Книга - Cian

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Cian
Charley Brindley


O encontro entre Cian e Saxon no coração da Amazônia é muito mais que a simples reunião de duas pessoas; é a junção de dois mundos distintos. Suas explorações e aventuras os leva às profundezas da floresta tropical, e então, meio caminho ao redor do mundo na busca por um lugar para se assentarem. Mas ao invés de encontrarem paz, seu senso de justiça os faz viajar da Europa à Nova York. e então de volta ao Brasil, onde eles devem confrontar a organização criminosa da fria e ambiciosa Oxana, que seguirá a qualquer custo em seu tráfico de animais silvestres, assim como mulheres e crianças.





Charley Brindley

Cian




Cian




por


Charley Brindley




charleybrindley@yahoo.com


www.charleybrindley.com




Traduzido por


Lucas de Oliveira




Editado por


Karen Boston (https://bit.ly/2rJDq3f)


Site https://bit.ly/2rJDq3f




Arte da capa e contracapa de


Lynette Yencho




lynette@lynettestudio.com


www.lynettestudio.com

© 2019 Charley Brindley, todos os direitos reservados

Primeira edição fevereiro de 2019


Este livro é dedicado à memória de minha mãe:


Avice Exom Walker Jensen



Outros livros de Charley Brindley


(em breve também em português)

1. O Poço de Oxana

2. A última missão da sétima cavalaria

3. Raji Livro Um: Octavia Pompeii

4. Raji Livro Dois: A Academia

5. Raji Livro Três: Dire Kawa

6. Raji Livro Quatro: A Casa do Vento Oeste

7. A Elefante de Hannibal: Livro Um

8. A Elefante de Hannibal: Livro Dois

9. Ariion XXIII

10. O último assento no Hindenburg

11. Libélula vs Monarca: Livro Um

12. Libélula vs Monarca: Livro Dois

13. O Mar da Tranquilidade 2.0 Livro 1 Exploração

14. O Mar da Tranquilidade 2.0 Livro 2 Invasão

15. O Mar da Tranquilidade 2.0 Livro 3 As víboras de areia

16. O Mar da Tranquilidade 2.0 Livro 4 A República

17. A vara de Deus, livro 1: À beira do desastre

18. A vara de Deus, livro 2: Mar das dores

19. Não ressuscite

20. Henrique IX

21. Incubadora de Qubit


Em Breve

22. Libélula vs Monarca: Livro Três

23. A viagem a Valdacia

24. Águas paradas correm profundas

25. Maquiavel

26. Ariion XXIX

27. A última missão da sétima cavalaria Livro 2

28. A Elefante de Hannibal, Livro Três

Consulte o final do livro para obter detalhes sobre as outras publicações.




Capítulo Um


Ouvimos uma movimentação mais pro fim das docas, onde uma luz no teto iluminava uma van de entrega vermelha em um enorme contêiner. Um animal estranho se esgueirou entre o caminhão e o contêiner, fugindo para sua liberdade. Dois homens perseguiam a assustada criatura.

– Oxana vai nos escalpelar por isso! – um dos homens gritou amedrontado.

– O Boi – gritou o segundo homem enquanto corria – ela vai levar é com a SUA pele na parede, não a minha.

O animal, algum tipo de antílope, com chifres longos, curvos e de pontas afiadas na direção da nuca, certamente não era nativo da América do Sul. Ele galopou pela frente do caminhão e foi para longe.

– Cadê tua 38, Silveira? – o primeiro homem gritou. – Atira no pé daquele pequeno antes que fuja!

Rachel e seu cachorro, Hero, estavam vários metros à nossa frente, pareciam determinados a não perder a perseguição dos dois capangas ao animal selvagem.

– Rachel! – Kaitlin, minha irmã, gritou enquanto corria para sua filha de nove anos.

Eu encontrei Kaitlin no momento em que ela puxou a criança pela mochila, a levantando pela alça. Tentei conter Hero, mas ele escapou e correu latindo na direção dos dois homens, ele se enfiou sob o caminhão no momento em que um tiro ecoou do outro lado.

– Tio Saxon! – Rachel gritou enquanto lutava contra a mão de aço de sua mãe que a segurava – Eles atiraram no meu cachorrinho.

Hero saiu correndo debaixo do caminhão em alta velocidade e pulou nos braços de Rachel. Ele estava ileso, mas tremia de medo.

– Vou acabar com esse absurdo – eu disse – Isso aqui não é lugar pra disparar uma arma —minha irmã ou Rachel poderiam acabar atingidas por uma bala perdida dessas.

– Saxon – Kaitlin olhou ao redor do cais vazio. —Vamos sair daqui.

Eu mantive minha mão estendida, balançando-a para frente e para trás, enquanto seguia para a frente do caminhão – São só dois.

O nascer do sol estava a poucos minutos daquelas docas, onde uma bifurcação na selva se espalhava ao longo de uma grande faixa de floresta esculpida nas margens do Rio Negro. Dezoito quilômetros rio abaixo, a água barrenta derramava-se no verde profundo do turbilhão Amazônico. O centro comercial remoto de Manaus, no mais sombrio coração da América do Sul, estava ainda acordando naquela manhã tropical de verão.

Virei de lado para me esgueirar com minha mochila entre a frente do caminhão e uma pilha de caixas. Grunhidos abafados saiam do caminhão. A carroceria estava coberta por uma lona de camuflagem, escondendo os animais dentro.

Logo antes de passar pela frente do caminhão, ouvi um forte ruído. Os dois homens estavam na beira do cais, olhando para a água. Um deles, Silveira, eu acho, segurava um revólver.

– Eu falei pra atirar só no pé – disse o outro homem. Sua cabeça era careca e brilhante, com uma faixa de curto cabelo castanho logo acima das orelhas.

–Agora vai precisar de uma história, ele nunca esteve no contêiner de carga ein.

Quando olhou para seu parceiro, pude ver seu bigode preto e espesso. Silveira tinha uma mandíbula pesada, sombreada por um espesso crescimento de bigodes irregulares, e seus cabelos oleosos caíam em cachos. Ele era muito mais alto que o careca, e eles pareciam um par de traficantes de esquina.

– Pelo menos assim Oxana não vai ficar sabendo o quão idiota você é. – disse Silveira.

– Você deixou a coisa escapar, então eu precisei fazer parar.

Decidi conter minha coragem como Hero havia feito, mas antes que eu pudesse fugir, outro grunhido veio de dentro do caminhão, atraindo a atenção dos dois homens. Quando Silveira me viu, rapidamente escondeu a arma nas costas. Seus olhos pretos e brilhantes olharam para mim sob a espessa sobrancelha de homem das cavernas enquanto ele se aproximava. O homenzinho hesitou, mas depois o seguiu.

– Bom dia! – eu disse, tentando parecer perdido, estúpido e completamente ignorante do evento que acabara de ocorrer.

– Você sabe o caminho para Alichapon-tupec?

Silveira, o imenso homem das cavernas, parou, aparentemente surpreso com o uso de sua língua. O segundo homem parou ao lado de seu comparsa. Depois de um momento, o pequeno falou comigo com um inglês meio esquisito.

– Ele nunca vê esse tipo de conversa.

Inglês? Mas eles estavam falando português antes.

Não queria que eles soubessem que tinha ouvido ou visto alguma coisa.

O careca se inclinou para perto de Silveira e sussurrou algo para ele, mantendo os olhos em mim. Assim que Silveira acenou com a cabeça, alguém chamou meu nome.

– Saxon – disse Kaitlin do outro lado do caminhão. – Tem uns homens vindo para cá – Ela também falava em português.

O homem baixo rapidamente baixou a mão de onde esteve até agora, nas costas do parceiro, na arma. Kaitlin deu a volta na frente do caminhão, seguida por Rachel, que ainda segurava Hero nos braços. O cachorro rosnou para os dois homens.

– Tem mais ou menos uma dúzia deles – Kaitlin pendurou os polegares nas alças da mochila e sinalizou na direção em que os outros homens vinham.

– Um parece polícia.

Ela estava falando comigo, mas olhando para Silveira e seu parceiro.

Obviamente, os dois homens a entenderam. Eles trocaram olhares, depois correram em direção à traseira do caminhão, entraram no contêiner de carga e bateram as portas de metal atrás deles.

– Vamos – Kaitlin sussurrou para mim – precisamos ir.

– Está tudo bem agora – eu disse – o policial vai cuidar deles.

– Seu idiota – ela sussurrou enquanto se afastava – Não tem ninguém vindo.

Eu e Rachel corremos atrás dela.


* * * * * *

Uma hora depois, saí do pequeno café, apropriadamente chamado Extremidade das Docas, para ver se encontrava um guia. Levei um copo com café quente e deixei minha irmã e sobrinha terminarem o café da manhã. Enquanto isso eu explorava as plataformas mais instáveis que ficavam depois das docas comerciais.

Cheguei a um cais de madeira e areia que se estendia até o rio. Estava deserto, exceto por uma pessoa sentada mais pro final. Coloquei meu copo vazio numa tina de lixo e fui caminhando em direção àquela figura. Talvez eu pudesse perguntar sobre a pesca e ter um pouco de informação.

Quando parei ao lado da menina sentada, a jovem me olhou de cima a baixo. Das minhas botas de couro arranhadas, passando pelas calças cáqui e camisa, até meu chapéu Panamá desgastado. Seus olhos hesitaram ao ver meu velho isqueiro Zippo, enfiado na faixa do chapéu. Ela voltou sua atenção para a água, obviamente sem se impressionar.

Ela estava nua acima da cintura, exceto por um amuleto pendurado em um cordão de couro em volta do pescoço. Inclinei minha cabeça para ver melhor.

– Isso é um modem da IBM?

Seus olhos se estreitaram em mim como se eu tivesse dito algo inapropriado. Ela se sentou, com um joelho levantado, apoiando o pé nas tábuas do cais e usava um pedaço de tecido adamascado como saia. Sua outra perna, cortada de forma bruta de um pedaço de mogno ou algo assim, pendia na água barrenta.

Ela me ignorou, puxou um rato, que se debatia de um saco de estopa, e então jogou o roedor cinza às piranhas pretas. Sua expressão era fria, como se ela não se importasse com o que comeu quem, desde que alguém fosse devorado.

O modem dela não aparentava ser lento e antiquado, o tipo que se esperaria encontrar na selva, mas um dispositivo moderno projetado para comunicações rápidas; da largura de uma caixinha de mentos e tão fino quanto o dedo anelar de uma mulher. 'IBM' estava impresso ao lado, seguido de 'USB'; provavelmente pertencera a um notebook e era de fabricação recente. Um pedaço de couro trançado atravessava um buraco em um canto, e triângulos feitos do pelo de animais cobriam as bordas, protegendo as partes macias do seu corpo.

Era uma pena esse buraco no modem, poderia ter servido pro notebook que planejava comprar para Kaitlin, após nossa viagem de volta a Lisboa. Esse computador seria uma grande ajuda para minha irmã na organização dos dados que ela coletou.

– Você sabe o caminho para Alichapon-tupec?

A mulher olhou para mim por um longo tempo, sem falar. Seus olhos escuros tinham uma intensidade suave que era quase hipnótica, eu sentia necessidade de desviar o olhar, mas não conseguia.

Algo espirrou violentamente na água abaixo do final do cais e depois se aquietou. Um papagaio chamava seu companheiro que havia se afastado para se juntar à fêmea no lado oposto do rio. Uma brisa preguiçosa trouxe um leve cheiro de jasmim, tocando o cabelo da mulher e  as delicadas pétalas vermelhas e amarelas enfiadas na orelha esquerda. O alto sonido de um macaco reivindicando seu território ecoou por toda a floresta. Todos esses eventos preencheram o espaço em questão de segundos, mas parecia muito mais tempo enquanto a jovem ainda fitava meus olhos, como se fosse capaz de enxergar para além dos meus rasos pensamentos.

Finalmente, ela falou comigo em yanomami e apontou para algumas canoas amarradas ao longo do cais, me dispensando com o gesto. Não entendi as palavras dela, só reconheci a língua yanomami porque a ouvi falada por muitos naquela região do Amazonas. Quando fiz sinais da minha ignorância, ela me lançou um olhar que não posso dizer que era hostil, mas também não foi amigável. Irritação foi a sensação que me que veio à mente. Eu olhei para as piranhas; elas também pareciam um pouco irritadas com a minha intrusão. O rato já não estava à vista.

Ela pegou minha mão para se levantar e fiquei surpreso com sua falta de altura. Seus cabelos escuros e brilhantes estavam repartidos no meio, e o topo da cabeça alcançava apenas o nível do meu peito. Um momento antes, quando estava olhando para mim, pensei que ela fosse tão alta quanto eu, ou talvez maior. Mas era apenas uma projeção de estatura, uma aura de coragem que era surpreendentemente forte. Agora que ela estava de pé, olhava para seu tamanho, mas a aura permanecia.

Ela jogou os longos cabelos por cima do ombro, enquanto o sol brilhava em seu amuleto. Pensando no que teria acontecido ao proprietário anterior do modem quis alcançá-lo, mas antes que meus dedos o tocassem ela me deu um tapa, com força.

Fiquei tão atordoado que não consegui reagir por um momento. O impacto de sua mão no meu rosto sacudiu uma lembrança há muito enterrada. Acho que já fazia uns cinco anos desde a última vez que uma mulher me deu um tapa, a lembrança ficou nítida. Rivadávia, Argentina. No meio do verão, tão quente na varanda tórrida que nada se mexia, nem mesmo o pequeno lagarto verde que subira os galhos de um palo borracho naquela manhã, para uma refeição saborosa de moscas e formigas. Lauren me dera um tapa naquele calor subtropical e na mesma bochecha, embora não tão duro quanto o que eu acabara de receber.

Lauren era uma mulher bonita, mas talvez um pouco abaixo do nível de perfeição. Ela acreditava em todas as teorias da conspiração que ouvia e, como trabalhava em uma agência governamental, lidando, penso, com exportações e coisas do tipo, achava que pessoas obscuras estavam sempre atrás dela. Era nervosa, de temperamento quente, eu deveria saber que ela explodiria algum dia.

Lauren estava há anos e milhares de quilômetros, daquele pequeno cais no Rio Negro, onde eu acabara de levar um tapa novamente. Esfreguei minha bochecha ardente e, quando olhei para as pontas dos dedos, vi uma fina faixa de sangue, junto com um mosquito achatado.

– Um pouco exagerado, não acha? – Eu disse enquanto ajustava meu chapéu de volta no lugar.

Ela não respondeu; só me olhou de novo com um reflexo nos olhos, como se estivesse me desafiando a lhe dar um soco.

Se o mosquito era um espectador inocente de um avanço insolente ou se a mulher estava me salvando de um caso de malária eu não tinha certeza. Reconheci, no entanto, as marcas distintas das asas de um Anopheles Punctipennis, uma fêmea, é claro, e portadora conhecida da temida doença.

Se o tapa na cara era sua maneira primitiva de me manter saudável, então com que propósito? Eu nunca tinha ouvido falar de canibalismo naquela parte da Amazônia, mas também nunca havia visto uma donzela seminua bonita alimentando ratos com piranhas.

Quando ela se abaixou para pegar seu arco e aljava de flechas, senti um impulso há muito adormecido dentro de mim. Antes que esse sentimento se fundasse, ela endireitou-se e disse algo para mim, acenando para a outra bolsa. Isso eu entendi; algumas coisas não precisam de tradução.

