas, por algum motivo, não consigo evitar: toda vez que preciso deixar Bree sozinha, é como se apunhalassem uma faca em meu coração.

Ainda atenta, analisando tudo o que me rodeia, examino nossa casa sob a luz do dia, que vai enfraquecendo. Honestamente, essa casa nunca foi boa pra começo de conversa. Um típico rancho de montanha, uma caixa retangular sem nenhum detalhe, enfeitada com revestimento de vinil de piscina, que parecia velho desde o primeiro dia e agora parece simplesmente deteriorado. As janelas são pequenas e escassas e feitas de plástico barato. Parecem aquelas de trailers. Talvez tenha uns 4,5m de largura por uns 9m de profundidade, ela deveria ter apenas um quarto, mas, quem quer que a tenha construído, com sua mente brilhante, a fez com dois quartos pequenos e uma sala de estar menor ainda.

Lembro-me de visitá-la quando criança, antes da guerra, quando o mundo ainda era normal. Papai, quando estava em casa, nos trazia aqui para passar o final de semana, para fugir da cidade. Eu não queria parecer mal agradecida, então sempre colocava um sorriso no rosto, mas, no fundo, eu nunca gostei daqui; sempre me pareceu uma casa escura e apertada e havia um cheiro desagradável de umidade. Quando pequena, recordo que mal podia esperar para o final de semana acabar, para me livrar logo deste lugar. Eu me lembro de secretamente me prometer que eu jamais voltaria para cá.

Agora, ironicamente, agradeço a este lugar. Esta casa salvou minha vida – e a de Bree. Quando a guerra estourou e tivemos que fugir da cidade, não tínhamos opções. Se não fosse por este lugar, não sei para onde teríamos ido. E, se este lugar não fosse tão alto e remoto como é, então, provavelmente, nós teríamos sido capturadas por comerciantes de escravos há muito tempo. É engraçado como você odeia tanto algumas coisas quando criança e acaba apreciando as mesmas quando adulta. Bom, quase adulta. Tenho 17 anos, e me considero uma pessoa adulta, de qualquer forma. Eu provavelmente envelheci mais do que a maioria nos últimos anos.

Se esta casa não tivesse sido construída bem na estrada, tão exposta – se ela fosse um pouco menor, mais protegida, mais dentro do bosque, eu acho que não me preocuparia tanto. Claro, ainda teríamos que aguentar as paredes finas, as goteiras no teto, as janelas que deixam vento passar. Jamais seria uma casa quente e confortável. Mas pelo menos, seria segura. Agora, toda vez que olho para ela e depois para a enorme vastidão que vai além, não consigo deixar de pensar que é um alvo fácil.

Meus pés trituram a neve à medida que me aproximo de nossa porta de vinil e latidos surgem de dentro da casa. É Sasha, fazendo o que eu a ensinei a fazer: proteger Bree. Eu sou tão grata a ela. Ela cuida de Bree com tanto esmero, late ao mínimo barulho; isso me permite um pouco de tranquilidade, o suficiente para deixá-la em casa quando vou caçar. Porém, ao mesmo tempo, me preocupa também que seus ladros acabem por nos denunciar: afinal, um cachorro latindo, em geral, significa que há humanos por perto. E é exatamente o que um comerciante de escravo procura escutar.

Eu me apresso para entrar em casa e rapidamente silenciá-la. Fecho a porta atrás de mim, fazendo malabares com os pedaços de lenhas em minhas mãos e entro na sala escura. Sasha fica quieta, balançando seu rabo e pulando em cima de mim. Um labrador cor chocolate, de seis anos de idade, Sasha é o cão mais leal que eu poderia imaginar – e é a melhor companhia. Se não fosse por ela, eu acho que Bree teria entrado em depressão há muito tempo. E eu também.

Sasha lambe meu rosto choramingando e parece ainda mais contente que o normal; ela fareja minha cintura e meus bolsos, já sentindo que eu trouxe alguma coisa especial. Eu deixo a lenha de lado para acariciá-la e, ao fazê-lo, sinto suas costelas. Ela está tão magra. Sinto-me culpada. Por outro lado, eu e Bree também estamos assim. Nós sempre compartilhamos com ela o que encontramos para comer, desse jeito, as três tem condições iguais. Mesmo assim, eu gostaria de poder lhe dar muito mais.

Ela encosta seu nariz no peixe e, ao fazê-lo, o peixe cai da minha mão diretamente no chão. Sasha imediatamente se lança sobre ele, suas unhas o fazem deslizar. Ela salta sobre o peixe novamente e, desta vez, o morde. Mas não deve ter gostado muito do sabor de peixe cru, pois, em seguida, o larga. Agora ela está brincando com o peixe, pulando sobre ele de novo e de novo enquanto o mesmo desliza pelo chão.

“Sasha, pare!” eu digo baixinho pois não quero acordar Bree. Também temo que se ela brincar demais com o peixe, ele acabe se abrindo e desperdiçando carne valiosa. Obedientemente, Sasha para. Posso ver como ela está animada e quero lhe dar alguma coisa. Coloco minha mão em meu bolso, giro a tampa do frasco de conservas, tiro um pouco de geleia de framboesa com meu dedo e ofereço a ela.

Sem perder tempo, ela lambe meu dedo e, em três grandes lambidas ela já comeu tudo o que servi. Ela lambe seus lábios e me encara, os olhos bem abertos, pedindo mais.

Eu acaricio sua cabeça, lhe dou um beijo e fico de pé novamente. Agora me pergunto se foi bondoso lhe dar algo ou cruel lhe dar tão pouco.

A casa está escura, como sempre está à noite e vou tropeçando pela sala. Eu raramente acenderia a lareira. Por mais que necessitemos do calor, não quero correr o risco de chamar atenção. Mas, hoje à noite é diferente: Bree precisar melhorar, física e emocionalmente, e eu sei que o fogo vai ajudá-la. Também me sinto mais corajosa hoje, uma vez que iremos nos mudar daqui amanhã.

Cruzo a sala até chegar ao armário e dele tiro uma vela e um isqueiro. Uma das melhores coisas dessa casa é seu enorme estoque de velas, uma das poucas boas consequências de meu pai ter sido um fuzileiro da Marinha e um fanático por sobrevivência. Quando éramos crianças e visitávamos aqui, a eletricidade caía em toda tempestade e, por isso, ele estocava tantas velas, determinado a vencer a natureza. Eu me lembro de que costumava tirar sarro dele por isso; o chamava de “acumulador” quando descobri seu armário lotado de velas. Agora que temos só algumas, gostaria que ele tivesse guardado mais.

Tenho conservado nosso isqueiro utilizando-o com moderação e lhe passando um pouquinho de gasolina da motocicleta a cada algumas semanas. Eu agradeço a Deus todos os dias pela moto de meu pai e sou muito grata que ele tenha enchido seu tanque uma última vez: é a única coisa que possuímos e que me faz crer que ainda temos uma vantagem, que ainda temos algo valioso, um jeito de sobreviver se tudo for para o inferno. Papai sempre manteve a moto na pequena garagem anexada a casa, porém, quando chegamos, após a guerra, a primeira coisa que fiz foi removê-la dali e levá-la até o topo da colina, dentro da floresta, escondendo-a entre os arbustos e galhos e espinhos tão espessos para que ninguém a encontrasse. Eu pensei que, se nossa casa um dia fosse descoberta, a primeira coisa que fariam seria revistar a garagem.

Eu sou extremamente grata que meu pai tenha me ensinado como pilotá-la quando eu era mais nova apesar dos protestos de mamãe. Foi mais difícil de aprender do que a maioria das outras motos devido ao sidecar que ela tem. Eu me lembro de que, aos doze anos eu, aterrorizada, aprendi a conduzi-la com meu pai, que se sentava no sidecar e me dava ordens toda vez que eu deixava o motor morrer. Aprendi nessas estradas íngremes e implacáveis, lembro-me de pensar que iríamos morrer. Recordo-me de olhar para a beira da estrada, vendo a queda e, chorando, insistir que meu pai pilotasse. Mas ele se recusou. Ficou sentado, teimoso, por mais de uma hora até que eu parasse de chorar e tentasse mais uma vez. E, de algum jeito, eu acabei aprendendo. Em resumo, essa foi minha infância.

Eu não me aproximei da moto desde o dia em que eu a escondi, sequer me arrisco a vê-la, a não ser quando eu preciso pegar combustível – e, mesmo assim, só o faço à noite. Imagino que, se um dia a gente estiver em apuros e precisarmos dar o fora daqui o quanto antes, eu colocarei Bree e Sasha no sidecar e levarei todo mundo para longe em segurança. Mas, na realidade, eu não tenho ideia para onde iríamos. De acordo com tudo que já vi e ouvi, o resto do mundo é uma terra devastada, cheia de criminosos violentos, gangues e poucos sobreviventes. Os poucos violentos que sobreviveram se concentraram nas cidades, sequestrando e escravizando quem eles encontram, ou para servirem a eles mesmos ou para participarem dos jogos mortais nas arenas. Acredito que eu e Bree somos uns dos poucos sobreviventes que ainda vivem livremente, por conta própria, fora das cidades. E uns dos poucos que ainda não morreram de fome.