Respirei fundo para acalmar meu coração acelerado, depois peguei o saco de ratos e a segui pelo cais, combinando meus passos com os dela. Enquanto caminhávamos, notei as fileiras de pequenos dentes ao redor da marca d' água na perna de madeira; se feita por ratos ou piranhas, eu não saberia dizer.

Chegamos a uma pequena canoa, e ela a apontou. Eu disse que estava viajando com outras pessoas.

Usando um poico de mímica, ela fez uma pergunta. Eu assumi que era sobre minha companhia.

– Duas – respondi – uma delas é dessa altura – Estendi minha mão, na altura dos ombros, para indicar a altura da minha irmã Kaitlin – E uma assim – eu disse, com a mão ligeiramente mais baixa para a altura da minha sobrinha, Rachel – E um cachorro estúpido desse tamanho.

Ela balançou a cabeça e encolheu os ombros me conduzindo a uma canoa um pouco maior. Puxei um mapa da minha mochila. Mostrava uma Manaus às margens do rio Madeira, não na confluência do rio Negro e da Amazônia, como ela realmente é. E Alichapon-Tupec estava marcada vinte e cinco quilômetros a jusante da junção dos dois rios. Se isso fosse verdade, deveríamos ter passado por Alichapon-tupec no dia anterior enquanto viajávamos rio acima no barco, o que não aconteceu; por isso minha pergunta para a jovem do cais.

Eu queria localizar a vila o mais rápido possível, para que Kaitlin pudesse coletar suas amostras de plantas, aprender o uso medicinal das folhas, e poderíamos estar voltando para o Rio de Janeiro. Se perdemos o Borboleta quando partisse para Lisboa, ficaríamos várias semanas à procura de outro transporte.

Entreguei meu mapa para a mulher, que desenrolou e estudou com grande interesse, enquanto eu observava o rosto dela passar por uma progressão de caretas, beicinhos e sobrancelhas franzidas. Meus olhos começaram a vagar, e a National Geographic Magazine veio à mente. Quando eu era criança, a única maneira de ver os seios nus de uma mulher era na biblioteca, na seção de arquivos da revista, onde anos e anos daquelas revistas de capa amarela eram armazenados.

– Bem, senhor Saxon Lostasia – dizia a bibliotecária enquanto eu tentava passar por ela enquanto saía da biblioteca.

– Estamos explorando um pouco hoje, não é?

Ela então sorria e piscava um olho enquanto eu corria para a porta. A senhorita Pentava parecia velha para mim, mas não podia ter mais de vinte e cinco anos.

Essa mulher sob meus olhos de agora seria uma ótima garota de revista, mas não uma bibliotecária muito boa.

Levei meus olhos de volta para o mapa, o tirei das mãos dela e virei com o lado direito para cima devolvendo-o. Mais uma vez, depois de um olhar de soslaio para mim, seu rosto realizou um exercício quase idêntico de expressões como antes.

Inacreditável, pensei. Ela deve estar memorizando a coisa toda; primeiro da perspectiva do sul, e agora do norte! Memória fotográfica, provavelmente.

Atrás de mim, ouvi um cachorro latindo e pude ver Rachel e Hero correndo em nossa direção. A mudança que ocorreu com a mulher quando a criança e o cachorro chegaram até ela foi surpreendente.




Capítulo Dois


Quando a jovem se ajoelhou para se elevar ao nível de Rachel, seu rosto parecia tão altivo e cativante quanto o da criança. O rosto sério e pensativo de adulta foi sumindo completamente e ficando aparentemente esquecido. Eu pensei que ela era linda antes, mas agora, estava ensolarada, envolvente, quase angelical.

–Oi.– Disse Rachel.

A jovem sorriu para Rachel e tocou Hero com a mão, o que o levou a cair no cais, rolar de costas e expor sua barriga para ser esfregada. A mulher riu e agradeceu alegremente.

– O que aconteceu com a sua perna? – Rachel perguntou em português enquanto se ajoelhava e ajudava a colocar Hero em estado de êxtase.

A mulher sorriu para Rachel, balançou a cabeça e deu de ombros. Rachel tentou a mesma pergunta em francês, mas a mulher ainda não entendia. Destemida, a garota usava língua de sinais. A mulher fez sinais para ela.

Eles estavam tendo uma conversa silenciosa, mas eu não tinha ideia do que estavam dizendo.

Kaitlin se juntou a nós e eu vi a sobrancelha direita da minha irmã subir, com um pequeno sorriso curvando seus lábios enquanto me olhava. Talvez a marca vermelha de uma mão ainda estivesse visível na minha bochecha.

Quando a jovem se levantou, desta vez não pegando minha mão para obter assistência, sua expressão mudou mais uma vez. Ela estava bastante triste quando olhou da minha irmã para mim e de volta para Kaitlin.

–Essa é minha mãe. —Disse Rachel, voltando ao português, o idioma mais confortável entre nós três.

Kaitlin era uma cópia maior de Rachel; cachos loiros, olhos cinzentos, esbeltas. Suponho que alguém possa descrever minha irmã como bem definida, mas em suas calças cargo, blusa cambraia folgada, bolsos cheios de canetas, lápis, blocos de notas, repelente de insetos e uma lupa, era difícil perceber sua silhueta.

A jovem olhou para Rachel e com uma expressão interrogativa disse algo para ela.

–Mãe. —Explicou Rachel.

A mulher franziu as sobrancelhas, obviamente sem entender.

–O nome dela é Kaitlin – disse Rachel – minha mãe. Ela juntou os braços, balançou-os no berço e apontou para si mesma.

Isso me fez sorrir. Muitas vezes no passado, nós três colidimos com a barreira do idioma. Alguns meses antes, na cidade de Antalaha, em Madagascar, estávamos tentando comprar em um movimentado mercado de carne. Depois de dez minutos usando todas as palavras e gestos que conhecíamos, Rachel mugiu como uma vaca. Isso deixou todos na loja em um silêncio atordoado enquanto olhavam para a garotinha fazendo sons estranhos. O rosto do açougueiro se iluminou enquanto respondia com algumas palavras em seu idioma, mugindo como uma vaca também logo em seguida. Seus clientes começaram a rir e vários deles vieram ao nosso auxílio com sugestões sobre vários cortes de carne que poderíamos gostar. O açougueiro feliz trouxe bifes, carne moída e peito para nossa inspeção.

A jovem notou minha expressão divertida e me deu um olhar severo.

– Ele é meu tio Saxon – disse Rachel, indicando-me. – Meu nome é Rachel – disse ela, colocando a mão no peito. – E este é o Hero – disse enquanto se ajoelhava ao lado do cachorro.

A mulher também se ajoelhou, seu rosto se iluminando um pouco. Ela então apontou para Hero erguendo as sobrancelhas.

– Hero – disse Rachel.

– Hero? – a mulher perguntou, e o cachorro ficou instantaneamente de pé lambendo o seu rosto. —Hero! – ela disse novamente rindo, depois deu um tapinha no ombro de Rachel e olhou para ela.

– Rachel – disse Rachel.

– Rabel – disse a mulher.

– Não – disse Rachel – Ra-CHEL.

– Ah! – disse ela – Ra-CHEL.

Rachel assentiu vigorosamente enquanto a mulher se levantava para dar um tapinha no ombro de Kaitlin, enquanto olhava para a garota.

– Mãe

– Não, para você ela é Kaitlin – Rachel disse —O nome dela é Kaitlin.

A mulher entendeu logo depois de algumas tentativas. Minha irmã largou a mochila na doca e estendeu a mão, e as duas apertaram. A mulher então olhou para mim, mas não me tocou.

– Esse é o meu tio Saxon – disse Rachel.

– Vio Sacton – disse ela.

Rachel riu.

–Tio Saxon – disse ela – mas você deveria chamá-lo de Saxon.

– Tio Saxon – disse ela – Tio Saxon.

– Qual o seu nome? – Kaitlin perguntou, dando um toque no ombro da mulher.

Ela falou uma frase com uma palavra no final que parecia "Scee-amn".

Ela repetiu a palavra.

–Cian? —Kaitlin disse.

Ela sorriu e disse novamente.

Tive a impressão, não sei porquê, que ela não entendia o nosso relacionamento; Kaitlin e eu sendo irmãos, em vez de marido e mulher. Mas, de que importava?

Eu me virei para minha irmã.

–Tenho certeza – eu disse – que Alichapon-tupec não pode ser mais longe que um ou dois dias daqui. Nossos suprimentos devem ser mais do que suficientes até lá.

–Você acha? – Kaitlin me deu um olhar que eu já tinha visto antes; duvidosa da minha capacidade de analisar qualquer problema em grandes detalhes.

– Essa mulher… – Eu tentei lembrar o nome dela.

– Cian – disse Kaitlin.

–Cian estudou meu mapa e, se você puder convencê-la a nos guiar, podemos encontrar sua erva exótica e voltar para o Rio na quarta-feira.

– Saxon – Kaitlin me disse – Você nunca deixa de me surpreender com o poder do seu vasto intelecto.

– Sério? Eu disse com um sorriso.


* * * * *

No início da tarde, saímos de Manaus remando rio acima. Cinco de nós estávamos na longa canoa. Cian, nossa nova guia na proa, com Hero sentado ao lado dela, seguido por minha irmã Kaitlin, depois Rachel mais para o meio do barco. Nossas mochilas estavam guardadas atrás de Rachel. Eu sentei na popa. Cian e eu trabalhávamos nos remos.

Assim que saímos do cais, manobramos em direção ao meio do rio, sentindo a parte mais fraca da corrente. Cian remava de um lado na frente e eu, atrás, remava do outro. Ocasionalmente, ela parava para observar a direção do barco. Eu acho que ela estava esperando para ver se eu poderia nos manter verdadeiramente em curso. Enquanto ela trabalhava, eu podia ver os músculos em seus ombros e costas contraindo sob seu bronzeado suave enquanto seus cabelos balançavam para frente e para trás. Ela continuou por cerca de dez minutos, sem diminuir o ritmo. Mergulhei meu remo profundamente na água marrom turbulenta e me certifiquei de que ela pudesse me sentir empurrando o barco à frente. Ela o fez e relaxou um pouco me deixando fazer a maior parte do trabalho.

Quando Cian puxou seu remo da água para um breve descanso, remei com mais força para manter nossa velocidade. Ela pegou seu cabelo comprido e brilhante, separou-o em três mechas grossas enroladas e trançou os fios na parte de trás da cabeça, prendendo com o cordão de couro de seu amuleto. Vi a transpiração brilhando em seu corpo e, enquanto ela trabalhava em seus cabelos, uma pequena gota escorreu para suas costas em direção ao cós da saia.

Se Cian pensava que Kaitlin e eu éramos marido e mulher, como eu poderia explicar a verdadeira situação para ela? Eu amava minha irmã e fiquei feliz em dar a ela o pouco de ajuda que pude com sua pesquisa, embora minha contribuição não fosse muito mais do que trabalho braçal.

Onde Kaitlin se educara na arte e na ciência da etnobotânica, eu só aprendera a ser marinheiro. Ah, e não apenas um remador de canoas. Eu era marinheiro há muitos anos e esperava ter em breve o título de primeiro major. Depois disso, eu trabalharia para obter uma licença de mestre. Mas tudo isso viria depois que Kaitlin terminasse seu projeto.




Capítulo Três


Bem, em uma coisa eu era bom: ser pai de Rachel. Éramos amigos e ela raramente mencionava o pai biológico. Sempre que Kaitlin estava ocupada com suas anotações de pesquisa, Rachel e eu íamos pescar, cozinhar e manter nosso acampamento e equipamentos em ordem. Nós dois éramos bons de pescaria, mas nem tanto em caçar. Gostávamos de cozinhar e estávamos constantemente à procura de castanhas, frutinhas, raízes, além de ervas selvagens para adicionar às nossas várias misturas e surpreender Kaitlin no jantar.

Nosso destino nesta viagem era a aldeia de Alichapon-tupec. Kaitlin sabia de uma piaçava de folhas vermelhas com poderosas propriedades medicinais que crescia apenas naquela região. Iríamos lá, tentar obter amostras da planta e, talvez, obter algum conhecimento sobre o seu uso junto aos nativos locais. Pensei sobre aventuras semelhantes em outras florestas tropicais, nós três percorremos um longo caminho juntos. Desde que Rachel nasceu, nove anos atrás, viajamos o suficiente para nos levar várias vezes ao redor do mundo.

De repente, percebi que meus pensamentos haviam se afastado do rio quando fui puxada de volta à realidade por Cian gritando algo para mim. Ela agarrou o remo e segurou à frente dela, em direção a um enorme tronco vindo diretamente sobre nós na correnteza. Virei meu remo de lado na água para retardar nosso progresso, mas foi de pouca ajuda. Quando ela jogou o remo contra o tronco, não teve efeito. Era um tronco de teca, com umas cinco vezes o comprimento da nossa canoa e provavelmente pesava umas duas toneladas. Se colidisse conosco, certamente seríamos esmagados na água, enquanto ele desceria o rio sem ser afetado. No entanto, Cian, empurrando a árvore, afastou a frente do barco do tronco e forçou a popa, onde eu estava, em direção a ela. Estendi meu remo para empurrá-lo contra a casca da árvore, depois juntos para posicionamos o barco paralelo ao tronco e, finalmente, nos afastamos dele.

Eu assisti à partida por um momento, então encontrei Cian, Kaitlin e Rachel me dando um olhar severo, como se eu quase tivesse afundado nossa pequena expedição. Mesmo Hero, seguindo a expressão irritada de Cian, me lançou um olhar de indignação. Entre meus devaneios, tinha perdido completamente a noção de onde estávamos e o que estava fazendo. Meu corpo estava trabalhando para nos manter sempre à frente, mas meus olhos não estavam observando o rio.

– Desculpe. —Baixei a cabeça e voltei a remar. —Eu vou ficar acordado agora.


* * * * * *

Subimos o rio sem parar até o pôr do sol e então preparamos acampamento.

Enquanto Cian cozinhava cinco ratos em palitos afiados, notei que minha irmã e sobrinha trocavam olhares. Elas olhavam para os ratos sobre o fogo, depois de novo uma para a outra, com as sobrancelhas a subir cada vez mais.

– Não estamos com muita fome – disse Kaitlin.

– Com certeza foi um grande café da manhã que tomamos mais cedo, hein mãe? – Rachel esfregou sua barriga supostamente cheia.

As duas aplicaram repelente de insetos e enfiaram-se nos colchonetes.

Ao longo do caminho, no rio, nós compartilhamos nossas barras de carne seca e granola com Cian, e ela nos deu um pouco de sua comida; tiras defumadas de carne e maçãs açucaradas. Ela parecia gostar da carne seca e da granola, mas não da água engarrafada que Kaitlin passava para ela.

Depois do jantar, Cian e eu fizemos algumas tentativas de conversa, usando palavras e gestos, junto com imagens desenhadas na terra. Várias horas se passaram, mas tudo o que entendemos foi que ela era uma mulher sozinha na Amazônia e eu era uma pessoa de fora procurando por algo. Quando tentei explicar o que eu procurava, não consegui. Minha irmã, é claro, estava procurando uma planta exótica e remédios tribais. Isso era fácil de entender.

Cian falou em palavras que eu não conseguia entender e fez movimentos que para mim eram tão musicais e sensuais quanto a sonata mais suave.

Eu me importo com o que realmente está sendo dito?

Nós dois alimentamos o fogo e continuamos a quebrar a barreira verbal que nos separava até cairmos no sono.