Acendo a vela, Sasha me seguindo enquanto eu caminho lentamente pela casa escura. Suponho que Bree esteja dormindo e isso me preocupa: ela geralmente não dorme tanto assim. Eu paro na frente de sua porta, indecisa se devo acordá-la. Ao parar ali, olho para cima e me assusto com meu próprio reflexo no pequeno espelho. Vejo como estou muito mais velha, como toda vez que me olho no espelho. Meu rosto, magro e anguloso, está corado pelo frio, meu cabelo castanho claro cai sobre meus ombros, emoldurando minha face e meus olhos acinzentados me encaram, como se pertencessem à outra pessoa que eu não reconheço. São severos e penetrantes. Papai sempre me dizia que eu tinha olhos de lobo. Mamãe sempre dizia que eram lindos. Não sabia em quem acreditar.

Eu rapidamente desvio o olhar, não querendo me ver. Estendo minha mão e viro o espelho para que isso não se repita.

Lentamente, eu abro a porta do quarto de Bree. E, no segundo que o faço, Sasha entra e corre para o lado dela, deitando-se e apoiando seu queixo no peito de minha irmã, enquanto lhe lambe o rosto. Nunca deixo de me impressionar o quanto essas suas são unidas; às vezes sinto que são mais unidas do que nós.

Bree abre os olhos devagar e os mantém semicerrados enquanto olha para a escuridão.

“Brooke?” ela pergunta.

“Sou eu,” eu digo, em voz baixa. “Estou em casa.”

Ela se senta e abre um sorriso, seus olhos se iluminam ao me reconhecer. Ela está em um colchão barato no chão, então retira sua fina manta e começa a se levantar, ainda de pijama. Está se movendo mais devagar que o normal.

Eu me abaixo e lhe dou um abraço.

“Tenho uma surpresa para você,” eu falo, mal conseguindo esconder minha ansiedade.

Bree arregala os olhos, então os fecha e estende as mãos abertas, aguardando. Ela é tão confiante, tão otimista, que me impressiona. Estou indecisa sobre o que devo lhe dar primeiro e então me decido pelo chocolate. Coloco a mão em meu bolso, tiro a barra e calmamente a ponho em suas mãos. Ela abre os olhos e olha para baixo, seus olhos semicerrados sob a luz, incerta. Aproximo a vela.

“O que é isso?” ela pergunta.

“Chocolate,” lhe respondo.

Ela me olha como se esperasse por uma pegadinha.

“É sério,” eu falo.

“Mas aonde você conseguiu isso?” ela pergunta, sem entender. Ela olha para baixo como se um asteroide tivesse acabado de aterrissar em suas mãos. Eu não a culpo: não existem mais lojas, nem pessoas por ai, nem nenhum lugar em um raio de cento e sessenta quilômetros aonde eu pudesse encontrar algo assim.

Eu lhe dou um sorriso. “Papai Noel me deu, é para você. É um presente de natal adiantado.”

Ela franze o cenho. “Não, sério,” ela insiste.

Respiro profundamente ao me dar conta de que é hora de lhe contar sobre nossa nova casa, sobre sair daqui amanhã. Eu tento encontrar a melhor forma lhe de dar as novidades. Espero que ela fique tão animada quanto eu – mas, com crianças, nunca se sabe. Uma parte de mim se preocupa que talvez ela sinta-se apegada a este lugar e não queira ir embora.

“Bree, eu tenho grandes notícias para te dar,” eu falo ao me inclinar para baixo e segurar seus ombros. “Eu encontrei um lugar incrível hoje, lá no alto da montanha. É uma casinha de pedra, perfeita para nós. Aconchegante, quente e segura; e tem uma lareira linda, na qual podemos acendê-la tosas as noites. E o melhor de tudo, tem todo o tipo de alimento lá. Como este chocolate.”

Bree olha para o chocolate, estudando-o, e seus olhos se arregalam ainda mais quando ela percebe que é real. Ela cuidadosamente tira a embalagem e sente seu cheiro. Ela fecha seus olhos e sorri e então se aproxima para dar uma mordida – mas, de repente, se detém. Ela olha para mim, preocupada.

“Mas e você?” ela pergunta. “Tem só uma barra?”

Esta é Bree, sempre pensando nos outros, mesmo quando passa fome. “Sua vez primeiro,” eu falo. “Não tem problema”.

Ela empurra a embalagem para trás e dá uma grande mordida. Seu rosto, desamparado de fome, se enche de euforia.

“Mastigue devagar,” eu aviso. “Você não vai querer ter dor de estômago.”

Ela desacelera, apreciando cada mordida. Quebra um pedaço grande e coloca na minha mão. “É sua vez,” ela diz.

Eu lentamente provo o chocolate, pegando uma pequena mordida, deixando-o na ponta de minha língua. Eu lambo e mastigo, saboreando cada momento. O gosto e o cheiro invadem meus sentidos. É provavelmente a melhor coisa que eu já comi.

Sasha protesta, aproximando seu nariz do chocolate e, em seguida, Bree arranca mais um pedaço e dá para ela. Sasha o tira de seus dedos e engole tudo de uma só vez. Bree ri, encantada com ela, como sempre. Então, em uma surpreendente demonstração de autocontrole, Bree embrulha a metade que sobrou da barra, estende as mãos e sabiamente a põe no alto da cômoda, longe do alcance de Sasha. Bree parece fraca, mas posso ver que está mais animada.

“O que é isso?” ela pergunta, apontando para minha cintura.

Por um momento, eu não sei do que ela está falando, mas aí olho para baixo e vejo o ursinho de pelúcia. Com toda essa euforia, eu havia quase esquecido. Eu o alcanço e entrego para ela.

“Encontrei em nossa nova casa,” eu falo. “É para você.”

Os olhos dela se arregalam de emoção quando ela pega o ursinho, e então o abraça em seu peito e o balança para frente e para trás.

“Eu adorei!” Bree exclama, seus olhos brilhando. “Quando vamos nos mudar? Mal posso esperar!”

Que alívio. Antes que eu possa responder, Sasha mete o nariz no novo urso de pelúcia de Bree, farejando; Bree o esfrega em seu rosto, brincando, e Sasha o pega e sai correndo pela casa.

“Ei!” Bree grita, começando um ataque de risadas enquanto corre atrás dela.

As duas correm pela sala de estar, ambas imersas na luta pelo ursinho. Não sei quem está se divertindo mais.

Eu as sigo, transportando a vela com cuidado para que não se apague e me dirijo diretamente para a pilha de lenha.  Coloco alguns dos galhos menores na lareira e então boto um punhado de folhas secas  que estavam em um cesto próximo à lareira. Estou satisfeita de ter juntado bastante dessas folhas no último outono para acendermos o fogo. Elas funcionam como um feitiço. É só colocar folhas secas embaixo da lenha, acender o isqueiro nelas e logo aparece uma chama que começa a tocar na madeira. Eu continuo alimentando a lareira com folhas até que a lenha finalmente pegue fogo. E logo apago a vela, guardando-a para outra ocasião.

“Vamos fazer uma fogueira?” Bree grita, animada.

“Sim,” eu digo. “Hoje vamos comemorar. É nossa última noite aqui.”

“Viva!” Bree exclama, dando saltos, e Sasha late junto com ela, tomada pela alegria. Bree se aproxima e pega um pouco da lenha, me ajudando com o fogo. Nós alimentamos as chamas com cuidado, dando espaço para o ar, Bree assopra, avivando as chamas. Quando a lenha enfim pega fogo, ponho uma madeira grossa em cima. E sigo empilhando troncos grossos, até termos uma fogueira.

Em pouco tempo, a sala está iluminada e eu já posso sentir o calor. Ficamos na frente da lareira, estendo minhas mãos, esfregando-as, deixando que o calor penetre meus dedos. Lentamente, sinto a sensibilidade voltando. Aos poucos, me descongelo do longo dia passado ao ar livre e começo a me sentir eu mesma de novo.

“O que é isto?” Bree pergunta, apontando para o chão. “Parece um peixe!”

Ela vai até ele, o agarra e, ao levantá-lo, o peixe escapa de suas mãos. Bree ri, e Sasha, não querendo perder o momento, avança sobre ele com suas patas, o mandando para longe no chão. “Onde você conseguiu um?” Bree grita.

Eu o pego antes que Sasha possa danificá-lo mais, abro a porta e o jogo lá fora, na neve, onde ele será mais bem preservado, longe do calor e fecho a porta atrás de mim.

“Essa é minha surpresa,” eu falo. “Nós teremos janta hoje!”

Bree corre e me dá um grande abraço. Sasha late, como se entendesse. Eu a abraço de volta.

“Eu tenho mais duas surpresas para você”, anuncio com um sorriso. “Elas são para sobremesa. Você quer esperar o jantar? O que agora?”

“Agora!” ela grita, eufórica.

Eu também sorrio, animada. Pelo menos isso a deixará controlada na janta.

Coloco a mão em meu bolso e tiro o frasco de geleia. Bree o olha com curiosidade, duvidando, e então eu retiro a tampa e a coloco debaixo de seu nariz. “Feche os olhos,” eu falo.

Ela fecha. “Agora, sinta o cheiro”.

Ela respira profundamente e um sorriso se abre em seu rosto. Ela abre os olhos.

“Tem cheiro de framboesas!” ela exclama.

“É geleia. Vá em frente. Prove.”

Bree mete dois dedos, pega bastante geleia e come. Seus olhos se iluminam.

“Uau,” ela fala, enquanto pega mais um pouco e dá para Sasha, que avança sem hesitar para comer. Bree ri  histericamente e eu fecho o frasco e deixo o vidro na estante, fora do alcance de Sasha.

“Isso também é da nossa nova casa?” ela pergunta.

Eu concordo com a cabeça, feliz em ver que ela já considera aquela casa como nosso lar.