* * * * * *

De manhã, Cian fez um pão; de que eu não sei. Ela cozinhou em uma pedra plana perto da lareira, acrescentando pétalas esmagadas da bolsa de remédios. Kaitlin anotou a identificação e descrição das folhas da flor e pediu mais pão. Fiquei satisfeito ao ver que ela recuperara o apetite.

– Saxon – disse Kaitlin.

Eu olhei para ela.

– Você pode desenhar essas pétalas e o pão de nookum que Cian fez para nós? Temos que tentar encontrar as plantas e coletar amostras.

Ela me entregou uma das pétalas secas

– Seja cuidadoso; Receio que vá se desmantelar.

– Vou tentar.

Peguei cuidadosamente a pétala da mão dela, coloquei-a na pedra do café da manhã e peguei meu caderno de desenho. Ouvi Cian chamar o pão de nooc, então escrevi isso no topo da página, adivinhando a ortografia.


* * * * * *

Depois de sair do acampamento, remamos rio acima pelo resto do dia, o rio foi se estreitando cada vez mais. Encontramos uma cachoeira rochosa e fomos em sua direção. Do topo da cachoeira, caímos em um lago longo e profundo. Peguei o caderno de desenho da minha mochila e estudei Cian enquanto ela observava a água. Pareceu-me que ela esteve perdida em seus pensamentos por algum tempo. O que ela viu na água, ou em suas memórias, disse-lhe que deveríamos alterar nossa direção para sudeste. Ela indicou para mim e eu, estando na popa da canoa, ajustei nosso curso.

Kaitlin compilava notas sobre etnobotânica, enquanto Rachel passava um dedo na superfície lisa da água e eu nos mantinha no rumo.

Cian nos deixou naquela noite, depois que acampamos na margem do lago. Hero foi com ela. Por alguma razão, achei isso desconcertante. Não que eu sentisse tanta falta do cachorro, mas me senti abandonado. Andei um pouco e depois me ocupei de atualizar meu diário.

Antes do amanhecer, ela e Hero retornaram com carne fresca. O cachorro usava uma coleira de couro trançado que eu nunca tinha visto antes. Cian trabalhou próximo ao fogo, esfolando e cortando a caça, e depois pendurando as tiras de carne na fumaça. Hero e eu a assistíamos.

– Mulher surpreendente – eu sussurrei para ele.

Ele não respondeu; apenas me observou rapidamente. Depois de um momento, ele a fitou e, com um suspiro profundo, apoiou o queixo nas patas estendidas da frente.

Cian era ao mesmo tempo jovem e madura. Ela poderia ter vinte e cinco ou trinta e cinco, mas duvido que ela alguma vez considerasse seu aniversário de falecimento. Ela era jovem e esbelta no corpo, mas amadureceu muito além dos anos em sabedoria e astúcia. A Amazônia pulsava em suas veias e cintilava em seus olhos, repleta de vida, mas fria e calculista. Vida e morte foram eventos que aconteceram, não considerações emocionais. Não, não falamos dessas coisas; percebi pela maneira como ela usava sua faca, perspicácia e corpo. Talvez ela não fosse mais que uma criatura feroz no coração, mas isso não importava para mim.

A Amazônia havia fornecido o material para reconstruir o membro que faltava em seu corpo. Esse acoplamento de madeira e tecido humano a tornou ainda mais parte da natureza, e a natureza parte dela. Não apenas ela nunca havia usado sua condição para obter nossa condescendência ou simpatia como, na verdade, ela era mais ágil na floresta do que nós. Achei prudente não fazer referência óbvia a isso, embora estivesse curioso sobre o que aconteceu, esperaria até que meu conhecimento da língua dela aumentasse além de algumas palavras antes de tocar no assunto. Embora a Amazônia tivesse lhe proporcionado uma nova perna, alguém, ou alguma coisa, em sua selva havia tomado a antiga.




Capítulo quatro


Encontramos uma rica variedade de flores, trepadeiras e ervas nas margens do lago, Kaitlin estava extremamente excitada. Cian ocasionalmente colhia uma folha ou galho e indicava que poderia ser usado para curar um corte ou aliviar uma dor de cabeça.

Enquanto as duas vagueavam pela floresta o dia todo, Rachel e eu fomos pescar. Hero não estava conosco, sempre que podia escolher entre ir atrás de Cian ou sair comigo e Rachel, Cian era sua favorita. Aparentemente, a lealdade canina ao seu dono nunca fora explicada adequadamente ao vira-lata ingrato.

Rachel e eu descobrimos, para nossa intensa alegria, que o lago era lar de uma variedade imensa de tilápia vermelha. Elas não tinham medo de humanos em canoas balançando anzóis, então logo tivemos uma pegadeira com peixe saboroso para o jantar. Enquanto Rachel nos direcionava de volta à costa, decidi que nossa jornada a Alichapon-tupec poderia esperar mais alguns dias. Com a água agora azulada batendo na lateral do nosso barco e nuvens inchadas navegando no céu acima, peguei meu bloco de desenho e pensei em Cian e nas pétalas de flores que ela ocasionalmente colocava atrás da orelha. Era impressionante como em uma selva cheia de beleza, todas as orquídeas ao longo do caminho empalideciam quando comparadas a ela.


* * * * * *

Notei que Cian me olhava com mais frequência, no começo, ela parecia gostar mais de Hero que de mim; quase nunca olhava na minha direção e preferia, penso, manter distância, e assim mantive. Ela estava sempre acariciando o cachorro, levando-o para caçar com ela, guardando pequenos petiscos do prato para ele, parecia tolerar a minha presença como a dos ratos e piranhas, ou das cobras que ela parecia odiar com certa intensidade. Poucos dias atrás, eu era apenas outra coisa que precisava ser suportada, mas agora era diferente, ela acidentalmente esbarrava em mim perto da lareira, derramava chá no meu joelho ao passar ou pegava algum utensílio ao mesmo tempo que eu.

Na tarde do segundo dia no lago, Kaitlin decidiu que era hora de lavar nossas mudas de roupa, estávamos começando a exalar um odor um tanto forte.

Rachel, Kaitlin e eu esfregamos nossas roupas com barras de sabão no topo de um afloramento, onde uma pequena queda d'água borbulhava no lago. Cian ajudou Rachel a lavar a roupa, e muitos respingos aconteceram no final da fila enquanto elas riam e conversavam; Rachel tagarelava em português, enquanto Cian respondia com seu Yanomami. Logo a água espirrou em mim. Olhei na direção delas, que rapidamente desviaram o olhar como se a água tivesse vindo de outro lugar.

Cian disse algo para mim.

– O quê? – eu perguntei – Não entendo.

Ela se aproximou de mim, segurando o sabão de Rachel.

– Agora cai dimguri ensaboado.

– Dimguri? – Eu disse balançando a cabeça.

– Ra-CHEL, por favor – disse Cian à garota – faz palavra pro tio Saxon?

Elas discutiram algo por um minuto usando palavras e sinais.

– Eu acho – disse Rachel – que ela quer saber se você sabe nadar.

– Ah – respondi, acenando com a cabeça – Nadar? Sei sim.

Assim que eu disse isso, ela me empurrou da cachoeira e eu caí em um mergulho. Ali, próximo à margem, não era muito profundo, rapidamente cheguei à superfície, me debatendo um tanto na água. Todas as três riram quando Hero latiu para mim. Meu chapéu flutuou para a superfície, com o velho Zippo ainda preso na faixa. Eu alcancei o chapéu e o joguei em Cian, que riu novamente e jogou a barra de sabão para mim. Peguei-o e, depois de tirar a camisa, coloquei em uso.

Cian mergulhou de cabeça no lago e surgiu perto, afastando os cabelos do rosto. Joguei a barra de sabão para ela e logo todos, exceto Hero, estavam ali, tomando banho e jogando água para todos os lados. O cachorro correu ao longo da margem latindo, mas sem ousar entrar na água.


* * * * * *

Uma manhã, acordei rindo e me sentei no meu colchonete para encontrar Cian e Rachel brincando com um jogo de pedras lisas e coloridas. Uma delas sacudia várias pedras na mão, jogava-as no lugar que limparam na terra e, sob algum sinal, pegavam o maior número possível de uma determinada cor. No final da rodada, elas abriam as mãos, olhavam para as pedras que haviam capturado e, num frenesi, arrancavam pedras de um certo tamanho das mãos da outra. Esse último momento vinha sempre acompanhado por um ataque de riso incontrolável.

Assisti a esse jogo por algum tempo e, apesar do esforço, não consegui determinar sua fórmula, que parecia bastante fluida de uma rodada para a outra.

No entanto, notei que minha sobrinha agora tinha seus cabelos loiros ondulados amarrados nas costas, mantidos no lugar por um delicado galho e duas orquídeas de coloração lavanda. O cabelo longo e escuro de Cian estava preso em duas tranças logo acima das orelhas, a esquerda um pouco mais alta do que a direita e ambas com presilhas, uma de plástico vermelho e a outra verde.

Encontrei uma rodela do pão de Cian   pronto para mim em uma pedra quente perto do fogo, junto com uma xícara de chá com mel. Quando comecei meu café da manhã, de repente percebi que elas não estavam apenas rindo histericamente de vez em quando, mas entre as rodadas do jogo elas conversavam de um lado para o outro no que eu sabia ser a língua Yanomami! Nenhuma palavra de português foi dita.

Olhei para Kaitlin e a encontrei olhando para mim com um sorriso em seus lábios, elevei uma sobrancelha e ela deu de ombros voltando a estudar uma folha amarelada sob a lupa.




Capítulo Cinco


De manhã, saímos do lago entrando em um afluente esverdeado, que mais tarde se fundiu a um marrom.

No dia seguinte, continuamos remando até chegarmos a um lugar em que o córrego se alargava em um pequeno lago de retenção. A água tranquila era cercada por taboas e enormes vitórias-régias, flores cor-de-rosa no topo de bases translúcidas ondulavam como se perturbadas por algo que se movia embaixo delas, sapos venenosos alaranjados e pretos preenchiam vários lírios, esperando uma refeição se aproximar.

A água se aprofundou e ficou perfeitamente imóvel enquanto cortávamos sua pele fina. A lagoa sonolenta tolerou essa aflição por várias horas, depois ocorreu uma mudança quase imperceptível: a água ficou com um tom de esmeralda, depois vermelho sangue e começou a se contorcer entre as formas de vida, como se estivesse despertando. Logo estreitou-se e começou a avançar, mas na direção oposta ao seu curso original.

Meu mapa caro já não tinha mais utilidade para mim agora, nossa jornada já havia atravessado muito além da borda mastigada. Então o enrolei e devolvi à sacola, onde Cian o colocara no nosso primeiro dia.

Através em um pequeno descanso do dossel da floresta, pude ver montanhas cobertas de neve a oeste, acreditava que era a faixa norte dos Andes. Por alguma razão, todas as coisas entraram em foco naquele momento; as montanhas, a Amazônia, o riacho, a proa da canoa, tudo ficou perfeitamente claro para mim.

Nossos suprimentos acabaram, mas não queríamos comida ou bebida; nossa guia fornecera tudo, mas Cian parecia confusa com nossos rituais de café da manhã, almoço e jantar, ela comia quando estava com fome e descansava quando cansada. Até onde eu sei, ela nunca dormiu uma noite inteira e se levantava frequentemente para tomar o pulso da selva, às vezes, quando ela voltava no escuro, tocava em meu braço para mostrar o que havia encontrado. Ela queria que eu provasse e experienciasse tudo o que era dela, e eu acedi aos seus desejos, com prazer infinito.

Cian coletou folhas e raízes para Kaitlin enquanto explicava, com sinais articulados das mãos e com a ajuda das traduções de Rachel, os objetivos medicinais das plantas. As páginas do caderno iam se preenchendo de notas alegres, enquanto as folhas eram cuidadosamente pressionadas para secar.


* * * * * *

Na noite do décimo dia, descartei minha camisa e cortei minha calça cáqui em shorts. Exceto por sua saia, na altura dos joelhos, Cian não usava nada, ela era imune às multidões de insetos mordedores e espinhos, ou simplesmente os tolerava como um dos fatos da vida na selva, se ela podia suportar, eu também poderia.

Quando Cian me viu coçando as picadas de mosquito no meu peito, me levou a um bosque próximo de arbustos densos que reconheci como jovens amargões, usando a faca, ela arrancou a casca e esfregou as mãos na pele exposta da árvore. Depois disso, passou as mãos macias pelos meus braços, pernas, peito e costas, O óleo de amargão não só tinha um aroma doce e picante, mas era também um eficaz repelente de insetos.

– Bem – eu disse enquanto inspirava profundamente – isso preencherá cerca de três páginas do caderno de Kaitlin.

Ela respondeu com um leve sorriso enquanto lentamente esfregava meu bíceps, depois retornando ao meu peito. Meu coração começou a acelerar, e me perguntei se ela podia sentir a batida pelas pontas dos dedos. Como se tivesse lido meus pensamentos, ela baixou os olhos e tirou as mãos de mim. Ela então aplicou um pouco do óleo em seus próprios braços e abdômen.

– Aqui – eu disse – deixe-me ajudá-la.

Alguns minutos mais tarde, ela me levou ao luar até a base de uma enorme árvore de andiroba, depois subimos mais e mais. Em nosso berço, no topo mais alto, balançando suavemente na primeira brisa, nos aninhamos e passamos a noite juntos.


* * * * * *

Na manhã seguinte, o modem IBM de Cian estava pendurado em meu pescoço e meu isqueiro Zippo agora era seu amuleto. Ela costumava segurá-lo entre os lábios, sorrindo e nunca se cansava de abri-lo para se assegurar de que a chama ainda vivia dentro do coração metálico. Eu frequentemente verificava meu suprimento de fluído, a felicidade dela se tornara essencial para minha existência.

A presença de Cian na minha vida me mudou completamente, mas minha intrusão no mundo dela não a alterou de maneira alguma, exceto por seu lindo sorriso para mim, por isso, serei eternamente grato.

À noite, saímos do acampamento juntos, praticando minha discrição e astúcia, ela guiou minha mão adaptando-se ao vínculo humano. Juntos, capturamos, matamos, esfolamos e filetamos a carne a ser defumada sobre o fogo. Ela me ensinou uma dúzia de maneiras para capturar e matar cobras, às vezes, parecia que seu principal objetivo na vida era livrar toda a Amazônia das criaturas rastejantes que pudesse encontrar.

Comíamos quando tínhamos fome, dormíamos quando estávamos cansados, por vezes, nossos amuletos se enroscavam juntos como um ramo de capirona. Talvez eu também estivesse ficando selvagem de coração, mas não acho que isso importava para ela. Se importava, ela nunca deixara transparecer.

Na próxima vez em que embarcamos na água, o rio se alargou e, curiosamente, vagou de volta pela borda do meu mapa. Eu andei na frente do nosso navio, e ela estava à popa. Ainda assim, eu olhava para ela em busca de orientação, mas aprendi a sentir nosso curso, sentindo suas correções suaves, tentei ler a água como ela, mas só via ondas entrelaçadas.


* * * * * *

Quinze dias depois de conhecer Cian no cais de Manaus, chegamos a um assentamento abandonado às margens de um rio que, de acordo com o “Mapa Revisado da Bacia Amazônica”, era chamado Rio da Melancolia. Eu pensei que a vila era Alichapon-tupec, mas esse nome não estava marcado no mapa, na verdade, não havia nenhuma indicação no gráfico de qualquer comunidade naquele local. A vila estava completamente deserta e assim parecia estar há muitos anos,

Cian vagou, como se estivesse procurando algo, mas ela parecia estar perdida ou confusa. Enquanto a observava, senti uma crescente sensação de desconforto, finalmente, ela chegou a uma rede velha balançando suavemente na brisa do meio-dia. Eu andei ao lado dela quando Kaitlin e Rachel vieram para o outro lado. Ali, deitado no tecido podre, havia um esqueleto.