“E ainda tem uma última surpresa,” eu falo “mas esta aqui eu vou deixar para depois do jantar.”

Tiro a garrafa térmica do meu cinto e a coloco no alto da estante, fora de vista, para que ela não saiba o que é. Posso vê-la alongando o pescoço, mas eu escondi bem.

“Confie em mim,” eu falo. “Vai ser muito bom.”


*

Como eu não quero que a casa cheire a peixe, decido encarar o frio e cozinhar o salmão do lado de fora. Levo minha faca e começo a prepará-lo, apoiando-o em um toco de árvore enquanto me ajoelho sobre ele na neve. Eu não sei realmente o que estou fazendo, mas sei que não comemos a cabeça nem a cauda então começo a cortar essas partes.

Também suponho que não iremos comer as nadadeiras, por isso as retiro – nem as escamas, que tento removê-las o melhor que posso. Logo percebo que devemos abri-lo para comê-lo, então fatio o que sobrou na metade. O peixe tem entranhas rosas, grossas e um monte de ossinhos. Não sei mais o que fazer então acredito que esteja pronto para assar.

Antes de voltar para casa, sinto a necessidade de lavar minhas mãos. Me abaixo, pego um punhado de neve e enxáguo minhas mãos com isso, grata pela neve – porque normalmente eu teria que andar até o córrego mais próximo, já que não temos água corrente. Levanto-me e, antes de entrar, paro por um segundo e examino os arredores. A princípio, procuro ouvir, como sempre, por qualquer sinal de barulho, de perigo. Após alguns segundos, percebo que o mundo está tranquilo como deveria estar. Finalmente, aos pouco, eu relaxo, respiro profundamente, sentindo os flocos de neve em minhas bochechas e disfruto desta incrível tranquilidade, me dou conta de como esta paisagem é absolutamente linda. Os pinheiros altíssimos estão cobertos de branco, a neve cai sem parar do céu púrpuro e o mundo parece perfeito, como um conto de fadas. A lareira resplandece através da janela e, daqui, nossa casa parece o lugar mais acolhedor do mundo.

Regresso a casa com o peixe, fechando a porta atrás de mim, e tenho a ótima sensação de entrar em um lugar tão quente, com a suave luz do fogo refletindo em tudo. Bree está cuidando bem do fogo, como sempre, adicionando lenha sabiamente, as chamas agora chegam a uma altura maior ainda. Ela está colocando os talheres no chão, próximos à lareira, com facas e garfos da cozinha. Sasha está sentada ao seu lado, atenta, observando cada movimento.

Eu levo o peixe até o fogo. Não sei realmente como se cozinha isso, acredito que eu deva colocá-lo no fogo por um tempo, deixá-lo assando e virá-lo algumas vezes, espero que isso funcione. Bree lê minha mente: ela vai até a cozinha e volta com uma faca afiada e dois espetos grandes. Ela espeta cada pedaço de peixe, pega sua parte e coloca sobre as chamas. Eu a imito. Os instintos domésticos de Bree são melhores que os meus, eu sou grata por sua ajuda. Nós sempre formamos uma boa equipe.

Nós duas ficamos ali, olhando as chamas, paralisadas, segurando nossos peixes no fogo até nossos braços começarem a cansar. O cheiro do peixe encheu a casa e, depois de uns dez minutos, sinto um incômodo em meu estômago e fico impaciente de fome. Decido que meu peixe já está assado, afinal, lembrei que as pessoas, às vezes, comem peixe cru, então não tem como me fazer mal. Bree parece concordar e, assim, nós duas colocamos nossos pedaços nos pratos e nos sentamos no chão, uma ao lado da outra, de costas para o sofá e nossos pés voltados para o fogo.

“Cuidado,” eu aviso. “Ainda tem muitos ossos dentro.”

Tiro algumas espinhas e Bree também o faz. Quando termino de triá-las, eu pego um pedaço da carne rosada, quente ao toque, e levo à boca, me preparando.

Na verdade, o sabor é bom. Podia ter um pouco de sal ou algum tempero, mas pelo menos parece cozido e tem o sabor mais fresco possível.  Eu posso sentir a necessidade de proteínas de meu organismo. Bree devora seu peixe e posso notar o alívio em seu rosto. Sasha senta-se ao seu lado, observando, lambendo seus beiços até que Bree escolha um belo pedaço desossado para alimentá-la. Sasha o mastiga e engole, lambe seus lábios e volta a nos olhar, querendo mais.

“Sasha, aqui,” eu falo.

Ela vem correndo, pego um pouco do meu peixe, tiro os ossos e dou para ela. Ela engole tudo em segundos. Antes que eu perceba, meu peixe já acabou – assim como o de Bree – e fico surpresa de ver meu estômago roncando novamente. Eu gostaria de ter pescado mais. Mesmo assim, foi o maior jantar que tivemos em semanas, e eu tento me contentar com o que temos.

E então me lembro da seiva. Levanto-me em um pulo, tiro a garrafa térmica de onde ela estava escondida e a dou para Bree.

“Vá em frente,” eu sorrio, “o primeiro gole é seu.”

“O que é?” ela pergunta, desenroscando a tampa e aproximando a garrafa de seu nariz. “Não tem cheiro de nada.”

“É seiva de bordo,” eu falo. “É como água com açúcar. Mas melhor.”

Ela toma um gole, hesitante, e então olha para mim, seus olhos abertos de alegria. “É uma delícia!” ela diz. Ela toma vários goles, e então para e me entrega a garrafa. Eu não resisto e também tomo grandes goles. Sinto o açúcar em meu sangue. Eu me inclino e coloco um pouco na vasilha de Sasha; ela bebe tudo e parece ter gostado também.

Mas eu ainda estou faminta. Em um raro momento de fraqueza, eu penso no pote de geleia e me pergunto por que não? Depois de tudo, eu acredito que há muito mais na casa no topo da montanha – e se esta noite não é motivo de celebração, quando seria então?

Eu pego o vidro de geleia, tiro a tampa e, com meu dedo, tiro uma boa quantia. Coloco na minha língua e fico saboreando o máximo possível antes de engolir. Tem um sabor celestial. Eu dou o resto do pote, ainda na metade, para Bree.  “Vá em frente,” eu falo, “acabe com ele. Há mais na nossa nova casa.”

Bree arregala os olhos quando pega o vidro.  “Você tem certeza?” ela pergunta. “Não deveríamos guardar?”

Eu balanço minha cabeça. “Está na hora de aproveitarmos.”

Não preciso de muito para convencer Bree. Em momentos, ela come tudo, deixando um pouco para Sasha.

Ficamos ali, deitadas, apoiadas no sofá, nossos pés em direção ao fogo quando, finalmente, sinto que meu corpo começar a relaxar. Com o peixe, a seiva e a geleia, sinto, finalmente, minhas forças voltarem. Eu olho para Bree, que já está quase dormindo, Sasha com a cabeça em seu colo e, apesar de ainda parecer doente, pela primeira vez em muito tempo, percebo esperança em seus olhos.

“Eu amo você, Brooke,” ela diz baixinho.

“Eu também amo você,” eu respondo.

Mas, quando olho para ela, percebo que já está adormecida.


*

Bree está deitada no sofá, em frente ao fogo, enquanto eu sento na cadeira ao seu lado; é um hábito que desenvolvemos com o passar dos meses. Toda noite, antes de dormir, ela se aconchega no sofá, com medo demais para dormir sozinha em seu próprio quarto. Eu lhe faço companhia, esperando que ela adormeça, depois, eu a carrego para sua cama. Na maior parte das noites, nós não temos fogueira, mas sentamos aqui do mesmo jeito.

Bree sempre tem pesadelos. Ela não os tinha antes: lembro-me de antes da guerra, quando ela dormia facilmente. Tão facilmente que eu costumava brincar com ela, chamando-a de Bree “dorminhoca”, já que ela dormia no carro, no sofá, lendo um livro na cadeira – em qualquer lugar. Mas agora, tudo mudou; hoje, ela fica acordada por horas e, quando dorme, tem o sono agitado. Na maioria das noites eu a ouço gemendo e gritando através das paredes finas. Mas quem a culparia? Com todos os horrores que já vimos, é incrível que ela ainda não tenha enlouquecido. Há várias noites que eu mal consigo dormir.

Uma coisa que a ajuda a dormir é quando eu leio para ela. Por sorte, quando fugimos, Bree teve a ideia de levar seu livro favorito. A Árvore Generosa. Toda noite, eu o leio para ela. Eu já sei o livro de cor e, quando estou cansada, às vezes, eu fecho meus olhos e o recito de memória. Por sorte, é curtinho.

Encosto-me à cadeira, me sentindo sonolenta, eu viro a capa gasta e começo a ler. Sasha está deitada no sofá, ao lado de Bree, as orelhas atentas, de vez em quando, me pergunto se ela também está me escutando.

“Era uma vez uma árvore que amava um menino. E todos os dias, o menino vinha e juntava suas folhas. E com elas, fazia coroas de rei.”

Eu dou uma olhada no sofá e vejo que Bree já está adormecida. Fico aliviada. Talvez tenha sido o fogo, ou a janta. Dormir é o que ela mais precisa agora para se recuperar. Eu tiro meu cachecol que estava bem enrolado em meu pescoço e o coloco, gentilmente, sobre seu peito. Finalmente, seu pequeno corpo para de tremer.

Eu coloco uma última lenha no fogo, sento de volta na cadeira e giro, encarando as chamas. Eu a vejo ser consumida e gostaria de ter trazido mais lenha para baixo. Mas é melhor assim. Será mais seguro dessa maneira.