Capítulo Seis


Vários momentos se passaram antes de Cian sacar a faca e começar a cortar uma extremidade da rede, peguei minha faca para cortar a outra, e quando terminamos, enrolamos os ossos em folhas de bananeira, amarramos com videiras e os colocamos no solo. Solenemente fechamos a terra sobre eles. Cian rodeava o túmulo com velhas pedras da lareira e se ajoelhava ao lado, depois, fez um sinal sobre a terra macia e sussurrou algumas palavras. Após alguns minutos de silêncio, iniciamos a tarefa sombria de enterrar todos os outros.

Saímos da vila no final do dia e flutuamos rio abaixo por uma hora antes de desembarcar em terra para acampar novamente, todos estávamos em silêncio enquanto realizávamos nossas tarefas. Até mesmo Hero estava quieto e mexido.

Rachel juntou lenha antes mesmo que fosse pedido, Kaitlin preparou um lugar para a fogueira, enquanto eu limpava as áreas de dormir ajustando uma camada macia de folhas e grama. Cian levou as duas tigelas de couro para um fluxo de água fresca, levou a sacola dos ratos com ela. Quando ela voltou com a água, pude ver que a sacola estava vazia.

Rachel e eu trabalhamos junto à lareira, preparando nosso jantar. Assim que a água esquentou, Kaitlin desembrulhou cuidadosamente seu estoque de chá Ceyloin Lumbini e fez um pouco, ela pingou um pouco de mel na caneca e mexeu com um pedaço de canela. Eu tinha visto o Lumbini ser usado apenas uma vez desde que deixamos a Índia. Ela entregou a xícara para Cian.



– Sente-se ali com Saxon – disse Kaitlin  – Rachel e eu vamos cuidar da comida.

– Mmm – foi a exclamação de prazer de Cian enquanto provava a bebida doce e picante – Nunca senti assim antes.

Olhei para o meu copo vazio, depois para Kaitlin, mas ela me ignorou solenemente.

Todo mundo ficou em silêncio durante a nossa refeição, então Cian desenrolou seu cobertor junto ao fogo e deitou a cabeça no meu colo. Logo ela estava dormindo. Isso era incomum para ela; sempre gostava de caçar no início da noite, enquanto as criaturas da floresta estavam ativas.

–O que foi aquilo que ela sussurrou sobre o primeiro túmulo? – Perguntei a Kaitlin.

–Parecia “Janya Xaporieiz nota, Karbandar”, ou algo assim – disse Kaitlin.

– Sharbandar – Rachel a corrigiu  —A última palavra significa mãe, Cian me ensinou isso. Essas últimas três palavras significam “Para você, mãe”. Já a ouvi dizer Xaporieiz antes, mas não sei o que quer dizer.

–Mãe? – Kaitlin disse e olhou para mim – Poderia ter sido o esqueleto da mãe dela que encontramos na rede?

–Jesus Cristo! – Eu sussurrei quando um nó apertou meu estômago. Eu olhei para Cian enquanto ela dormia, e eu acariciava o cabelo de sua bochecha com meus dedos instáveis.  —Deve ter sido.

–Então era a vila dela lá atrás – disse Kaitlin – e todos os outros ossos…

–O que aconteceu com o povo de Cian? – Rachel perguntou à mãe.

Rachel sentou-se ao lado de Cian. Hero estava deitado ao lado de Rachel, com o queixo na coxa enquanto observava o rosto de Cian, que estava pacificamente em repouso.

Olhei através da lareira para minha irmã, ela não estava em sua tarefa habitual da noite com as anotações e espécimes de plantas, ao contrário, ela apenas fitava as brasas brilhantes.

– Parece-me – eu disse – que a tragédia na vila ocorreu há muito tempo, talvez vinte anos ou mais.

A floresta havia recuperado tudo ao cobrir lentamente as cabanas em ruínas com trepadeiras e raízes, apagando memórias da vila. Uma pequena tribo escavara uma casa na selva imponente, e a natureza apagara tudo, junto com o seu povo.

Depois que Cian falou sobre o túmulo de sua mãe mais cedo naquele dia, ela ficou em silêncio por alguns minutos, se levantou, limpou as bochechas e começou a procurar algo. A parte interna da aldeia estava coberta de mato, Cian afastava as ervas daninhas, observando o chão enquanto caminhava. Finalmente, ela encontrou algo e se ajoelhou, era o osso de uma perna humana. Cian sussurrou algo para Rachel quando ela começou a cavar a terra.

– Tudo deve estar no chão – Rachel traduziu as palavras de Cian e a ajudou na escavação.

Kaitlin encontrou mais alguns ossos nas proximidades.  —Uma pá seria útil agora – ela murmurou, usando um graveto para quebrar o solo.

– Aqui está um pouco mais fácil – eu disse e usei minha faca de caça para afrouxar o terreno, depois a tirei com as mãos.

Não era uma tarefa difícil, o solo era macio e disposto a ser aberto para receber os restos mortais, mas era um trabalho triste e horrível, quando começamos a encontrar os restos, descobrimos que eles estavam por toda a vila. Provavelmente, os animais caçadores haviam arrastado os ossos e, depois de tanto tempo, era impossível saber o que matou as pessoas.

–Ah, não! – Eu ouvi Rachel chorar.

Fomos para onde ela estava ao lado de uma das cabanas que desabara, ela estava olhando para o chão. Lá no mato vimos um crânio minúsculo, a julgar pelo tamanho, a criança deveria ter sido muito mais nova que Rachel quando morreu.

–Você não deveria estar vendo isso— disse Kaitlin, abraçando a filha.

Ela estava certa, mas o que poderíamos fazer? Não sabíamos com o que estávamos lidando quando chegamos à vila e também não acho que Cian sabia, pelo menos não em um nível consciente.

Cian e eu enterramos o pequeno crânio e colocamos uma pedra ao lado dele, como ela havia feito pelos outros.

Agora Kaitlin acrescentava outro graveto para crepitar sob o fogo, enquanto Cian ainda dormia com a cabeça em meu colo.

–Não sei o que aconteceu com eles, querida, pode ter sido algum tipo de doença ou um ataque – disse minha irmã em resposta à pergunta de Rachel sobre os moradores.



– Mas como Cian sobreviveu? – perguntou Rachel.

– Se foi há tanto tempo quanto imagino – eu disse —ela poderia ser apenas uma criança quando isso aconteceu.

– Sabe o que eu acho? – Kaitlin disse.

Eu olhei para ela.

– Não acredito que Cian tenha voltado lá em todos esses anos, caso contrário, os ossos estariam enterrados há muito tempo.

– Faz todo sentido. – eu disse —Ela parecia perdida e confusa até encontrar a rede da mãe, acho que foi assim que ela soube quem era: a rede e os arredores.

– Eu me pergunto o que ela fará agora – disse Kaitlin.

Eu não tinha pensado tão longe. O que Cian faria? E eu, vou fazer o que? Ela estava sozinha quando a conheci no cais, talvez ela voltasse à sua vida solitária na floresta.

– Teremos que voltar para chegar a tempo do Encontro em breve – eu disse— e ainda não encontramos Alichapon-tupec.

–Estou começando a pensar que não existe esse lugar, mas de toda forma, Cian me deu amostras e informações sobre plantas suficientes para compensar uma dúzia de Alichapon-tupecs, vou levar um mês inteiro para organizar e catalogar tudo.

– E o encontro?

– Se ainda formos a ele – disse Kaitlin.

Minha irmã, sempre estava alguns passos à minha frente.

–Eu pensei que estávamos indo para o encontro cigano nos Pirineus e depois para a Riviera no outono, não?

–As coisas mudam.

Agora eu estava em um dilema, mas aparentemente, Kaitlin já havia chegado a uma decisão. Ela não gostava muito de explicar seus planos em detalhes, e eu nunca fazia muitas perguntas, sempre preferindo descobrir as coisas por conta própria.

Decidimos nossos planos vários meses antes, no encontro, Kaitlin compilaria anotações sobre remédios ciganos e populares, depois passaríamos um ano na Riviera enquanto ela editaria e revisaria sua etnofarmacopedia, preparando-a para publicação. Mais de uma dúzia de cadernos estavam cheios de anotações e espécimes de plantas medicinais que ela colecionara ao longo dos anos, junto com os esboços que eu desenhei para ela.

Na Riviera, perto da vila de Villefranche, ficaríamos no grande hotel Miratroka. Mon ami Monsieur Victoy, dono daquele estabelecimento gentil e um cavalheiro, me dava emprego sempre que aparecíamos à sua porta. E era lá que no outono, esperávamos colocar Rachel em uma escola inglesa por um ano, enquanto sua mãe trabalhava no manuscrito. A menina era, sabíamos, muito avançada para qualquer aluno do terceiro ano, mas achamos que socializar um pouco nas salas de aula e no pátio da escola a faria bem, para equilibrar seu bem-estar intelectual.

– Eu me pergunto – eu disse – qual é a palavra Yanomami para casamento?

– Natohiya – foi a resposta rápida de Rachel.

Kaitlin olhou para cima.

– Como você sabe disso?

A menina deu de ombros.

– Nós falamos sobre isso.

– Por quê? – eu perguntei.

– No começo – disse Rachel – Cian pensava que você e minha mãe eram casados e eu era sua filha.

– Você aprendeu muito Yanomami? – Kaitlin perguntou.

– Nem tanto, mas consegui algumas palavras e, usando nossas mãos, podemos conversar um pouco. Também estou ensinando português para ela, ela ficou muito feliz quando lhe disse que o nome do meu pai é Ian e ele constrói grandes coisas no oceano.

– Ian McAveety. – disse Kaitlin – Eu não penso nele há meses, você e eu poderíamos vê-lo na Escócia. Você gostaria disso, Rachel?

– Não sei, não o vimos pouco antes de irmos para a Índia? Quando Cian disse que se você e Saxon eram casados, contei a ela sobre Ian.



– Sim – disse Kaitlin – mas isso foi há dois anos, você não sente falta do seu pai?

– Talvez – disse a garota – mas se ele me quisesse, viria nos encontrar. Ela rolou Hero para esfregar sua barriga. –Além disso – disse ela – tenho tio Saxon para cuidar de mim.

Kaitlin voltou-se para mim.

– Casamento? – ela perguntou.

– Eu estava pensando – eu disse a ela – como os Yanomami se casam.

– O chefe – Rachel disse enquanto brincava com seu cachorro – amarra suas mãos com uma videira, diz algumas palavras, então todos vão fazer uma shabona para eles, só isso e estão casados.

– O que é shabona? – eu perguntei.

– Uma cabana – disse ela – como aquelas da vila.

Eu olhei para minha irmã.

– Acho que é melhor começarmos a procurar um chefe amanhã.

Rachel sorriu esfregando a barriga do cachorro.

– Acho que você vai querer perguntar a Cian sobre isso primeiro – disse Kaitlin.




Capítulo Sete


Quando acordei depois da meia-noite para puxar o cobertor sobre Cian, ela havia partido.

Eu queria ir encontrá-la, mas nunca conseguiria, a menos que ela quisesse ser encontrada. Ela poderia estar em uma das árvores, olhando para mim naquele momento, voltando à sua aldeia ou em milhares de outros lugares na floresta escura. Talvez ela tenha tomado sua decisão e me deixado para sempre, esse pensamento me deixou arrasado, desamparado.

Eu cutuquei o fogo e olhei em volta procurando lenha, a bolsa de Cian estava ao lado da minha. Foi um alívio ver arco e as flechas ao lado do nosso equipamento, ela não deixaria aqueles para trás. Acendi o fogo e esperei.

Hero acordou com o som das chamas crepitando, quando me sentei com o cobertor puxado sobre meus ombros caídos ele se aproximou e ficou ao lado da fogueira, olhando para mim. O seu hábito de soprar uma lufada de ar pelo focinho era incrivelmente irritante. Ele bufou para mim e saiu trotando para a floresta. Que cachorro.

Ele voltou cerca de vinte minutos depois, seguido por Cian, ela estava completamente molhada.

– O que aconteceu? Eu perguntei, colocando o cobertor em volta dela.

Hero foi até Rachel e deitou-se ao lado da garota adormecida.

–Estou onde a corrente de água desce sobre o topo rochoso – disse Cian – como você diz isso?

Ela tirou a saia molhada e me entregou, coloquei-a sobre minha mochila perto do fogo para secar.

–Cachoeira?

–Sim, eu estava naquela cachoeira quando o cachorrinho Hero chegou ao lado das águas e me deu uma lambida feliz.

– Por que você estava na cachoeira?

Esfreguei o cobertor macio sobre seus ombros e braços, depois a virei em direção ao fogo para secar as costas.

– Gostar água pulando em mim, jogar todas as coisas feridas.

A combinação de yanomami e português de Cian não era tão clara, mas o uso de sinais de mão me ajudava a entender, às vezes, seu corpo me dizia tudo que eu precisava saber. Eu quase podia ver as águas frias caindo sobre ela e acalmando as dolorosas lembranças.

Eu a virei para mim, envolvi o cobertor em seu corpo e a abracei, ela deitou a cabeça no meu peito.

– Cian – eu disse depois de um momento.

Ela olhou para mim.

– Quando você foi buscar água antes do jantar, levou os ratos com você.

Ela fez que sim com a cabeça.

– Mas quando voltou, o saco estava vazio.

– Eles se foram agora.

– Para onde?

– Eu os libertei, eles correm para as árvores, nunca olham para trás.

– Ótimo.

– Saxon – disse ela, pegando um canto do cobertor para secar os cabelos – Quantas noites e dias leva para atravessar a água grande que Kaitlin fala, para ir à sua tribo?

– Minha tribo?

Ela fez que sim com a cabeça.

– Ah – exclamei – o Encontro Cigano.

Não sou cigano, pelo menos não de sangue, mas suponho que estejam tão perto de ser minha tribo quanto qualquer outra pessoa.

– É uma jornada de mais de quatro semanas a partir daqui.

– Semanas?

– Quase trinta dias – eu disse.

Ela soltou o cobertor, que escorregou das minhas mãos e caiu no chão. Olhei para minha irmã e sobrinha, elas ainda estavam dormindo.

– Mostre-me os dedos – disse ela, pegando minha mão.

Contei meus dez dedos para ela, depois seus dez dedos, depois os meus novamente.

– Até aqui?

Eu assenti.

– Você sair perto agora?

– Sim – eu disse.

– Aquele lugar que você vai, é casa de árvores como este também?

–Está nas montanhas dos Pirineus e, sim, provavelmente na floresta.

– O que são montanhas dos Pirineus?

– Muitas grandes colinas – eu disse usando minhas mãos para ajudar a explicar.

– Tem boa caça lá, certo?

– Talvez.

– Você volta para a Amazônia algum dia?

– Eu não sei

Ela olhou para mim por um longo momento e então sua expressão mudou. Seu rosto ainda tinha aquela aparência doce e aberta de quem está apaixonado e quer que seu amante o conheça, mas também via algo que não estava presente antes. Era como se ela tivesse tomado uma decisão, e seus olhos assumiram um olhar determinado.

Ela pegou sua saia quente e enrolou-a em torno de si, dobrando a borda ao longo de sua cintura para segurá-la no lugar, então levantou meu braço esquerdo até que ele se estendeu, paralelo ao chão. Ela encarou o fogo e olhou novamente para mim, deixei cair minha mão para colocá-la em seu quadril.