Um tronco estala enquanto eu me acomodo, me sentindo mais relaxada do que não sinto em anos. Às vezes, depois que Bree adormece, eu pego o meu livro e o leio para mim. Eu o vejo ali, no chão: O Senhor das Moscas. É o único livro que me sobrou e está tão surrado pelo uso que parece ter uns cem anos. É uma sensação esquisita, ter apenas um livro restante no mundo. Faz-me perceber como eu subestimei tudo, me faz sentir saudades das bibliotecas.

Hoje, me sinto muito agitada para ler. Minha mente está acelerada, cheia de pensamentos para amanhã, sobre nossa nova vida, no alto da montanha. Eu continuo pensando em todas as coisas que vou precisar transportar daqui para lá e como eu farei isso. Há nossas coisas básicas: utensílios, fósforos, o que sobraram das velas, lençóis e colchões. Fora isso, nenhuma de nós tem muitas roupas e, tirando nossos livros, não temos pertences. Esta casa estava bem vazia quando chegamos, por isso não há nenhum enfeite. Eu gostaria de poder levar este sofá e esta cadeira, mas sei que precisarei da ajuda de Bree para isso e terei que esperar até que ela esteja se sentindo melhor. Teremos que fazer tudo por etapas, levando o essencial primeiro e deixando a mobília por último. Mas isto é o de menos: desde que estejamos lá em cima, seguras e a salvo. É isso que realmente importa.

Eu começo a pensar em todas as coisas que posso fazer para aquela casinha se tornar ainda mais segura. Certamente irei encontrar uma maneira de criar persianas para aquelas janelas escancaradas, para que eu possa fechá-las quando necessário. Olho a minha volta, buscando por algo em nossa casa que possa ser utilizado. Precisaria de dobradiças para que as persianas funcionassem, então olho para as dobradiças da porta da sala de estar. Talvez eu consiga removê-las. E já que terei que fazê-lo, talvez eu possa utilizar esta porta e serrá-la em pedaços.

Quanto mais eu olho a minha volta, mais eu percebo quantas coisas posso resgatar aqui. Eu lembro que papai deixou uma caixa de ferramentas na garagem, com um serrote, martelo, chave de fenda até uma caixa de pregos. É um de nossos bens mais preciosos então farei uma nota mental para não esquecer de levá-la.

Depois, é claro, da motocicleta. Isso que não sai da minha cabeça: quando transportá-la e como. Eu não consigo suportar a ideia de deixá-la para trás, nem por um minuto. Então, em nossa primeira viagem para cima, eu a levarei. Não posso ligá-la e, assim, chamar atenção – além disso, a montanha é muito íngreme para que eu consiga pilotá-la para lá. Eu terei que andar com ela, montanha acima. Já consigo imaginar como isso será cansativo, especialmente com a neve. Mas não vejo outro jeito. Se Bree não estivesse doente, ela me poderia me ajudar, mas no atual estado em que ela se encontra, não poderá levar nada – suspeito até que eu terei que carregá-la. Percebo que não temos alternativa a não ser esperar amanhã à noite, para que a escuridão nos acoberte antes de nos mudarmos. Talvez eu esteja sendo paranoica – as chances de alguém nos ver são remotas, mas, ainda assim, é melhor ter cuidado. Especialmente porque eu sei que há outros sobreviventes por aqui. Tenho certeza.

Lembro-me do primeiro dia em que chegamos. Estávamos as duas assustadas, desamparadas e exaustas. Naquela primeira noite, fomos dormir de barriga vazia, eu me perguntava como iríamos sobreviver. Teria sido um erro deixar Manhattan, abandonar nossa mãe, deixar tudo que conhecíamos para trás?

E então, em nossa primeira manhã, eu acordei, abri a porta e me assustei ao ver, bem na minha frente, uma carcaça de um cervo. A princípio, tive medo. Encarei aquilo como uma ameaça, um aviso, supus que alguém estivesse nos mandando embora, que não éramos benvindas aqui. Mas, depois do susto inicial, entendi que não era nada disso, aquilo se tratava, na verdade, de um presente. Alguém, algum outro sobrevivente, esteve nos observando. Ele deve ter percebido como parecíamos desesperadas e, em um ato de extrema generosidade, decidiu nos dar essa caça, nossa primeira refeição, carne suficiente para durar por semanas. Não consigo imaginar o quão valioso isso devia ser para ele.

Recordo-me de andar lá fora, olhando em todas as partes, para cima e para baixo da montanha, procurando em todas as árvores, esperando que alguém aparecesse e me saudasse. Mas ninguém apareceu. Tudo que eu vi foram árvores e, mesmo esperando por alguns minutos, tudo que eu ouvi foi silêncio. Mas, eu sabia, eu simplesmente sabia, que eu estava sendo observada. Sabia que havia mais gente aqui em cima, sobrevivendo, exatamente como nós.

Desde então, senti um tipo de orgulho, senti que éramos parte de uma comunidade silenciosa de sobreviventes isolados que vivem por estas montanhas, sendo reclusos, nunca falando uns com os outros, com medo de sermos vistos, com medo de ficarmos visíveis a algum comerciante de escravos. Acredito que é assim que os outros sobreviveram até agora: não correndo nenhum risco. No começo, eu não entendia isso. Mas agora, eu agradeço. E, desde então, mesmo sem ver ninguém, nunca me senti sozinha.

Mas isso também me fez mais vigilante; esses outros sobreviventes, se ainda estiverem vivos, devem, com certeza, estar com tanta fome e se sentindo tão desesperados como nós. Especialmente nos meses de inverno. Quem sabe se a fome, se a necessidade de defender suas famílias, os levou ao extremo do desespero, se seu jeito caridoso foi substituído por um instinto de sobrevivência? Eu sei que, pensar em Bree, Sasha e em mim mesma, morrendo de fome, às vezes, me levou a ter uns pensamentos bem desesperados. Por isso eu não quero correr nenhum risco. Vamos nos mudar à noite.

O que funcionará perfeitamente, de qualquer forma. Eu preciso aproveitar a manhã para subir até lá, sozinha, explorar primeiro e me certificar uma vez mais que ninguém entrou nem saiu de lá. Também preciso voltar para o local aonde encontrei o cervo e esperar por ele. Eu sei que é um tiro no escuro, mas se eu puder encontrá-lo de novo e matá-lo, poderemos comer por semanas. Eu desperdicei o primeiro cervo que recebemos, anos atrás porque eu não sabia como retirar sua pele, nem como cortá-lo, nem como preservá-lo. Fiz uma sujeira com ele e consegui apenar aproveitar uma refeição antes de a carcaça inteira apodrecer. Foi um terrível desperdício de comida e estou determinada a nunca mais fazer isso. Desta vez, especialmente com a neve, vou achar um jeito de conservá-lo.

Coloco a mão no meu bolso e tiro a faca que papai me deu antes de partir. Passo a mão pela empunhadura gasta, sentindo suas iniciais gravadas e o logo da Marinha estampado, tenho feito isso todos os dias desde que chegamos. Digo para mim mesma que ele ainda está vivo. Mesmo após todos estes anos, mesmo sabendo que as chances de vê-lo novamente sejam quase zero, eu não consigo deixar de pensar nessa possibilidade.

Desejo toda as noites que meu pai não tivesse partido, que ele nunca tivesse se voluntariado para a guerra. Para começo de conversa, foi uma guerra idiota. Nunca realmente compreendi como iniciou e ainda não sei. Papai me explicou, várias vezes, e eu ainda não entendo. Talvez fosse por causa de minha idade. Talvez eu não tivesse idade suficiente para entender as coisas sem sentido que os adultos podem fazer um com os outros.

Do jeito que papai explicou, foi a Segunda Guerra Civil – desta vez, não foi entre e o Norte e o Sul, mas entre partidos políticos. Entre os Democratas e o Republicanos. Ele disse que era uma guerra que estava por vir fazia tempo. Durante os últimos cem anos, ele disse, os Estados Unidos esteve à deriva em uma terra de duas nações: aqueles de extrema direita e aqueles de extrema esquerda. Com o passar do tempo,  as posições se firmaram tão fortemente que o país se tornou uma nação de ideologias opostas.

Papai falou que o pessoal de esquerda, os Democratas, queriam uma nação dirigida por um governo cada vez maior, que aumentaria os impostos para 70% e estaria envolvido em todos os aspectos das vidas das pessoas. Ele disse que o pessoal de direita, os Republicanos, queriam um governo cada vez menor, que iria abolir todos os impostos, não perturbaria o povo e o deixaria a sua própria sorte. Ele disse que, com o tempo, essas duas ideologias diferentes, ao invés de se comprometerem, se distanciavam cada vez mais, ficando mais radicais – até que atingiram um ponto onde não concordavam com mais nada.

Para piorar a situação, ele disse, os Estados Unidos estava populoso demais, se tornou difícil para qualquer político conseguir atenção nacional e os políticos das suas partes começaram a perceber que, para conseguir atenção, era necessário tomar posições extremas – que era o que precisavam para sua ambição pessoal.

Como resultado, as pessoas mais importantes de ambas as partes eram os mais extremistas, cada um tentando superar o outro, tomando posições que eles sequer acreditavam, mas que se viam obrigados a tomar. Naturalmente, quando as duas partes debatiam, só podiam discutir um com o outro – e eles o faziam com palavras grossas e duras. No início, eram apenas insultos e ataques pessoais. Mas, com o passar do tempo, a guerra verbal foi se intensificando. E, então, um dia, chegaram a um ponto sem volta.

Um dia, há uns dez anos atrás, um momento crítico chegou quando um líder político ameaçou outro com uma palavra profética: “secessão”. Se os Democratas tentassem elevar um centavo que fosse nos impostos, seu partido se separaria do sindicato e cada povoado, cada cidade e cada estado se dividiriam em dois. Não por terra, mas por ideologia.

Não poderia ter sido em momento pior: nessa época, a nação passava por uma depressão econômica e havia descontentamento suficiente, o povo estava farto de perder o emprego à custa deste político ganhar popularidade. As mídias adoravam os níveis de audiência que estavam atingindo e lhe deram mais tempo no ar. Pronto, sua popularidade cresceu. Com o tempo, sem nada para detê-lo, com os democratas não dispostos a se comprometerem e, aproveitando o impulso que levava, sua ideia se fortaleceu. Seu partido propôs sua própria bandeira nacional e até mesmo sua própria moeda.

Foi o primeiro momento crítico. Se alguém tivesse se levantado e o impedido, tudo poderia ter sido evitado. Mas ninguém o fez. E então ele foi ainda mais longe.

Fortalecido, este político propôs que a nova união também tivesse sua própria força policial, seus próprios tribunais, suas próprias tropas estaduais – até mesmo seu próprio exército. Este foi o segundo momento crítico.

Se o Presidente Democrata tivesse sido um bom líder nessa época, talvez ele pudesse ter detido as coisas antes. Mas ele agravou a situação ao tomar decisão ruim atrás de decisão ruim. Ao invés de acalmar as coisas, de atender às necessidades básicas que conduziram ao descontentamento, ele decidiu que o único jeito de anular o que ele chamou de “a Rebelião” era com uma atitude dura: ele acusou toda a liderança Republicana de sedição. Ele declarou a lei marcial e, no meio da noite, prendeu todos.

Isso intensificou as coisas e juntou todo o seu partido. Também reuniu metade dos militares. Pessoas estavam divididas em cada casa, cada cidade, cada quartel militar; aos poucos, a tensão se acumulou nas ruas e vizinhos odiavam uns aos outros. Até famílias se dividiram.

Uma noite, aqueles da cúpula militar leal aos Republicanos seguiram ordens secretas e organizaram um golpe, tirando-os da prisão. Houve confronto. E, nos degraus do prédio do Capitólio, o primeiro tiro fatídico foi disparado. Um jovem soldado achou que havia visto um oficial sacar uma arma e disparar primeiro. Assim que o primeiro soldado caiu, não havia mais volta. A linha final havia sido cruzada Um estado-unidense havia matado outro estado-unidense. Um tiroteio se seguiu, com dezenas de mortos. Os líderes republicanos foram levados para um local secreto. E, a partir deste momento, o exército se dividiu em dois. O governo se dividiu em dois. Cidades, vilas, condados e estados, todos se dividiram em dois. Isto se tornou conhecido como a Primeira Onda.

Durante os primeiros dias, gestores de crise e facções governamentais tentaram reestabelecer a paz. Mas era um pouco tarde demais. Nada poderia deter a tempestade que estava por vir. Uma facção de militares de linha dura tomou o assunto para si mesmos, almejando glória, querendo ser os primeiros na guerra, querendo a vantagem de velocidade e surpresa. Pensaram que esmagar a oposição imediatamente era a melhor maneira de dar um fim a tudo aquilo.

A guerra começou. Batalhas tomaram conta do solo americano. Pittsburgh virou a nova Gettysburg, com duzentos mortos em uma semana. Tanques iam contra tanques. Aviões contra aviões. Todo dia, toda semana, a violência aumentava. Limites eram colocados nas terras, militares e a polícia se dividiram e batalhas se espalharam por todos os estados da nação. Em todos os lugares, pessoas lutavam umas contra as outras, amigo contra amigo, irmão contra irmão. Chegou a um ponto em que ninguém mais sabia pelo que estavam lutando.  Foi derramado sangue pelo país inteiro, ninguém parecia ser capaz de parar essa situação. Essa época ficou conhecida como a Segunda Onda.

Até este momento, sangrenta como era, ainda era uma guerra convencional. Então veio a Terceira Onda, a pior de todas. O Presidente, em desespero, operando de um refúgio subterrâneo secreto, decidiu que havia apenas um jeito de acabar com o que ele ainda chamava insistentemente de “a Rebelião”. Reunindo seus melhores oficiais militares, eles o aconselharam a usar os recursos mais fortes para sufocar a rebelião de uma vez por todas: mísseis nucleares dirigidos. Ele concordou.

No dia seguinte, as bombas nucleares foram lançadas em estratégicas fortificações Republicanas por todos os Estados Unidos. Milhares morreram nesse dia, em lugares como Nevada, Texas, Mississippi. Milhões morreram no segundo.

Os Republicanos responderam. Eles arranjaram seus próprios recursos, emboscaram a NORAD (Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte) e lançaram suas próprias bombas nucleares nas fortalezas dos Democratas. Estados como Maine e New Hampshire foram os mais afetados. Dentro dos próximos dez dias, quase todo Estados Unidos foi destruído, uma cidade atrás da outra. Era onda atrás de onda de pura destruição, aqueles que não morreram por ataques diretos morreram depois devido ao ar e água tóxicos. Dentro de um mês, não sobrou mais ninguém para lutar. Ruas e prédios se esvaziaram um por um já que as pessoas saíam para lutar contra ex-vizinhos.

Mas papai sequer esperou pelo recrutamento – e é por isso que eu ainda o odeio. Ele foi embora muito antes. Ele havia sido um oficial da Infantaria da Marinha muito anos antes disso tudo acontecer, e ele sabia que essa guerra iria estourar antes que a maioria. Toda vez que ele assistia ao noticiário, toda vez que via políticos gritando uns com os outros de maneira desrespeitosa, sempre aumentando a aposta, papai balançava a cabeça e dizia: “isso vai virar guerra. Acreditem em mim”.

E ele estava certo. Ironicamente, papai já havia cumprido seu serviço militar e estava aposentado da Infantaria há anos quando tudo isso começou a acontecer; mas, quando o primeiro tiro foi disparado, neste dia, ele se alistou de novo. Antes mesmo de haver se falado em uma guerra completa. Ele provavelmente foi a primeira pessoa a se voluntariar por uma guerra que ainda nem havia começado.

E é por isto que eu ainda estou brava com ele. Por que ele teve que fazer isso? Por que ele não podia simplesmente deixar que os outros se matassem? Por que ele não ficou em casa, nos protegendo? Por que ele se importava mais com este país do que com sua família?

Ainda me lembro, nitidamente, o dia em que ele nos deixou. Naquele dia, eu havia voltado para casa depois da escola e, antes mesmo de abrir a porta, eu ouvi gritos vindo de dentro. Eu me preparei. Odiava quando papai e mamãe brigavam, o que parecia o tempo inteiro, e eu achei que aquilo fosse apenas mais uma de suas discussões.

Eu abri a porta e sabia, de cara, que algo estava diferente. Alguma coisa estava muito, muito errada. Papai estava em pé, completamente uniformizado. Não fazia sentido. Ele não vestia seu uniforme há anos. Por que ele o estaria vestindo agora?

“Você não é homem!” mamãe ralhou com ele. “Você é um covarde! Abandonando sua família. Para que? Partir e matar inocentes?”

O rosto de papai ficou vermelho, como sempre acontecia quando ele se zangava.

“Você não sabe do que está falando!" ele gritou de volta. “Estou cumprindo o meu dever para com meu país. É a coisa certa a fazer.”

“A coisa certa a fazer por quem?” ela retruca. “Você sequer sabe por que está lutando. Por um grupo de políticos idiotas?”

“Eu sei exatamente pelo que estou lutando: para manter nossa nação unida.”

“Oh, puxa, desculpe-me, Senhor América!” ela grita com ele. “Você pode justificar isto do jeito que quiser na sua cabeça, mas a verdade é que você está partindo porque não consegue me suportar. Porque você nunca soube lidar com a vida doméstica. Porque você é muito idiota e não consegue fazer mais nada da sua vida depois da Marinha. E por isso você pega a primeira oportunidade para se livrar –”.

Papai a interrompeu dando-lhe um tapa na cara. Eu ainda consigo ouvir o barulho em minha cabeça.

Fiquei chocada, nunca havia visto meu pai bater em minha mãe antes. Fiquei sem respiração, como se eu tivesse recebido aquele tapa. Fiquei olhando para ele, mal o reconhecendo. Aquele era realmente meu pai? Fiquei tão atordoada que derrubei meu livro e este caiu com um baque.

Os dois olharam para mim. Assustada, sai correndo pelo corredor para o meu quarto e bati a porta atrás de mim. Não sabia como reagir, eu simplesmente tinha que ficar longe deles.

Um pouco depois, ouvi uma leve batida na minha porta.

“Brooke, sou eu,” papai me chamou com uma voz baixa e arrependida. “Sinto muito por você ter visto aquilo. Por favor, deixe-me entrar.”

“Vá embora!” eu gritei de volta.

Um longo silêncio se seguiu. Mas ele não se retirou.

“Brooke, eu preciso ir. Eu quero te ver uma última vez antes de partir. Por favor, saia e me diga tchau.”

Eu comecei a chorar.

“Vá embora!” eu retruquei de novo. Eu estava tão arrasada, tão furiosa por ele ter batido em mamãe e ainda mais furiosa por ele estar nos deixando. E, no fundo, eu estava com medo de que ele nunca mais voltasse.