– Não – ela disse – devolva a mão para onde estava no ar.

Eu fiz o que ela disse, então ela estendeu o braço esquerdo para combinar com o meu, as pontas dos seus dedos alcançaram meu pulso.

– Hmm – disse ela – uma mão mais longa que o meu.

– Por que você está medindo meu braço?

Ela pegou minha mão, colocando-a nas costas dela

– Cian faz Saxon curvar e aguçar as mãos dele para poder caçar naquele outro lugar da floresta, atravessando água grande.

Talvez ela não pudesse falar minha língua tão bem, mas eu a entendia perfeitamente.


* * * * * *

Dez dias depois, eu estava no convés, final da tarde, fumando meu cachimbo e assistindo o Atlântico. Embarcamos no Borboleta Nova, pelo porto do Rio de Janeiro. O borboleta era um antigo cargueiro de 480 pés e bandeira portuguesa. Minha irmã e eu fomos contratados juntos e conseguimos passagem para Lisboa, eu servia como marinheiro e Kaitlin trabalhava na cozinha com outra mulher que veio do Egito. O nome copta dela era, para nós, impronunciável, por isso a chamávamos Cleópatra.

O trabalho a bordo serviu para nós dois, e foi satisfatório para nossos bolsos, assim como para nossas almas. Construir nosso caminho através do oceano, exatamente como havíamos feito juntos muitas vezes antes, tanto a leste quanto a oeste.

Este era o nosso segundo dia fora do Rio, e meu turno havia acabado de terminar. Era bom estar no mar novamente. Uma longa jornada no oceano elimina o pó das regalias continentais. Preocupações que me inundavam apenas uma semana antes, agora pareciam triviais em comparação com a vastidão das águas profundas que nos cercavam.

Despertei de meus devaneios por alguém se aproximar ás minhas costas, logo reconheci quem era pelo som dos passos no convés.




Capítulo Oito


– Olá, Dortworthy – eu disse sem me virar.

Com aquelas botas de caubói, ele não seria capaz de ser nem um pouco discreto.

–Boa noite, Sr. Saxon, tentei não o incomodar, era evidente que estava em profunda concentração.

Então por que não seguiu outro caminho?

Por alguma estranha razão, Dortworthy considerou nós dois amigos, ou, pelo menos, assim fingiu.

– O que você quer? – eu perguntei.

Stanley Dortworthy tinha pequenos olhos castanhos, juntos como uma cabra. Seu lábio superior provavelmente sofrera alguma deformação, ele o mantinha escondido sob um bigodinho de Hitler.

– Talvez depois do jantar possamos ter uma revanche do nosso jogo de xadrez. – Ele disse – Acho que ficou um pouco distraído na noite passada quando sua rainha caiu diante do meu peão.

– Odeio xadrez – eu disse – e você sabe o que mais…

Dortworthy me interrompeu.

– Bem, bem – disse ele – há o Sr. Choy.

Nosso segundo companheiro descia os degraus da ponte, levando-os dois por vez. Choy havia algo entre chinês e norueguês. Enquanto ele herdara todas as características faciais de seu pai chinês, olhos, cor da pele e longos cabelos negros, que ele usava em uma trança pendurada até a cintura nas costas, a constituição de seu corpo vinha do lado escandinavo. Ele tinha mais de um metro e oitenta de muitos músculos através dos ombros.

Dortworthy me deu boa noite e seguiu a conversar com ele, pobre Sr. Choy.

Encontrei nossa pequena cabine escura e vazia, Kaitlin estava ocupada na cozinha, e Rachel provavelmente estava brincando com seus novos amigos, Billy e Magnalana. Peguei meu arco das cavilhas acima do beliche e percorri com as pontas dos dedos sua curva suave enquanto pensava na construção da arma.

Duas semanas antes, Cian me levara em busca da madeira para fazer meu arco, ao que entendi, deveríamos encontrar uma árvore atingida por um raio, morta por, pelo menos, duas temporadas, mas ainda de pé. Ela encontrou e rejeitou várias até chegarmos a uma que acredito ser membro da família dos teixos. Ela subiu e cortou três galhos grossos, jogando-os para mim.

De volta ao nosso acampamento na margem do rio, ela começou a trabalhar em um dos galhos, o dividiu longitudinalmente com sua faca de pederneira, seguindo os veios da madeira. Depois de alguns minutos, ela o deixou de lado pegando o segundo. Peguei o galho descartado para examiná-lo, a madeira tinha um tom claro como de nogueira, veios finos e certa elasticidade.

– Esta não é boa? – eu perguntei.

Ela apontou com a faca para um nó na madeira. —Conlak depi – disse ela – como você fala isso?

Balancei a cabeça.

– Pularia ali, pensa o que é isso.

– Ah – eu disse – quebraria no nó.

Ela trabalhou rapidamente depois de dividir o segundo galho em três seções e selecionar a peça central para formar um arco, esta estava sem nós e bastante reto.

– Deve ficar plano aqui – disse ela – e aqui. – Ela tocou a faca nos dois lugares que se tornariam os pontos de sustentação do arco – Mas não neste lugar. – Ela indicou o meio, onde estaria a empunhadura.

Ela trabalhou os dois arcos em ambos os lados, depois os afinou nas extremidades, logo o arco foi terminado e amarrado com uma tira.

Ainda sozinho, em nossa cabine no Borboleta, peguei uma das minhas flechas da aljava de couro e pressionei, puxando a corda trançada para minha bochecha. Eu mirei através da seta em direção a uma vigia. Gostei da sensação de poder no arco e das finas linhas da flecha, com as bárbulas verde e vermelha das penas de papagaio na extremidade do entalhe.

Se um cervo galopasse por aquela vigia

–Abrir janela para enviar a afiada aos peixes, você pensa.

Minha mão pulou, mas a flecha não escapou.

– Você me assustou – eu disse.

Cian riu.

– Soriwa é o nome da palavra para irmão da árvore, acho que você quer dizer que koriwa ficou assustado.

– Pensei que você estivesse brincando com Rachel e suas amigas.

– Sim, eu mostro a elas jogo nak-nak com pedrinhas, jogar na parte de trás do barco por muito tempo a partir daqui, provavelmente.

Recoloquei meu arco em seu lugar, pisei ao lado dela e fechei a porta. Eu então a peguei em meus braços.

– Ensine-me a palavra para isso – eu sussurrei.


* * * * * *

Uma hora depois, Cian e eu, junto com o resto da família, estávamos assistindo o pôr do sol no meio do convés a estibordo.

Estibordo sendo o lado anatômico do lado direito do navio, para aqueles que não são navios muito iluminados.

Eu sorri para mim mesmo quando aquelas palavras do capitão Riley flutuaram de volta para mim através dos anos, tinha doze na época e não conhecia a popa do arco. Kaitlin tinha dez e ficou apavorada naquela manhã em que fomos apanhados, eu também estava com medo, mas tive que mostrar coragem por minha irmãzinha. Escorregamos a bordo do Castelo de Marfim duas noites antes, enquanto a tripulação estava ocupada preparando a carga. Nos escondemos em um barco salva-vidas e ficamos lá até o navio partir de Nova York. Na manhã seguinte, saímos à procura de um lugar quente para nos escondermos e, talvez, de algo para comer, quando um marinheiro português nos pegou por trás arrastando-nos para o capitão.

O capitão Riley tentou agir de modo rude, mas a pequena Kaitlin, tremendo diante dele, com seu vestido de algodão fino e sapatos gastos sem meias, derreteu sua determinação. Ele nos levou até a cozinha para um café da manhã quente e ordenou que um dos marinheiros encontrasse um casaco para minha irmã. Nós mentimos para o capitão Riley. Disse a ele que éramos órfãos e fugimos de uma velha malvada que nos fazia trabalhar o dia todo pelo pouco de comida e abrigo que ela nos deu. Kaitlin e eu tínhamos decidido a história antes, e ela concordou, enquanto rasgava um pedaço de pão e enfiava a maior parte na boca.

Nossa história era parcialmente verdadeira, nós éramos órfãos, mas não queríamos que ninguém soubesse de onde viemos porque pensávamos que seriamos entregues ao nosso único parente vivo. Nossos pais e avós haviam morrido no ano anterior em um incêndio na casa em Abilene, Kansas, deixando-nos apenas com nosso tio Bart. Ele não tinha um emprego regular, mas sempre dirigia um carro novo e tinha muito dinheiro para gastar. Papai nos disse que trabalhava para a Máfia como executor, fosse o que fosse, nas poucas vezes em que o visitávamos, ele sempre tinha uma namorada nova e estava bêbado barulhento, contando piadas obscuras e soprando fumaça de charuto em nossa cara.

Ele era irmão do meu pai, mas meu pai sussurrara para ficar longe dele, me lançou um olhar severo e disse:

–Você está me ouvindo?

Nós nunca ficamos muito tempo em sua casa.

Kaitlin e eu fugimos de um lar adotivo temporário quando ouvimos a assistente social dizendo a nossos pais adotivos que ela havia localizado um de nossos parentes e estava tentando entrar em contato com ele para ficar conosco. Decidimos nos arriscar na estrada em vez de seguir com o tio Bart, acabamos nas docas da cidade de Nova York, onde vimos o Castelo de Marfim carregando, gostamos do nome do navio e decidimos nos esgueirar adentro.

Enquanto tomávamos aquele maravilhoso café da manhã, o capitão Riley disse que estávamos longe demais no mar para retornar a Nova York, quando atracamos em Liverpool, Inglaterra, ele teria que nos entregar às autoridades e elas descobririam o que fazer comigo e minha irmãzinha. Enquanto isso, ele disse, teríamos que trabalhar para ele se quiséssemos comer e ter onde dormir.

Ele nos fez trabalhar, mas era bem leve, passávamos a maior parte do tempo com ele na ponte ou na cabine, ouvindo suas maravilhosas histórias sobre o mar e todos os lugares exóticos que ele visitou. Quando chegamos a Liverpool, Inglaterra, ele nos disse para ficarmos fora de vista e ordenou que sua tripulação ficasse de boca fechada sobre os dois jovens clandestinos a bordo, isso não seria muito difícil para os marinheiros, já que falavam apenas português. Cinco dias depois, navegamos para a Cidade do Cabo, o Castelo de Marfim estava carregado com dezoito toneladas de dinamite e quarenta e três cabeças de gado,

Kaitlin e eu fomos designados para o importante dever de cuidar dos potros e bezerros. Enquanto trabalhávamos, fiquei de olho nos caixotes de explosivos empilhados, catorze caixas de altura nos três lados dos currais. Os bezerros e potros mastigavam a alfafa de nossas mãos e pareciam não se importar com a possibilidade de explodir em pedaços a qualquer momento, assim como Kaitlin, mas eu observava continuamente qualquer mudança na carga ou fraqueza na rede de corda que segurava as caixas.

A campainha do Borboleta tocou, sinalizando o início do segundo turno de guarda e me trazendo de volta das minhas memórias. Enchi meu cachimbo na bolsa de couro, Kaitlin teve uma pequena folga da cozinha antes do jantar e eu fiquei de vigia até as quatro da manhã, dando à nossa pequena família a oportunidade de ficarmos juntos por alguns momentos antes da refeição da noite.

O sol foi tomado por uma muralha de trovoadas que se aproximava do sudeste ao longo do horizonte, proporcionando um brilho dourado através das cortinas de chuva que se inclinavam para o oceano. Cian inclinou a cabeça e depois se afastou lentamente de nós, na direção do castelo de popa, Ela parecia estar em algum tipo de transe hipnótico, movendo-se silenciosa e deliberadamente, tentando não emitir um som que dissolvesse ou afugentasse as notas exóticas e melódicas que chegavam ao seu ouvido inocente, subiu o meio lance de degraus de dois em dois passos até o tombadilho, como era necessário por causa de sua perna direita desajeitada e nós a seguimos, quase como um, imitando seus cuidadosos passos. No andar superior, encontramos Doki, o fogueiro da sala de máquinas, sentado na cabine baixa, tocando violão enquanto se recostava nas primeiras sombras do crepúsculo que se aproximava. Doki tinha quase setenta anos, imaginava, era magro e ossudo, seus cabelos longos e grossos haviam sido penteados em algum momento nos últimos dias, mas parecia que cada mecha cinza tinha vontade própria, querendo esvoaçar para múltiplas direções.

Cian ficou parada ouvindo, como se estivesse paralisada, os ágeis dedos de Doki dançavam sobre as cordas de um instrumento velho e desgastado que poderia ser mais velho que o tocador.

– O quê…? – Cian sussurrou, quase sem voz.

Não sabia se ela queria o nome da música, a natureza dos sons ou o velho, mas antes mesmo que eu pudesse dizer qualquer coisa, outra voz veio de uma espreguiçadeira nas proximidades.

–É a Sonata ao luar, de Beethoven.

Na verdade, a voz não vinha da própria cadeira, mas de sua ocupante.

Cian se virou na direção da voz, mas eu sabia que ela não havia compreendido uma só palavra dita.

–Qual o seu destino?

Esta, exatamente como a primeira afirmação, chegou a nós em perfeito espanhol castelhano e foi dirigida, pensei, a mim. Vimos a senhora balançando os pés no convés e, auxiliada pela bengala, puxar-se suavemente para uma posição ereta. Ela ajeitou seu longo vestido, de brocado vermelho, e ficou ali por um instante, nos últimos momentos amarelos do dia, obviamente acostumada a chamar a atenção de todos com sua presença.

– Insisto que me desculpem —ela continuou, caminhando em direção a uma abertura no parapeito que acabara de aparecer ao meu lado, onde Kaitlin e Rachel estavam apenas um momento antes. Observando atentamente, podia-se detectar que ela mancava um pouco em seu passo imponente. – Ouvi seu discurso e, ainda que considerasse toda minha vida não consigo determinar o idioma, apenas deduzi sua pergunta por sua atenção ao nosso músico aqui – Ela balançou a bengala na direção de Doki e depois encaminhou seu olhar para Cian – Me permite ver sua perna?

Minhas habilidades linguísticas eram boas, mas meu conhecimento de espanhol se limitava às palavras semelhantes em português.

– Com licença – eu disse em meu português cuidadoso— você pede meu braço?

Ela estava me pedindo para acompanhá-la até a amurada do navio? Dei um passo em sua direção e ela me parou com sua bengala.

– Não, não – disse ela, balançando bastão esguio na direção de Cian – Gostaria de ver a perna de sua servidora. Essas palavras vieram quase como uma ordem.

Hero rosnou em sua direção, eu vi aquele olhar selvagem em seus olhos, os pelos pretos ao longo de sua espinha endureceram, Rachel rapidamente pegou o animal para mantê-lo afastado.

Eu entendi a palavra “servidora”, como Kaitlin. A mulher estava perguntando algo sobre Cian, a quem ela assumiu ser nossa serva, eu queria esclarecê-la sobre isso, mas seria difícil no meu fraco portunhol.

– Parlez-vous français? Kaitlin perguntou. Sempre descobrimos que o francês é a língua falada com mais frequência no mar, sendo o esquecido inglês de pouca utilidade a bordo ou em qualquer outro lugar daquele tipo.

– Un petit – ela respondeu.

– Esta mulher – disse-lhe em francês – não é nossa serva, mas minha vida … quero dizer, minha esposa.

Fui até o lado de Cian, satisfeito com a realização da minha recém-descoberta habilidade poliglota, mas incapaz de disfarçar minha indignação. Repeti minha frase em Yanomami, menos a confusão de substantivos, para o benefício de Cian. Queria acabar com esse ridículo mal-entendido para que a intrusa pudesse ir para o lado despovoado do pórtico para jantar ou que queimasse no inferno… Eu me senti profundamente ofendido, se não por mim, pela mulher ao meu lado, mas Cian mostrou apenas um sorriso divertido enquanto eu empurrava meu cachimbo preto vazio no lado da minha boca emburrada.

– Ah! Mil perdões – disse a senhora, caminhando rapidamente ao redor de Cian e pegando sua mão – Por favor, desculpe a ignorância de uma velha por uma situação óbvia. Seu sorriso foi cuidadosamente projetado para ser sincero e se desculpar – Você pode me chamar de Lilian.

Eu segui traduzindo o francês bruto para Yanomami. Cian olhou para mim e perguntou o que eu tinha dito, tirei o cachimbo dos dentes cerrados e repeti a tradução.

Cian fitou Lilian.

– Eu não me ofendi.

– É que sua linda pele morena é tão diferente da palidez de seu marido.

Não achei que ela tivesse escolhido a palavra correta para minha condição de pele, então traduzi como “brancura” mesmo.

Cian sorriu para Lilian, depois olhou de volta para o violonista.

– Qual é a palavra para isso e como pode ser feito?

Na Amazônia, como em qualquer outro lugar à beira do profundo abismo conhecido como “civilizado”, sempre estava presente alguma forma de música, seja batendo ritmicamente paus em troncos ocos ou soprando na boca de uma cabaça vazia. Mas a descoberta de instrumentos de corda ia um pouco adiante no caminho da experimentação. Cian estava ouvindo música erudita pela primeira vez em sua vida. Devo admitir que nunca ouvi a Sonata ao Luar tocada ao violão, mas Doki apresentou uma excelente versão da peça originalmente escrita para o piano.

– Chamamos de música – eu disse – E isso só pode ser alcançado com uma grande quantidade de talento e muitos anos de prática.

– Talento? – ela perguntou.

Expliquei com alguma dificuldade, tentando igualar a habilidade musical de Doki à sua experiência com a selva.

– Você – eu disse a ela – pode tirar um galho da árvore, juntar algumas pedras, e fazer uma bela e útil arma, com os quais eu não poderia construir nada além de um brinquedo bruto. Doki é capaz de pegar um bloco oco de madeira com algumas cordas e usá-lo para produzir sons bonitos, eu ou você, usando as mesmas ferramentas, provavelmente não conseguiríamos nada além de uma raquete irritante.

Cian largou a mão de dona Lilian e se aproximou de Doki, enquanto ele começava outra música, ele permaneceu no telhado do castelo de popa, sentado um pouco acima de nós. Essa música eu reconheci como Scarborough Fair.

–Onde você conseguiu seu talento? —ela perguntou.

Ele piscou para mim e depois para ela com seu sorriso torto, continuando sua música sem a necessidade de supervisionar seus dedos. Finalmente, quando ele estava pronto para responder, percebi que o pobre homem tinha apenas quatro dentes restantes em sua boca, dois na parte superior e dois na parte inferior, nenhum alinhado com os outros.

Doki respondeu, em seu francês muito provincial:

– Você, minha querida, não precisa procurar talentos, mas apenas para encontrar um instrutor capaz e disposto.

Esse homem, obviamente flertando com o amor da minha vida, teve tão pouco impacto em minhas emoções quanto Hero ao lamber um pouco de mel nas pontas dos dedos de Cian. No entanto, descobri mais tarde que Doki era realmente muito bem-sucedido com as mulheres, apesar de sua aparência bruta, principalmente por conta de suas habilidades musicais. Cian, acredito, entendeu isso perfeitamente.

Dona Lilian interrompeu mais uma vez.

–Tenho certeza que Doki ficará muito feliz em ensiná-la a tocar essa coisa, mas posso ter apenas um momento do seu tempo?

Cian, com mais controle que qualquer cortesã real, com anos de educação cultural perfurada em um cérebro que alguma vez poderia esperar possuir, afastou-se de algo de tremendo interesse para ela e atendeu ao que ela deveria ter pensado que era uma função social esperada. Ela deu toda sua atenção à idosa.

–Sua roupa é tão… – Cian olhou para mim buscando por uma palavra. Não acredito que ela já tenha visto um vestido com tantos detalhes entre cortes e cores.

– Feia – eu disse a Cian.

– Não! – Ela riu, me dando uma cotovelada – É tão maravilhosa e bonita, mas não pesa seus ombros?

Cian usava uma saia bege simples e blusa creme, sem nada por baixo, Kaitlin e eu ainda estávamos tentando convencê-la a usar roupas de baixo, mas, pelo menos, sentimos alguma conquista ao fazê-la usar uma blusa. A saia tinha um caimento que a levava entre os joelhos e os pés descalços… ou o pé descalço, devo dizer. Suas roupas eram muito mais leves e casuais do que as de dona Lilian.

–Sua perna de madeira vai até o quadril? – A mulher voltou ao assunto original.

A maioria das pessoas ignorava ou tentava ignorar o membro, conduzindo a conversa a outras coisas, mas essa mulher foi muito direta em todas as suas observações. Eu não sabia se era simplesmente uma curiosidade mórbida ou se havia algo a mais em seu interrogatório.

– Logo abaixo do meu joelho – respondeu Cian, levantando a barra da saia.

A música parou e eu olhei para Doki, que levantou os olhos das pernas de Cian para mim, depois rapidamente os colocou de volta em seu instrumento e a melodia interrompida começou de onde parou.

– Perfeito! – dona Lilian exclamou.

Pedi-lhe para repetir a palavra. Ela disse de novo sorrindo para mim e então, com a bengala, bateu com força na canela direita através das camadas de tecido. Dava para perceber facilmente pelo som oco da batida que era uma perna falsa, ela, no entanto, não levantou o vestido arrebatador para nos permitir uma olhada em seu membro artificial. Em vez disso, ela me entregou a bengala, se afastou dez passos acima do convés e voltou em nossa direção, sorrindo amplamente. Enquanto ela fazia essa curva, Doki deu uma levada de foxtrot, e a senhora Lilian deu-lhe um sinal impaciente com a mão, junto com o sorriso, enquanto caminhava em nossa direção. Vimos que ela estava se movendo com esforço, mas sem mancar nem um pouco.

A campainha do jantar tocou e Lilian atou braços com Cian. As duas caminharam em direção à cabine principal, deixando o resto de nós a segui-las, convidados para jantar ou não. E eu, ainda segurando aquela bengala ridícula e me sentindo muito como um criado, segui Rachel, Kaitlin e Hero, enquanto ouvia atrás de mim as notas alegres de Aquarela do Brasil.




Capítulo Nove


O capitão Sinawey sempre fazia questão de estar presente na refeição da noite com seus passageiros e tripulação, talvez ele visse aquilo como uma convenção, um dever a ser cumprido, porque estava claro que não apreciava de fato o momento. O capitão era um homem quieto, sempre preferindo ficar em sua cabine quando não estava na ponte. Um livro sempre o acompanhava no jantar, ele o mantinha aberto ao lado do prato durante toda a refeição. Na verdade, ele nunca lia uma só palavra, apenas usava essa pretensão de concentração estudiosa como um meio de impedir as pessoas de falarem com ele. Esse hábito de evitar conversas provavelmente explicava sua falta de habilidades sociais.

Naquela noite, a mesa do capitão estava posta com sua variedade habitual de talheres incompatíveis e xícaras lascadas, arrumada com antecedência pelos auxiliares de cozinha. Ao longo da mesa, havia saleiros e pimenteiros, condimentos, vinagre, açúcar e, naquela noite em particular, o molho especial St. Elmo de Kaitlin, a presença desse tempero picante significava que provavelmente teríamos bife no jantar.

Nosso capitão tinha sobrancelhas negras e grossas, combinando com seu bigode, igualmente preto. Seus cabelos, mais grisalhos que pretos, mantinham o formato do boné, que estava pendia em uma aresta da cadeira. Na ponte em uma tempestade, ou em qualquer lugar no convés, suas instruções suaves eram executadas como comandos, sem questionamentos, mas ali, naquela confusa cabine, com um grupo que não estava sob seu comando, ele era um náufrago social à deriva boiando em direção a um recife de rochas ígneas em torno da mesa.

Dortworthy, um comerciante de fragrâncias exóticas e peles de animais, abriu a conversa da noite.

–Ah, capitão Sinawey – disse Dortworthy, limpando o canto da boca com o guardanapo – Qual é o corte de carne que nos proporcionou hoje à noite?

Ele me deu uma piscadela tentando, suponho, atrair-me para seu joguinho com o capitão. A estatura e o rosto de Dortworthy exibiam traços animalescos brutos, exceto pelo absurdo topete e pela ridícula vassoura preta no lábio superior a que chamava bigode. Apesar de suas muitas falhas, ele falava um português perfeito.

Nosso pobre capitão ficou estatelado no meio de sua garfada e olhou para o naco de carne empalada no garfo. Eu podia ver as bordas inferiores de suas bochechas enrubescerem.

– Hmm – começou o capitão – é um… – Hesitante, seus olhos encararam o bife no prato – Deve ser de algum tipo de…

Ele pegou o guardanapo, seus olhos trepidavam em um desespero silencioso. Me parecia que ele estava prestes a perder o pequeno jantar que foi capaz de consumir antes do sociável Sr. Dortworthy abrir a boca.

Nesse momento, Doki se sentou ao seu lado.

– Contrafilé – ele sussurrou.

Olhei para o nosso hóspede recém-chegado ao jantar, no momento em que ele esfarelava alguns biscoitos em sua refeição fumegante. O homem não poderia sequer sonhar com bife no jantar devido à sua deficiência dentária, no entanto, ele provavelmente estava familiarizado com cada pedaço de carne na despensa, ao contrário do nosso capitão, que só via tudo como carne.

– Acredito que havia me informado, quando estávamos tomando nosso chá na cozinha – disse ao capitão Sinawey enquanto piscava para Dortworthy – que a carne a ser preparada para a refeição da noite era um corte de contrafilé do quarto traseiro de um fino gado argentino.

Sorrindo, o capitão pegou seu copo de chá gelado

– Precisamente, Sr. Lostasia, contrafilé da melhor carne argentina.

Dona Lilian sussurrou uma palavra afiada que eu não consegui entender do outro lado da mesa, em direção a Dortworthy.

– Ah – disse Dortworthy, ignorando o comentário de dona Lilian – pois muito bem. – Ele sorriu para a xícara, piscou os olhos furtivos e continuou – E a rebelião dos condenados na Austrália, o que acha de tudo isso, capitão?

Aparentemente, o homem ainda não estava satisfeito com seu entretenimento.

– Condenados? – o capitão começou – Bem, eu…

– Capitão Sinawey – decidi brincar um pouco com o Sr. Petulante – você já navegou pelo Pacífico Sul?

– Sim, Saxon – ele respondeu rapidamente – Muitas vezes.

– E não acha difícil navegar quando está ao sul do equador e fora de vista das Estrelas do Norte?

– Ah, não senhor. O capitão voltou para a refeição quando começou a falar – Quando tenho as sete irmãs estreladas do Cruzeiro do Sul sorrindo ao meu ombro e os ventos alísios sopram o dia inteiro ao verdadeiro sudeste, não há nenhum problema em navegar diretamente para Porto de Sydney, mesmo no escuro da noite.

Eu teria jurado que a voz do homem caiu uma oitava, e podia-se ver um ar definido de confiança sobre ele que não estava lá um momento antes. Ele olhou rapidamente para Dortworthy e continuou.

– Qualquer criança poderia fazer isso, é bem verdade, sem nem meia-lua para iluminar o caminho – disse ele com um sorriso.

– E onde você aprendeu navegação? – Kaitlin perguntou.

Minha irmã estava sentada do outro lado da mesa, à direita do capitão, à minha esquerda, uma conversa tranquila entre Lillian e Cian, com a ajuda de Rachel, que estava sentada entre elas.

– Bem – disse o capitão, virando-se para minha irmã e se interessando pelo assunto – o sextante em si aprendi quando não passava de um rapaz, com capitão Hampton. Um pouco mais tarde, a bordo do Rainha das Neves, com destino a Alexandria, no Egito, o capitão Lasiter me deu lições no astrolábio. Você conhece o astrolábio, senhorita Kaitlin?

Ela balançou a cabeça.

–Nem um pouco, capitão. Como funciona?

Na verdade, Kaitlin conhecia o funcionamento de um astrolábio, bem como do sextante, mas ela obviamente queria manter a conversa com o capitão em rota náutica. Ela sabia que eu queria me preparar para minha licença de mestre para poder capitanear meu próprio navio algum dia e aprenderia muito com o capitão Sinawey. Ao mesmo tempo, ela gostava do homem, como eu, e queria afastá-lo das águas bravias.

Kaitlin sentou-se conosco no jantar desta noite porque Cleópatra estava na cozinha, as duas se revezavam a cada noite, para que ambas pudessem ter um tempo social justo com a tripulação e os passageiros. Assim sendo, na noite seguinte seríamos agraciados pelos encantos da senhora rouca do Egito.

O capitão Sinawey poderia ser um péssimo candidato a incitar galhofas sociais, mas era um marinheiro talentoso, especialista em vela e navios, com conhecimento de todos os mares do mundo. Ele não apenas conhecia profundamente sua profissão, mas também podia comunicar suas informações em um fluxo suave, entretendo confortavelmente a maioria das pessoas na mesa por horas.

Doki fez uma pergunta sobre o Extremo Oriente e foi então que percebi, para minha surpresa, que quase uma hora havia se passado e as mulheres não estavam mais presentes. O Sr. Dortworthy havia se retirado para seus aposentos para cheirar perfumes e deitar-se sobre algumas peles mortas, enquanto isso, o capitão Sinawey havia levado eu e Doki de volta à Índia pelo Sri Lanka e explicado como o comércio de especiarias mudara o curso da navegação em mar aberto, finalmente, lançando as bases para a descoberta do Novo Mundo.

Foi nesse momento que entendi a principal diferença entre o capitão Sinawey e Dortworthy; Stanley Dortworthy não tinha caráter algum, e o capitão era o mais honrado dos homens. Seu principal traço de personalidade repousava em sua quietude e despretensão, na verdade seu maior patrimônio. Quando ele escolhia falar, certamente alguém aprenderia algo de valor. Dortworthy falou apenas para ouvir o som de sua própria voz, em vez de se envolver em uma conversa real.

Depois de me prometer um passeio pelo leme do Borboleta em meu próximo turno, o capitão Sinawey acendeu seu charuto e soprou uma nuvem de fumaça na direção do teto. Eu estava prestes a perguntar como era contornar o Cabo das Tormentas durante o inverno das extremidades Sul-americanas, quando as damas retornaram. Eu ainda não tinha acendido meu cachimbo e o capitão rapidamente apagou seu charuto, colocando-o cuidadosamente no bolso do paletó.

–Ah, capitão, você não precisa deixar de fumar – disse Dona Lilian – Meu marido aproveitava um bom charuto depois do jantar em todas as noites de sua vida e isso nunca me incomodou.

– Está tudo bem, dona Lilian, guardarei este para a próxima vigia na ponte.

– Esta seria a da meia-noite … –  pausa – capitão Sinawey?

– Esta seria… –  uma pausa igualmente perceptível – Dona Lilian.

– Vimos a perna da dona Lilian – Rachel disse animadamente – É linda.

–É mesmo? – Eu perguntei a minha sobrinha enquanto a levava no meu colo.