“Eu estou indo embora agora, Brooke,” ele disse. “Você não precisa abrir a porta para mim. Mas eu quero que saiba o quanto eu amo vocês. E que eu sempre estarei com vocês. Lembre-se, Brooke, você é a mais forte. Cuide desta família. Estou contando com você. Tome conta de todos.”

E então eu ouvi os passos de meu pai, se afastando. Ficando cada vez mais e mais distantes. Momentos depois eu ouço a porta da frente se abrir e então se fechar.

E depois, mais nada.

Minutos – que pareciam dias – depois, eu lentamente abri a porta. Eu já sentia. Ele se fora. E eu já estava arrependida; gostaria de ter falado adeus. Pois eu já estava pressentindo, no fundo, que ele nunca mais voltaria.

Mamãe sentou-se à mesa da cozinha, com o rosto entre as mãos, chorando baixinho. Eu sabia que as coisas haviam mudado para sempre nesse dia, que nada mais seria o mesmo de novo – que ela  nunca mais seria a mesma. Nem eu.

E eu estava certa. Enquanto sento aqui, olhando as chamas do fogo fraco, com os olhos pesados, eu percebo que, desde esse dia, nada voltou a ser o mesmo de antes.


*

Estou em nosso antigo apartamento, em Manhattan. Não sei o que estou fazendo nem como vim parar aqui. Nada parece fazer sentido, o apartamento não se parece em nada com o que eu me lembro. Não há nenhuma mobília, como se ninguém nunca tivesse morado aqui. Estou sozinha.

Há uma repentina batida na porta e meu pai entra, todo uniformizado, segurando uma maleta. Há um vazio em seu olhar, como se ele tivesse ido ao inferno e voltado.

“Papai!” eu tento berrar. Mas as palavras não saem. Eu olho para baixo e percebo que estou grudada ao chão, escondida atrás de uma parede e que ele não pode me ver. Por mais que eu lute para me libertar, para correr até ele, para gritar seu nome, não consigo. Sou forçada a assistir, impotente, meu pai entrar no apartamento vazio e olhar tudo em volta.

“Brooke?” ele grita. “Você está aqui? Tem alguém em casa?”

Tento responder de novo, mas minha voz não funciona. Ele procura de cômodo em cômodo. “Eu disse que eu voltaria,” ele fala. “Por que ninguém esperou por mim?”

Então, ele começa a chorar.

Meu coração se parte e eu tento, com todas as minhas forças, chamá-lo. Mas não importa o quanto eu me esforce, nenhum som sai.

Ele finalmente se vira e vai embora, fechando gentilmente a porta atrás dele. O som da maçaneta reverbera neste vazio.

“PAPAI!” eu grito, finalmente encontrando minha voz.

Mas é tarde demais. Eu sei que ele se foi para sempre e, de alguma forma, é tudo culpa minha.

Eu pisco e a próxima coisa que sei é que estou de volta às montanhas, na casa de papai, sentada em sua poltrona favorita, ao lado da lareira. Papai está inclinado para frente, de cabeça baixa, brincando com sua faca da Infantaria da Marinha. Fico horrorizada quando noto que metade de seu rosto está derretida até o osso; eu posso até ver metade de seu crânio.

Ele olha para mim e eu sinto medo.

“Você não pode esconder Bree aqui para sempre,” ele diz, em tom comedido. “Você acha que está segura aqui, mas eles virão atrás de você. Leve Bree e se escondam.”

Ele se levanta, vem até mim, me segura pelos ombros e me sacode, seus olhos queimando com tamanha intensidade. “VOCÊ ME OUVIU, SOLDADO?” ele berra.

Papai desaparece e, ao mesmo tempo, todas as portas e janelas abrem de uma vez só, em uma cacofonia de vidros quebrados.

Em nossa casa, uma dúzia de comerciantes de escravos invade, armas em punho. Eles estão vestidos com seus conhecidos uniformes inteiramente pretos, da cabeça aos pés, com máscaras negras e correm para todos os cantos da casa. Um deles agarra Bree no sofá e a leva embora, berrando, enquanto outro vem em minha direção, crava seus dedos em meu braço e mira sua pistola diretamente em meu rosto.

E ele atira.

Acordo gritando, desorientada.

Sinto dedos cravados em meu braço e estou confusa sobre o que é sonho e o que é realidade, estou pronto para atacar. Eu olho para meu lado e me dou conta que é Bree, ali parada, sacudindo meu braço.

Eu ainda estou sentada na cadeira de meu pai e agora a sala está inundada com luz do sol. E Bree está chorando, histérica.

Eu pisco repetidas vezes enquanto me sento, tentando me orientar. Foi tudo um sonho? Parecia tão real.

“Tive um pesadelo terrível!” Bree chora, sem soltar meu braço.

Olho ao meu redor e vejo que o fogo se extinguiu há um bom tempo. Vejo a luz do sol e percebo que a manhã já deve estar no fim. Não acredito que dormi na cadeira – eu nunca fiz isso antes.

Eu mexo minha cabeça, tentando me livrar das teias de aranhas. O sonho me pareceu tão concreto que ainda é difícil acreditar que ele não aconteceu. Eu já havia sonhado com papai antes, muitas vezes, mas nada assim, tão próximo da realidade. Acho difícil aceitar que ele não está mais na sala comigo, neste momento, eu ainda dou uma olhada a minha volta só para ter certeza.

Bree segura meu braço, inconsolável. Eu nunca a vi desse jeito.

Ajoelho-me ao seu lado e lhe dou um abraço. Ela se agarra a mim.

“Eu sonhei que esses homens vieram e me levaram embora! E que você não estava aqui para me salvar” Bree chora, por cima de meu ombro. “Não vá!” ela suplica, histérica. “Por favor, não vá. Não me deixe!”

“Eu não vou a lugar nenhum,” eu digo, apertando-a bem forte. “Shhh… Está tudo bem… Não há nada para se preocupar. Está tudo bem.”

Mas, no fundo, eu não consigo deixar de sentir que não está nada bem. Ao contrário. Meu sonho me abalou profundamente e o fato de Bree ter tido um sonho tão perturbador assim – e ainda mais sobre o mesmo assunto – não me traz tranquilidade. Não acredito muito em presságios, mas não consigo de pensar que é tudo um sinal. Não ouvi nenhum barulho nem nenhuma agitação e, se houvesse alguém a um quilômetro daqui, eu certamente saberia.

Eu levanto o queixo de Bree, secando suas lágrimas. “Respire fundo,” eu falo.

Bree me ouve, lentamente recuperando o fôlego. Eu me obrigo a sorrir. “Veja,” eu digo. “eu estou bem aqui. Não há nada de errado. Foi apenas um pesadelo. Viu?”

Devagar, Bree concorda.

“Você só estava cansada demais,” eu continuo. “E você teve febre. Por isso teve pesadelos. Vai ficar tudo bem.”

Enquanto estou ajoelhada, abraçando Bree, me dou conta que preciso ir, escalar a montanha, explorar nossa nova casa e encontrar comida. Sinto um nó em meu estômago quando penso em falar isso para Bree e em como ela reagirá. Obviamente, o momento não poderia ser pior. Como contarei a ela que preciso deixá-la sozinha agora? Mesmo que por apenas uma ou duas horas? Uma parte de mim quer permanecer aqui, tomar conta dela o dia todo; e, ao mesmo tempo, sei que preciso ir e, quanto mais cedo eu terminar as tarefas, mais seguras estaremos. Eu não posso ficar aqui sentada, sem fazer nada, esperando o anoitecer. Nem posso arriscar mudar o plano e nos mudarmos durante o dia apenas por causa desses sonhos tolos.

Eu solto Bree de meus braços, afastando seu cabelo de seu rosto, sorrio o mais gentilmente possível. E reúno a voz mais forte e mais adulta que posso.

“Bree, eu preciso que você ouça,” eu comecei. “Eu preciso sair agora, só por um tempinho—”

“NÃO!” ela protesta. “EU SABIA! É igualzinho ao meu sonho! Você vai me deixar! E nunca mais vai voltar!”

Eu seguro seus ombros com paciência, tentando consolá-la.

“Não é nada disso,” eu digo firmemente. “Eu só preciso sair por uma ou duas horas. Preciso me certificar que nossa nova casa está segura para a gente se mudar hoje à noite. E eu tenho que procurar alimento. Por favor, Bree, entenda. Eu a levaria comigo, mas você está muito doente agora e precisa repousar. Estarei de volta em algumas horas. Eu prometo. E então, à noite, nós vamos lá juntas. E sabe qual a melhor parte disso?”

Ela olha para mim, lentamente, ainda chorando e, eventualmente, sacode a cabeça.

“A partir de hoje à noite, nós estaremos lá em cima, juntas, seguras e a salvos, e teremos fogueira todas as noites e toda a comida que você quiser. E eu posso caçar e pescar e fazer tudo o que precisamos lá, na frente da casa. Eu nunca mais a deixarei de novo.”

“E Sasha pode ir junto também?” ela pergunta, entre lágrimas.

“E Sasha também” eu falo. “Eu prometo. Por favor, confie em mim. Eu voltarei para você. Eu jamais a deixarei.”

“Você promete?” ela pergunta.

Eu reúno toda a seriedade que consigo e a olho diretamente nos olhos.

“Eu prometo,” eu respondo.

O choro de Bree diminui e ela acaba concordando, parecendo acreditar.

Meu coração se parte, mas eu rapidamente me inclino, lhe dou um beijo em sua testa e me levanto, atravesso a sala e saio pela porta. Eu sei que se eu ficar um segundo a mais aqui, eu nunca conseguirei deixá-la.

A porta se fecha atrás de mim e eu não consigo afastar a terrível sensação de que nunca mais verei minha irmã de novo.




TRÊS


Subo a montanha sob a luz brilhante da manhã, uma intensa luz que cintila a neve. É um universo branco. O sol está tão forte que eu mal enxergo com esse clarão. Faria qualquer coisa por um par de óculos escuros ou um boné de beisebol.

Hoje, felizmente, não há vento e o dia está mais quente do que ontem; enquanto caminho, ouço a neve derretendo a minha volta, gotejando em pequenos córregos que descem montanha abaixo e caindo em grandes quantidades dos galhos dos pinheiros. A neve está mais fofa e está mais fácil andar por ela.

Olho por cima de meu ombro, inspeciono o vale que se estende abaixo e vejo que as estradas estão parcialmente visíveis de novo, sob o sol da manhã. Isto me preocupa, mas logo me censuro, aborrecida por me deixar levar pelos presságios. Deveria ser mais forte. Mais racional, como papai.

Estou usando meu capuz, mas preciso abaixar minha cabeça devido ao vento que se torna cada vez mais forte à medida que eu subo a montanha, eu gostaria de ter trazido meu novo cachecol. Eu junto minhas mãos e as esfrego, desejando ter luvas também; em seguida, dobro minha velocidade. Estou decidida a chegar lá rápido, inspecionar a casa, procurar pelo cervo e regressar rapidamente para Bree. Talvez eu pegue mais algumas compotas de geleia; isso animará minha irmã.

Eu sigo os meus rastros de ontem, ainda visíveis na neve derretida e, dessa vez, a subida está mais fácil. Em vinte minutos, estou de volta onde eu estive ontem, caminhando sobre o platô mais alto.

Estou certa de que estou no mesmo lugar de ontem, mas eu procuro pela casinha e não a encontro. Ela é tão bem escondida que, apesar de eu saber sua localização, eu não a vejo. Começo a me perguntar se estou no local correto. Eu continuo andando, seguindo minhas pegadas, até ficar exatamente no mesmo ponto do dia anterior. Eu estico meu pescoço e, finalmente, a encontro. Fico impressionada ao ver como ela é quase invisível isso me deixa ainda mais animada para morar aqui.

Fico parada, ouvindo. Tudo está silencioso, com exceção das gotas pingando. Eu examino a neve cuidadosamente, procurando por qualquer sinal de pegadas saindo ou entrando da casa (foras as minhas). Não encontro nenhuma.

Eu me dirijo até a porta, paro diante da casa e viro 360°, inspecionando a floresta em todas as direções, analisando as árvores, à procura de qualquer sinal de inquietação, qualquer evidência que alguém esteve aqui. Fico assim por pelo menos um minuto, ouvindo. Nada acontece. Nada.

Finalmente me convenço, aliviada de que este lugar é realmente nosso, só nosso.

Eu empurro a pesada porta, emperrada pela neve e uma luz brilhante inunda o interior. Abaixo minha cabeça e entro, sinto como se a visse pela primeira vez, à luz. É pequena e aconchegante, como me lembro. Vejo que o piso é feito de grandes tábuas de madeiras de verdade, que parecem ter, no mínimo, uns cem anos. Aqui dentro é silencioso. As pequenas janelas abertas, de todos os lados, também deixam passar muita luminosidade.

Analiso a habitação sob a luz, procurando por qualquer coisa que eu possa ter deixado passar– mas nada encontro. Olho para baixo e encontro a alça da porta do alçapão, me ajoelho e o abro com um puxão. Sobe uma nuvem de poeira, que dança na luz do sol.

Desço pela escada, dessa vez, com toda luz refletindo, tenho uma visão muito melhor do depósito aqui embaixo. Deve haver centenas de vidros. Vejo vários frascos de geleia de framboesas e pego dois deles, enfiando um em casa bolso. Bree vai amar isso. E Sasha também.

Eu faço uma análise superficial dos outros frascos e vejo todo tipo de comida: picles, tomates, azeitonas, chucrutes. Também encontro diferentes sabores de geleias, com pelo menos uma dezena de frascos de cada um. Há mais ainda no fundo, mas eu não tenho tempo de olhar com atenção. Não consigo parar de pensar e me preocupar com Bree.

Subo a escada, fechando o alçapão e correndo para fora da casa, fechando bem a porta atrás de mim. Fico parada e olho atentamente a minha volta mais uma vez, me preparando caso alguém esteja me observado. Eu ainda temo que tudo isso seja bom demais para ser verdadeiro. Mas, uma vez mais, nada acontece. Talvez eu só esteja muito apreensiva.

Vou em direção aonde vi o cervo, a uns trinta metros de distância. Assim que chego lá, tiro a faca de caça de meu pai e a seguro do meu lado. Sei que é um tiro no escuro encontrá-lo novamente, mas talvez este animal seja uma criatura de hábitos, como eu. Não sou veloz o suficiente para persegui-lo, nem rápida o bastante para atacá-lo – também não possuo uma pistola nem nenhuma arma para caça. Mas eu tenho uma chance, minha faca. Sempre me orgulhei de acertar o alvo a trinta metros de distância. Lançamento de facas era uma das minhas habilidades que sempre impressionou meu pai – ou pelo menos o impressionava o suficiente para ele nunca me criticar nem me corrigir. Ao contrário, ele sempre se deu o crédito, dizendo que eu havia herdado seu talento. A verdade, porém, é que ele não tinha metade da minha capacidade  para lançar facas.

Fico de joelhos onde eu estava antes, me escondendo atrás de uma árvore, de olho no platô, segurando a faca em minha mão, esperando. Rezando. Só consigo ouvir o vento.

Imagino o que eu irei fazer caso veja o cervo: colocar-me-ei de pé lentamente, apontarei e lançarei a faca. Primeiro penso em mirar em seus olhos, mas então decido apontar para sua garganta: mesmo que eu erre o alvo por alguns centímetros, ainda há chance de acertá-lo em alguma outra parte. Se minhas mãos não estiverem muito congeladas, e se eu for cuidadosa, acredito que talvez, quem sabe, eu consiga feri-lo. Mas então me dou conta que há muitos “ses” e “talvez” nesse pensamento.

Os minutos passam. Parecem dez, vinte, trinta… O vento para e reaparece em rajadas; e, com elas, sinto os finos flocos de neve serem soprados das árvores para meu rosto. À medida que o tempo passa, eu tenho mais frio, fico mais congelada e começo a ponderar se isto foi uma péssima ideia. Sinto outra terrível pontada de fome e então decido tentar. Vou precisar de toda proteína que eu possa obter para que tudo dê certo – especialmente se eu for empurrar aquela moto montanha acima.

Depois de quase uma hora esperando, eu estou completamente congelada. Pergunto-me se eu deveria desistir e descer a montanha. Talvez eu devesse pegar outro peixe.

Eu decido me levantar e dar uma volta, para circular minhas extremidades e manter minhas mãos em movimento; se eu as tivesse que usar agora, elas provavelmente seriam inúteis. Assim que eu me levanto, sinto meus joelhos e costas doerem pela rigidez. Começo a andar pela neve, começando com pequenos passos. Eu levanto e dobro meus joelhos, torço minhas costas para esquerda e para a direita. Coloco minha faca em meu cinto e esfrego minhas mãos, umas nas outras, soprando nelas de novo e de novo, tentando recuperar a sensação.

De repente, eu fico paralisada. Ao longe, um galho se quebra e eu sinto esta movimentação.

Eu me viro devagar. Ali, no topo da colina, um cervo aparece. Dá passos lentamente, hesitantes, na neve, gentilmente levantando e abaixando seus cascos. Ele abaixa sua cabeça, mastiga uma folha e, cuidadosamente, dá outro passo para frente.

Meu coração dispara de entusiasmo. Eu raramente sinto que meu pai está comigo, mas hoje eu sinto. Posso ouvir sua voz em minha cabeça agora: Calma. Respire devagar. Não o deixe saber que você está aqui. Concentre-se. Se eu puder abater este animal, terei comida – comida de verdade – para Bree, Sasha e para mim por semanas. Nós precisamos disso.

Ele dá mais alguns passos na clareira e eu posso vê-lo melhor: é um cervo grande, a cerca de trinta metros. Eu me sentiria bem mais confiante se ele estivesse a dez metros de distância, até mesmo vinte. Não sei se consigo acertá-lo a esta distância. Se estivesse mais quente e se ele não estivesse se movendo, sim. Mas minhas mãos estão dormentes, o cervo está se mexendo e há muitas árvores no caminho. Simplesmente não sei. Só sei que, se eu perdê-lo, ele nunca mais virá aqui de novo.

Eu espero, analisando-o, com medo de assustá-lo. Queria que ele chegasse mais perto. Mas não parece que ele quer.

Pergunto-me o que devo fazer. Posso atacá-lo, aproximando-me o máximo possível e lançar a faca. Mas isso também seria idiotice: depois de um metro, com certeza ele sairia correndo. Pergunto-me se deveria me aproximar aos poucos. Mas também acho que isso não funcionaria. Ao menor barulho, ele partiria.

Então fico aqui, pensando. Dou um passo à frente, me posicionando para lançar a faca, caso eu precise. E este pequeno passo que foi meu erro.