– Parece exatamente como uma de verdade, ela pode dobrar, virar e tudo! – Ela pegou meu cachimbo e começou a prepará-lo com tabaco demais – E tem até mesmo tornozelo e pé!

– É mesmo? – Eu olhei para Cian, que assentiu, depois olhei para Kaitlin.

– Sim, é verdade – disse Kaitlin – é totalmente articulada e coberto com um vinil macio que a torna muito realista.

– Onde você a conseguiu? – Eu perguntei à dona Lilian, pegando meu cachimbo de Rachel enquanto ela derramava mais tabaco da minha bolsa.

– Em Nova York, o Dr. Cooper fez para mim, a clínica dele fica a apenas duas quadras do Central Park.

Cidade de Nova York, infelizmente, esse era o último lugar do mundo que gostaria de visitar novamente.

Kaitlin perguntou a dona Lilian o que ela pensava sobre voltar a Madri depois de quarenta anos na Argentina. Quando a senhora idosa disse que não tinha ideia do que esperar, o Capitão Sinawey a havia contado que depois da morte de Francisco Franco em 1975, a cidade de Madri, assim como toda a Espanha, passara por grandes mudanças. Segundo ele, a transição da ditadura para a democracia foi lenta e dolorosa, mas desde então o país desfrutava uma recuperação econômica e Madri era uma metrópole movimentada e feliz, garantiu que a cidade a receberia calorosamente e ela se sentiria em casa.

Enquanto os três conversavam sobre o retorno de dona Lilian à Espanha, bem como sobre suas frequentes viagens à cidade de Nova York, Cian e eu nos afastamos.


* * * * * *

Inclinamo-nos ao parapeito da circular varanda de popa, observando a luz prateada da lua iluminando o rastro da embarcação. Raramente tínhamos tempo para ficar a sós no navio, era bom poder estar na companhia um do outro agora. Não sei quanto tempo se passou sem uma palavra entre nós, talvez quinze ou vinte minutos.

– Cian – eu disse.

Ela se virou para mim sorrindo e levantou uma sobrancelha.

– O que aconteceu com sua mãe?

Ela olhou para o mar, alcançando minha mão e envolvendo-a nas suas. Vários momentos se passaram antes que ela falasse.

– Quando você me levou para casa em minha aldeia, flutuamos naquele riacho de águas tranquilas. Ela olhou para mim —Lembra?

– Sim.

Na verdade, ela não falou tão claramente assim. Ela usava uma mistura de duas línguas, além de suas mãos, para expressar suas sensações, mas o que se segue é uma tradução bastante próxima do que ela disse.

–Tive um pequeno vislumbre da mãe, ela comigo no barco árvore, naquele mesmo rio. Brincávamos e ríamos juntas.

Ela olhou através das ondas para o horizonte e além. Eu a esperei organizar seus pensamentos.

– Por muitas temporadas, eu não tive lembranças do tempo de criança, de minha mãe e nem da aldeia. Depois que você me levou para minha antiga vila, um pouco do meu passado voltou para mim. Algumas lembranças que haviam desaparecido com facilidade, voltaram-me alegremente, como aquele barco de árvore no riacho. Eu tinha um pouco mais que a idade de Rachel, talvez doze temporadas, e ainda corria sobre as duas boas pernas. Outros me atacaram com força, quase me esmagando com o peso deles. Mais tarde, em nossa viagem pelo rio Mãe até o oceano, muitas coisas ruins vieram até mim.



– Cian – eu disse – deixe estar por enquanto.

Eu tinha medo que pudesse ser traumático demais para ela.

– Não – ela disse – há coisas que você deve saber. Quando você me levou na minha antiga aldeia…

Ela sempre dizia que eu a levava para a vila, mas o tempo todo eu estava convencido de que ela estava nos levando para Alichapon-tupec. Subindo o rio Negro e depois entrando nas profundezas da mata, procurava a orientação dela, mas aparentemente, pensou que eu a estava levando a algum lugar.

– Quando pousamos naquele lugar antigo, entrei na vila, no topo da margem do rio, e o pesadelo que me aterrorizava nas noites de todos os meus anos voltou à vida, diante dos meus olhos. Era o que deveria ser, eu, vendo aquele lugar com os velhos shabonas caídas, redes apodrecidas entre as árvores, pedras de fogo ainda em torno dos locais das fogueiras de muito mortos, mas ainda era o lar da infância. Logo que percebi aquele lugar, ele ganhou vida com pessoas, cães, pássaros e todos os sons felizes e cheiros bonitos das refeições da noite cozinhando no fogo.Vi Sharbandar, minha mãe, de joelhos junto ao fogo, fazendo ocumo.

Cian me soltou e fez movimentos com as mãos como se estivesse mexendo uma panela ao fogo.

– Eu era uma garotinha ao lado dela, cortando mamão e manga e colocando-os em uma folha fresca da bananeira.

Ela fez movimentos para estender a fruta fresca.

– A alça da minha bolsa de remédios estava sobre meu ombro, como sempre. Eu tinha orgulho de ser assistente de mamãe, que havia sido curandeira da vila por muitas temporadas. Fiquei feliz com a nova bolsa de remédios que continha um pouco de todas as coisas da bolsa dela. Sempre me acompanhava, como a dela estava com ela. Empurrei-a nas minhas costas para mantê-lo fora do meu caminho enquanto eu trabalhava com a comida. Eu era um pouco mais alta que Rachel naquele momento, meu pai estava dormindo na rede ali perto.

Usando as mãos, Cian fez um formato para a rede do pai e balançou-a para frente e para trás.

– Meu irmãozinho brincava na terra por perto, A vila estava tranquila com a última hora de luz do dia. –  Ela engoliu em seco e roçou a bochecha com as pontas dos dedos. —De repente, veio um barulho alto da floresta para além dos limites da aldeia, e muitos homens correram para cima de nós, gritando e gritando, balançando suas armas.

– CORRA, CIANTAS! – A Mãe gritou pra mim. Ela pegou um graveto em chamas do fogo e correu para meu irmãozinho. —CORRA PARA SELVA! CORRE AGORA! NUNCA OLHE PARA TRÁS! Eles vêm nos matar. FOGE!

– Os atacantes corriam por todo lugar, ferindo e cortando minha gente. Meu pai pegou sua lança. – Cian segurou a lança imaginária e a ergueu em um movimento de arremesso – Então ele correu com nossos outros homens para levar a luta aos atacantes. Ele foi abatido imediatamente, e dois o atingiram com seus machados, mesmo depois de morto no chão.

Não fugi como minha mãe me disse, mas peguei um pedaço de pau do fogo, como ela. Eu não sabia o que fazer com isso, apenas fiquei de pé e assisti o massacre ao meu redor. Mãe ficou em cima do bebê. Ela bateu em um dos homens com o bastão em chamas quando ele veio até ela. Foi então que vi que não eram estranhos, nem brancos como você, Saxon. Eles não tinham roupas e seus corpos estavam pintados com padrões da morte, com pontos vermelhos, amarelos e pretos em toda parte. E cada homem tinha, enfiando através de um ou outro lóbulo da orelha, bem aqui, pequenas penas verdes e vermelhas do papagaio. Esse recurso único que eu conhecia das muitas histórias da minha tribo; eles eram os Xapori, às vezes chamados de Comedores de Serpentes Yanomami. Eles vieram do outro lado do rio Mãe. Nós sempre temíamos ver essas pessoas mais do que tudo.

Corri para ajudar a mãe, mas fui atingida por um Xapori. Acho que fiquei desacordada por apenas um minuto ou dois, depois acordei com sangue caindo em mim, e também ouvi rosnados, não palavras, mas mais como rosnados de animais e gritos também. Eu rolei para o lado e vi os Comedores de cobras vermelhos e amarelos cortando e cortando meu povo com suas facas finas. Eles pegaram minha mãe e a jogaram em sua própria rede, dois deles a seguram lá enquanto outro pulou em cima dela. Todo o tempo eles gritavam e gritavam com todo mundo. Eu cheguei entre minhas mãos e joelhos para ir até a mãe, mas algo acertou minhas costas. Eu gritei e virei. Um velho e feio Xapori estava em cima de mim, e quando vi o machado de pedra chegando, puxei minhas pernas para o peito, tentando me proteger. Ele bateu na perna, logo abaixo do joelho, depois segurou minha perna quebrada, e eu pude ouvir meus próprios gritos quando ele me acertou. Então outro golpe atingiu o lado da minha cabeça, bem aqui.

Quando acordei, vi através de uma névoa vermelha de sangue, os Comedores de Cobras começarem a se alimentar do meu povo e a beber seu sangue. Eles dançavam como animais loucos. Eu lentamente rolei de barriga para baixo, tentando não gritar, e comecei a me arrastar em direção à selva. Arrastava um pouco, depois descansava e arrastava um pouco mais, uma perna não servia mais. Sussurrei aquelas palavras da mãe “Corra para a selva, Ciantas. Corre agora. Nunca olhe para trás.” Tentei fazer o que a mãe disse.

Eu estava quase na selva quando ouvi um grito estrondoso e apenas tive tempo de me virar para encontrar um deles correndo em minha direção. Com minhas últimas forças, me apoiei entre mãos e joelhos novamente e tentei subir os últimos metros até a selva. Mas minha perna quebrada estava doendo muito, minhas costas e minha cabeça também. Então, tudo escureceu.

Cian ficou em silêncio por um momento, depois disse:

–De alguma forma, não me lembro de mais nada.

Jesus Cristo! Que provação terrível para uma menina.

Nenhuma palavra, na minha língua ou na dela, poderia ter qualquer significado neste momento. “Sinto muito” era a única coisa em que eu conseguia pensar, e era tão inadequado quanto inútil.

Envolvi ela em meus braços. Meu coração sentia sua dor ao perder sua família e, na verdade, toda a sua tribo. Aparentemente, ela era a única sobrevivente do massacre. Ela tinha doze anos, a perna estava quebrada e ainda tinha outros ferimentos, como é possível que tenha sobrevivido na selva, sozinha, por todos esses anos?




Capítulo Dez


– Eu acredito – disse Dortworthy – que isso é o que vocês chamam de um bom garfo.

– Chamamos – eu assobiei através do tabuleiro de xadrez quando percebi que estava prestes a perder minha rainha – isso de uma posição de sorte da sua parte.

Eu já tinha perdido meus dois cavalos nos quatro movimentos anteriores.

– Mate em três – disse o capitão, estudando o tabuleiro sobre meu ombro e aguardando ansiosamente sua chance de dar uma surra em Dortworthy.

Ele não disse isso de maneira maldosa ou sarcástica, era apenas uma afirmação, uma certeza que, de fato, um momento depois reconheci, colocando meu rei ao seu lado.

Cian sentou ao meu lado, observando atentamente. Ela sabia que eu não gostava de responder perguntas sobre xadrez enquanto jogava contra outra pessoa, então permaneceu em silêncio, embora eu soubesse que estava bastante entusiasmada para saber o que era um garfo e por que deveria levar ao final do jogo tão rapidamente.

O capitão tomou o meu lugar quando concedi o jogo ao homem. O capitão Sinawey durou um pouco mais que eu, mas, ainda assim, naufragou em menos de vinte minutos.

Eu me perguntava, como poderia esse traficante de couros e perfumes rude e vulgar jogar um xadrez tão devastador?


* * * * * *

Naquela tarde, sentamo-nos, empoleirados em banquinhos de três pernas, encarando o vento, para que os fios de cabelo se afastassem de nós. Estávamos no topo da casa de leme, a estibordo, o lugar favorito de Rachel no Borboleta, pelo menos entre os lugares que ela podia ir. Eu esperava um dia sair do convés e ouvi-la me chamando e rindo do cesto no alto da gávea. Ela adorava o teto da casa de leme porque podia ver quilômetros ao redor. Convencida de que seria capaz de ver a Europa à frente e a América do Sul atrás de nós da Gávea, ela sempre implorou para ir até lá. Eu ainda não havia desistido e proibi Cian de ceder aos modos inteligentes de persuasão da criança. Mas eu sabia que era apenas uma questão de tempo até que as duas subissem lá, nem que fosse apenas pela diversão boba de me aflorar os nervos.

Com um pedaço de pano de vela em volta do pescoço e cobrindo meus ombros, Cian cortou meu cabelo. Depois de muitos meses sem um corte de cabelo real, fiquei feliz por me livrar dele. Eu nunca gostei de ir ao barbeiro, mas me pareceu que havia algo muito sensual em uma mulher aparando os cabelos de um homem. Não estava apenas sentindo as mãos dela no meu cabelo, mas a carícia ocasional em meu pescoço enquanto ela trabalhava, bem como o calor dela tão perto das minhas costas. O banco, sem encosto, tornava o contato de nossos corpos muito mais íntimo do que uma cadeira comum.

Kaitlin tinha apresentado as tesouras à Cian quando ainda estávamos na Amazônia, minha irmã guardava uma tesoura em um de seus muitos bolsos, além de vários outros instrumentos e apetrechos. Quando ela notou o fascínio de Cian pela ferramenta de corte, ela deu de presente a tesoura a ela e mostrou como usá-la.

As três crianças sentaram-se de pernas cruzadas aos meus pés e ouviram com muita atenção enquanto Cian contava uma de suas histórias enquanto aparava meus cabelos. Billy Kane, também necessitando de um corte de cabelo, sentava-se com o queixo em concha, quase sem piscar enquanto aproveitava cada sílaba. Magnalana MeCinco, uma garotinha adorável que, já tendo desfrutado de umas cem escovadas nos cabelos ruivos, parava Cian com perguntas a cada momento, assim como Rachel. Billy e Magnalana tinham a idade de Rachel e os três haviam se tornado grandes camaradas. Eles brincavam o dia inteiro do convés ao porão, onde encontraram esconderijos maravilhosos e muitas coisas curiosas entre a carga.

Cian falava e eu, com correções ocasionais de Rachel, traduzíamos para Billy e Magnalana, que entendiam francês muito bem. Ela usava uma mistura de Yanomami e português, enquanto eu aliviava a história em língua francesa pelo bem das crianças.

– Estava no meio da estação seca nas profundezas da floresta tropical – disse Cian enquanto cortava e penteava meu cabelo – quando a velha Miki-Leya estava ofegante nas margens verdes e quebradiças do rio Mãe. As piscadas de seus olhos foram ficando cada vez mais longas enquanto o sol ia se pondo na floresta, na margem oposta do canal de água verde e preta. O som de pássaros brigando levantou sua cabeça, e ela se esforçou para se concentrar nos galhos de uma andiroba morta, pendurada sobre o rio. Agora havia mais urubus do que antes, e um recém-chegado estava repreendendo e bicando seu irmão por um lugar no galho onde cravar suas garras e esperar.

– O que são urubus, afinal? – perguntou Magnalana.

– Urubus são pássaros – explicou Cian – que vêm comer a carne dos animais quando morrem.

– Eles comem pessoas mortas também? – perguntou Rachel.

– Sim, pessoas também.

– Ei, espere um pouco – disse Magnalana – As pessoas morrem?

Bem, essa era uma pergunta inesperada da garota. Obviamente, pelo tom de sua voz e expressão, ela não tinha sido informada acerca da finitude humana. É claro que ela tinha apenas nove anos de idade, então poderia ser que ninguém próximo a ela tivesse falecido ainda.