Um galho se parte sobre meu pé e o cervo imediatamente levanta sua cabeça em minha direção. Trocamos olhares. Sei que ele me vê e que está prestes a disparar. Meu coração acelera, sei que esta é minha única chance. Minha mente fica petrificada.

Então entro em ação. Abaixo-me, pego a faca, dou um grande passo e, valendo-me de todas as minhas habilidades, dou um impulso e a lanço, mirando sua garganta.

A faca da Infantaria da Marinha de meu pai dá voltas no ar e eu rezo para que ela não atinja uma árvore primeiro. Eu a vejo girar, refletindo luz, é uma coisa linda. Ao mesmo tempo, vejo o cervo sair em disparada.

Está muito longe para eu enxergar exatamente o que aconteceu,  mas um momento depois, eu juro ouvir o som da faca rasgando carne. O cervo já fugiu então não sei dizer se ele está ferido.

Saio atrás dele. Chego ao lugar onde ele estava e fico surpresa o ver sangue vermelho e brilhante na neve. Meu coração palpita, animado.

Sigo o rastro de sangue, corro, pulo sobre pedras e, após cerca de cinquenta metros, eu o encontro: ali está ele, derrubado na neve, caído de lado, com as pernas se contorcendo. Vejo a faca alojada em sua garganta. Exatamente no ponto em que mirei.

O cervo ainda está vivo e eu não sei como dar fim a sua agonia. Posso sentir seu sofrimento e me sinto terrível. Quero dar lhe uma morte rápida e sem dor, mas não sei como.

Ajoelho-me e retiro a faca, inclino-me e, com um rápido movimento, corto sua garganta profundamente, esperando que isto funcione. Momentos depois, sangue começa a escorrer e, mais dez minutos depois, finalmente, as pernas do cervo param de mexer. Seus olhos param também e, finalmente, sei que está morto.

Levanto-me, olho para baixo, segurando a faca em minha mão e me sinto oprimida pela culpa. Sinto-me cruel, matando um animal tão lindo, uma criatura tão indefesa. Neste momento, é difícil pensar no quanto precisamos desse alimento, como tive sorte de pegá-lo. Tudo que consigo pensar é que, alguns minutos atrás ele estava respirando, vivo, assim como eu. E agora está morto. Olho para ele, deitado, perfeitamente imóvel na neve e não consigo deixar de me sentir envergonhada.

Esse foi o momento em que eu o ouvi pela primeira vez. A princípio, o ignorei, imaginei estar ouvindo coisas porque aquilo era simplesmente impossível. Porém, após alguns momentos, o som me pareceu mais alto, mais nítido e eu soube que ele era real. Meu coração disparou loucamente quando o reconheci. Um som que havia escutado uma vez apenas. O ronco de um motor. Um motor de carro.

Eu fiquei parada, em desespero, paralisada demais para me mover. O motor se fez ainda mais alto, inconfundível e eu sabia que isso só podia significar uma única coisa. Comerciantes de escravos. Ninguém mais se atreveria a dirigir aqui em cima, nem teria motivo para isso.

Comecei a correr a toda velocidade, deixando o cervo para trás, sai voando pelos bosques, passei a pequena casa de pedra, desci montanha abaixo. Eu não consigo correr rápido o suficiente. Penso em Bree, sentada ali, sozinha em casa, enquanto os motores roncavam cada vez mais altos. Tento aumentar minha velocidade, correndo pela encosta de nevo, tropeçando, meu coração palpitando em minha garganta.

Corro tão rápido que eu caio, de cara, ralando meu joelho e cotovelo e com o vento esgotando meu fôlego. Luto para me levantar, notando o sangue em minha perna e braço, mas sem me importar. Obrigo-me a voltar à corrida, me esforçar ao máximo.

Escorregando e deslizando, eu finalmente chego ao platô e, daqui, eu consigo ver todo o caminho da montanha até nossa casa. Meu coração salta em minha garganta: há sinais claros de carros na neve, levando diretamente à nossa casa. Nossa porta da frente está aberta. E o que é mais angustiante de tudo, eu não ouço Sasha latir.

Eu me apresso, descendo cada vez mais, posso ver dois veículos estacionados fora de nossa casa: carros de comerciantes de escravos. Completamente negros, rebaixados, parecem carros musculosos por esteroides, com pneus enormes e barras em todas as janelas. Estampado no capô,  está o símbolo da Arena Um, nítido mesmo daqui – um diamante com um chacal no centro. Eles estão aqui para alimentar a arena.

Eu corro mais rápido, descendo a colina. Preciso ficar mais leve, tiro os vidros de geleia de meus bolsos e os jogo no chão. Ouço o vidro se quebrar atrás de mim, mas não me importo. Nada mais importa agora.

Estou a cerca de cem metros da casa quando vejo os carros ligarem e começarem a sair de casa. Eles vão em direção à estrada rural. Quero chorar quando eu percebo o que acabou de acontecer.

Trinta segundos depois, eu chego a casa, passo por ela, vou direto em direção à estrada, com esperança de pegá-los. Eu já sei que a casa está vazia.

Tarde demais. Os rastros dos pneus falam por si só. Quando olho montanha abaixo, os vejo, quinhentos metros a minha frente e cada vez mais rápidos. Não há como alcançá-los, muito menos a pé.

Corro de volta para a casa, quem sabe, com alguma remota chance, Bree tenha conseguido se esconder ou foi deixada para trás. Atravesso a porta da frente, que se encontrava aberta, e fico horrorizada com o que vejo: há sangue por todos os lados. No chão, um comerciante de escravos morto, vestido de uniforme preto, sangue escorrendo de sua garganta. Ao lado dele, está Sasha, sem vida. Há sangue em seu flanco, aparentemente, um ferimento à bala. Seus dentes ainda estão na garganta do cadáver. Está claro o que aconteceu: Sasha tentou proteger Bree atacando o homem que havia entrado em casa, mordendo-lhe o pescoço. Os outros devem ter atirado nela. Mas, mesmo assim, ela não o soltou.

Eu corro pela casa, de quarto em quarto, gritando o nome de Bree, ouvindo o desespero em minhas palavras. Nem reconheço mais a minha voz: parece a voz de uma pessoa louca.

Mas todas as portas estão escancaradas, está tudo vazio.

Os comerciantes de escravos haviam levado minha irmã.




QUATRO


Fico estática na sala de estar da casa de papai, chocada. De um lado, eu sempre temi que este dia viesse; de outro, agora que veio, eu simplesmente não consigo acreditar. Estou dominada pela culpa. Foi o fogo de ontem à noite nos denunciou? Será que viram a fumaça? Por que eu não fui mais cuidadosa?

Eu também me condeno por ter deixado Bree sozinha esta manhã – especialmente depois de ambas terem tido pesadelos tão terríveis. Consigo ver seu rosto, choroso, implorando para eu não sair. Por que eu não lhe dei ouvidos? Por que não acreditei em meus próprios instintos? Olhando para trás, não posso deixar de sentir que papai tentou me avisar. Como eu não prestei atenção?

Nada mais disso importa agora, preciso parar e pensar por um instante. Eu tenho que agir, não estou nem um pouco pronta para desistir e deixar que Bree se vá. Começo a correr pela casa, não posso perder nenhum segundo precioso, quero partir logo e perseguir os comerciantes de escravos, quero resgatar Bree.

Vou até o cadáver do comerciante de escravos e o examino rapidamente: ele está vestido com seu famoso uniforme militar, completamente negro: botas de combate pretas, calças militares pretas e uma camiseta de manga longa preta coberta por um colete de aviador bem justo, também preto. Ele ainda usa a máscara com o símbolo da Arena Um – a marca dos comerciantes de escravos – e também utiliza um capacete preto. Este último, de nada lhe serviu: Sasha conseguiu mordê-lo na garganta do mesmo jeito. Eu desvio meu olhar para ela e me sensibilizo. Sou tão grata por ela ter entrado em uma briga dessas. Sinto-me culpada por deixá-la aqui sozinha também. Vejo seu corpo e prometo a mim mesma que, após recuperar Bree, voltarei e lhe darei o funeral que ela merece.





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O bestseller número 1! Nova Iorque. 2120. Os americanos foram dizimados, eliminados pela Guerra Civil. Neste mundo pós-apocalíptico, sobreviventes são poucos e raros. E a maioria daqueles se sobreviveram viraram membros de gangues violentas, predadores que vivem nas grandes cidades. Eles patrulham o campo em busca de escravos, novas vítimas para levarem às cidades para seu esporte favorito: Arena Um. O estádio da morte, onde os oponentes devem lutar até morrerem, das maneiras mais bárbaras possíveis. Há apenas uma regra nesse jogo: ninguém sobrevive. Nunca. Em meio à natureza, no alto das Montanhas Catskill, Brooke, de 17 anos, luta para sobreviver, escondendo-se com sua irmã mais nova, Bree. Elas tomam cuidado para evitar as gangues de comerciantes de escravos que patrulham o interior. Mas, um dia, Brooke comete um descuido e Bree acaba sendo capturada. Os comerciantes de escravos a levam embora, em direção à cidade, e em direção ao que com certeza resultará em morte. Brooke, filha de um fuzileiro da Marinha, foi criada para ser forte, para nunca desistir em uma luta. Quando sua irmã é raptada, Brooke não perde tempo, vai atrás dela, usa tudo ao seu dispor para perseguir os comerciantes de escravos e pegar sua irmã de volta. E, durante o caminho, ela conhece Ben, 17, outro sobrevivente como ela, cujo irmão também foi sequestrado. Juntos, eles se aventuram em uma missão de resgate.

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