Eu acho que a taxa de mortalidade na selva deve ser bem maior do que a que conhecemos, devido à falta de hospitais e organizações de apoio social, além de estar mais perto do limite da incerteza. Eu me perguntava como Cian lidaria com a questão. Ela responderia de maneira grosseira e prosaica como eu imaginava que faria a uma criança Yanomami, que provavelmente já havia testemunhado a morte muitas vezes, ou mostraria compaixão por uma menininha que pode ter levado uma vida protegida até esse ponto e pode não estar totalmente preparada para a ideia de perder a mãe ou o pai para a morte? Mas eu precisava ter me preocupado menos.

– Na primavera —começou Cian – flores amarelas e vermelhas, como crianças, crescem a partir das sementes que seus pais plantaram amorosamente no solo próximo. A mãe e o pai assistem orgulhosamente seus filhos crescerem durante o verão, enquanto os protegem da melhor maneira possível do sol brilhante.

As três crianças ouviram atentamente sem interromper.

–Pouco antes do início da estação das chuvas, quando os filhos das flores crescem até a altura dos pais e estão prontos para fazer sementes e produzir suas próprias pequenas flores, o corpo dos pais retorna à terra. Feliz em saber que eles completaram suas tarefas aqui neste mundo, seus espíritos voam longe para estar com seus… – Cian hesitou e olhou para mim.

– Deus? – eu perguntei.

– Sim – ela disse – os espíritos voam para ficar com o Deus deles.

– Você quer dizer – disse Magnalana e piscou antes de continuar – que mamãe e papai vão morrer?

Antes que Cian pudesse dizer alguma coisa, Rachel respondeu por ela

– Todo mundo morre. Mesmo nós, crianças.

– Todo mundo morre?! – Magnalana exclamou – Mas que plano estúpido, quem pensou nisso?

– E se nenhuma das flores morresse, como seria? – Cian perguntou – Ou suponha que todos os animais pudessem viver para sempre? Em breve, estaríamos todos cobertos por camadas e camadas de animais famintos, se mordendo em meio a pilhas de flores murchas. Por isso, Magnalana, todos os antigos devem morrer para dar espaço aos novos, como vocês três. – Ela acenou com o pente na direção das crianças —Em breve, vocês tomarão nossos lugares quando nossos espíritos retornarem à terra. A morte não é uma coisa ruim, é necessário que a terra tenha espaço para gerar nova vida e é por isso que precisamos que os urubus comam os mortos.

– Mas que coisa feia para eles fazerem.

– Feio, sim, mas você sabe, se ninguém aparecesse para comer todos os animais mortos, logo o chão da floresta seria coberto de corpos apodrecidos e ninguém ia querer morar lá.

– Sua mãe e seu pai estão mortos? – Perguntou Magnalana.

Nesse momento eu senti as mãos de Cian descansarem em meus ombros. Busquei com a minha mão as dela.

– Sim – ela disse finalmente.

– Então, onde você já plantou suas pequenas flores?

As pontas dos dedos de Cian apertaram meus ombros, e eu sabia que ela estava sorrindo. Minhas flores vão florescer em breve, minha querida, muito em breve. Ela voltou a trabalhar no meu cabelo.

– Miki-Leya é um gato? – perguntou Rachel.

– Sim, um gato bem grande.

– Que tipo de gato? – perguntou Magnalana.

– Ela é chamada onça-pintada e é o maior e mais feroz animal da floresta tropical. Sua pele tem uma bela coleção de amarelos, marrons e pretos, de modo que, quando ela se deita perfeitamente imóvel, é possível dar um passo a poucos metros de distância e nunca a ver.

– Mas os urubus a viram – disse Magnalana.

– Os urubus podem sentir a morte a muitos quilômetros de distância, mesmo antes que a vítima tenha consciência de seu próprio fim.

– E depois, o que aconteceu? – Rachel estava ansiosa para que Cian continuasse sua história.

–À medida que a escuridão se aproximava de Miki-Leya, seu filhote veio, mas já não havia leite para ele.

– Ah – Rachel e Magnalana disseram juntas.

– Miki-Leya não comia há muitos dias, e seu leite estava agora seco. Fraca demais para caçar, e sem carne, nunca mais conseguiria produzir leite para o seu filhote.

– O gatinho é amarelo, marrom e preto também? —perguntou Magnalana.

– Não – disse Cian. Ele é escuro durante o dia como à meia-noite, assim como seu pai pantera.

– Agora, onde está esse pai? – perguntou Rachel —Ele deveria estar lá para cuidar de sua família, os homens são sempre assim – disse ela a Magnalana.

Magnalana assentiu vigorosamente em concordância, balançando os cachos vermelhos por toda parte.

– As famílias de felinos selvagens são diferentes —disse Cian – Depois que o macho e a fêmea se acasalam, a fêmea afugenta o macho, ela prefere criar seus filhos sozinha. Miki-Leya sabia o que era melhor para o seu filhote, e se ela não tivesse ficado doente pela flecha do caçador que mordeu seu quadril, ela seria capaz de cuidar dele muito bem.

– Provavelmente um caçador HOMEM – disse Magnalana com nojo enquanto ela e Rachel olhavam primeiro para o pobre Billy, depois para mim como se Billy e eu tivéssemos conspirado para atirar a flecha letal.

Cian não comentou o sexo do caçador, apenas só continuou com sua história.

–Miki-Leya fechou os olhos, querendo descansar por um momento, então ela invocaria alguma reserva de força escondida no fundo de sua alma felina e tentaria despertar, mesmo que para uma última caçada, apenas a fim de alimentar seu filhote novamente antes de morrer.

– Qual é o nome do gatinho dela? – perguntou Magnalana.

– O nome dele é Tribi-Leya.

– Aposto que Miki-Leya nunca abrirá os olhos novamente – disse Rachel, com seu lábio inferior começando a fazer beicinho.

– Miki-Leya abriu os olhos novamente. Poderiam ter se passado alguns momentos, ou horas, mas o miado suave de seu filhote a acordou de um sono profundo. Enquanto ela se esforçava para levantar a cabeça e olhar em volta na escuridão, ela viu seu filhote por perto. E adivinhem onde ele estava?

– Onde, onde? – as duas garotas exclamaram juntas.

– O filhote dela estava nos braços de uma garota humana, sentada de pernas cruzadas, assim como você, a apenas alguns metros de distância.

– Caramba! – Rachel gritou.

– Sim, caramba mesmo. – disse Cian —Quando Miki-Leya viu seu bebê nas mãos de uma humana, ela encontrou aquela reserva escondida de força e ficou de pé. Ela odiava todos os humanos, e se algum deles tentasse levar seu gatinho… bem, seria o fim dessa pessoa, seja criança ou não. Ela estava preparada para rasgar a garota em pedaços mesmo que fosse apenas para tocar uma última vez em sua cria. Quando ela rosnou e deu um passo à frente, a garota gritou de terror e puxou o gatinho para perto do peito. Ao som do grito da menina, os urubus voaram para longe sobre as águas escuras.

Miki-Leya levantou lentamente a pata da frente, com as garras afiadas estendidas, pronta para arrancar o coração da garota. A menina recuou, tentando evitar o alcance da mãe felina furiosa.

– Não, não – Rachel e Magnalana choraram quando suas mãos se agarravam.

– Mas, quando Miki-Leya estava prestes a atacar a garota, o grande gato caiu na grama, ofegante. Ela não conseguiu mais se mexer, apenas seus olhos se mexeram quando ela olhou com ódio cruel para a pequena menina.

– Qual é o nome da garota? – perguntou Magnalana.

– Bem… – Cian hesitou, sua mão com a tesoura pousando no meu ombro – Eu acho …  – Ela começou de novo.

Eu olhei para ela e vi em seu rosto um conflito de sentimentos.

Que estranho, pensei e não traduzi nenhum de seus falsos inícios.

Cian raramente era incomodada por emoções, só a vi por três vezes perturbada. A primeira foi depois que ela encontrou os ossos de sua mãe na rede podre da vila, e a segunda vez foi quando eu a encontrei, sozinha em nossa cabine no navio, soluçando e esfregando o toco de sua perna direita.

Ela estava no meu beliche, onde preferia dormir quando era meu turno. Trouxe-a para os meus braços, mas não falei nada. Cada vibração e tremor do corpo de Cian era tão familiar para mim quanto os meus; ela queria conforto, não conversa. Depois de alguns minutos, ela limpou as bochechas e me beijou. Ela se sentou e eu a ajudei com o suporte de couro que ela havia formado para a perna. Foi projetado para amortecer a extremidade de seu membro de madeira depois de ter sido preso pelas tiras que envolviam seu joelho e a parte inferior da coxa.

– Dói frequentemente? – eu perguntei.

– Sim. – Ela afastou os cabelos do rosto enquanto terminava com as tiras de couro – Especialmente quando o tempo está mudando.

Esse era o máximo da extensão de qualquer reclamação que eu alguma vez ouvira dela.

– O barco salva-vidas está vazio?

Ela pegou minha mão e a pressionou contra o peito.

Em resposta, eu apenas sorri e a conduzi porta afora, depois seguimos à popa de estibordo, onde um barco salva-vidas de seis metros estava preso ao convés, com a lona solta em uma extremidade.

Uma criança impaciente nos levou de volta ao telhado da casa do leme e à história de Cian. Tão rapidamente quanto seu rosto pesara, ela afastou as lembranças com um aceno do pente e voltou a cortar.

– Vamos chamar a garota de Ravana.

– Esse é o nome verdadeiro dela? – perguntou Magnalana.

– Eu acho que o nome dela é Kate – disse Rachel.

– Não, Kate não. – disse Magnalana – Você acha que é sua mãe, Kaitlin?

–Não, eu não. Só gosto de Kate.

– Bem – disse Magnalana – Acho que Sierra é um bom nome para uma garota nativa.

– Desculpem, por favor. – Foi a primeira vez que Billy falou e isso nos pegou de surpresa – Eu acho que o nome dela é Cian.

Assim que olhamos para o garoto e sua estranha declaração sobre o nome da garota na história, tivemos que nos voltar para Cian e ver se ela refutaria uma ideia tão ridícula como a que o garoto sugerira.

Cian nos ignorou categoricamente, ela apenas colocou as mãos nas minhas têmporas, gentilmente virando minha cabeça para frente e continuou cortando meus cabelos. Ela ficou em silêncio por um momento antes de retomar sua história, deixando-me, e talvez às crianças também, para pensar se essa história era realmente ficcional. Cian era uma contadora de histórias talentosa, e eu suspeitava que ela estivesse tecendo um pouco de melodrama apenas para adicionar emoção à sua contação.

–Ravana viu, imediatamente, que a onça-pintada estava perto da morte, e ela sabia que se a mãe morresse o gatinho também morreria.

– Qual era a idade de Ravana? – perguntou Rachel.

– Ah, ela deveria ter onze temporadas, talvez doze —respondeu Cian —A selva fornece muitas coisas para comer, mas a única coisa que não pode dar é o leite materno. O bebê ainda não tinha idade para comer carne e, sem a mãe para alimentá-lo, ele certamente morreria.

– Onde estava a mãe de Ravana? – perguntou Magnalana – Talvez ela possa ajudar.

– Kasan, esse era o nome de sua mãe, havia deixado a vila naquela manhã. Ela foi às colinas de Calva para colher raízes de amora. Como você vê, Kasan era uma curandeira e precisava das raízes para fazer um preparado para as articulações duras e doloridas do velho chefe. As amoras crescem apenas no lado da tarde das colinas de Calva, então seria noite antes mesmo que ela voltasse. Na sua ausência, ela dissera à filha que ela, a menina, deveria entrar na floresta e reabastecer o suprimento de folhas, castanhas e raízes medicinais. A garota pegou sua bolsa de remédios e, quando sua mãe saiu pela trilha norte que levava às colinas de Calva, Ravana caminhou pela trilha sul que levava às margens do rio Mãe.

– O que é esse Rio Mãe, afinal? – perguntou Magnalana.

– Esse é o significado de Amazonas, sua bobinha – disse Rachel – Eu acho que você sabe qual é.

– Ah.

– Ravana juntou folhas a manhã toda e, ao meio-dia, acendeu o fogo e espalhou as folhas para secar nas pedras planas que havia arrumado ao redor da fogueira. Então ela espetou os quartos traseiros de uma anta que ela havia flechado mais cedo e inclinou a carne perto das chamas para assar enquanto ia a um riacho próximo pegar água. Após a refeição, ela examinou as folhas e descobriu que precisavam de mais tempo no fogo. Então, ela colocou o restante da anta em sua mochila de caça e pegou sua bolsa de remédios, pois sabia que nunca deveria deixar a valiosa bolsa muito longe de seu alcance. Ela então passou o arco por cima do ombro e deixou as folhas secando enquanto seguia descendo o Rio Mãe. Parava ocasionalmente para cavar raízes de urucum e, no final da tarde, alcançara a pequena clareira de grama marrom e quebradiça nas margens do rio.

Nesse ponto, Cian tirou alguns cabelos da minha bochecha e, com um floreio de mágico, tirou o pano dos meus ombros.

– Prontinho, acabamos.

– Não, não! – as três crianças choramingaram.

– E Tribi-Leya?

– Temos que ouvir o resto!

– Mas não há mais cabelo para cortar e em breve será a hora da janta.

– Corte o meu, corte o meu – disse Magnalana enquanto me puxava do banquinho e tomava meu lugar —Nós não estamos com fome mesmo.

– Oh, não, querida – Cian disse enquanto deixava de lado suas ferramentas e pegava os cachos longos e macios em suas mãos – Seu cabelo nunca deve ser cortado.

– Mas eu não preciso mais dele – Corte como fez com o do Sr. Saxon – implorou a garota puxando a ponta do pano de vela para cobrir os ombros —Queremos mais história.

– Bem – disse Cian – aqui está o que devemos fazer. Depois do jantar, se todos vocês comerem toda a sua comida, e  ajudarmos a senhorita Kaitlin e a senhorita Cleópatra com a limpeza da cozinha, sentaremos à mesa da cabine, tomaremos um chá e voltarei a falar sobre Tribi-Leya e… – ela fez uma pausa, franzindo a testa.

– Ravana – eu a lembrei.

– Sim – disse ela – e Ravana.

– Oba! – as crianças gritaram e saíram correndo para esperar junto à porta da cabine.




Capítulo Onze


Depois que os pratos foram lavados, a comida foi guardada nas dispensas e o fogo da cozinha apagado, alguns dos adultos conversaram sob café e xícaras de chá fumegantes. A maioria dos outros, depois de elogiar Kaitlin e Cleópatra por uma das melhores refeições que já haviam feito no mar, se retirou para suas cabines ou saiu para o convés desfrutando de um último passeio na brisa suave de verão.

As crianças se organizaram em torno de Cian, enquanto o capitão, dona Lilian, Cleópatra, Dortworthy, Kaitlin e eu nos sentávamos à mesa e conversávamos sobre o mar, o Borboleta e o quão agradável a viagem havia sido até agora. Enquanto ouvia os outros, fiquei maravilhado com o quão próximos nos tornamos, pelo menos a maioria de nós, em apenas quinze dias. Éramos muito parecidos com uma família numerosa, conversando sobre os outros e sobre nós mesmos, como se pode discutir sobre irmãos, irmãs e primos. Tudo era muito agradável e confortável até que de repente fomos silenciados por Magnalana, seu dedo repousava sobre os lábios quando ela chamou nossa atenção para Cian.

– Bem – disse Cian, percebendo que todo mundo estava olhando para ela – onde foi mesmo que eu parei?

– Ravana tinha Tribi-Leya nos braços e Miki-Leya queria matá-la… – Rachel disse.

– Então Miki-Leya caiu na grama porque sua perna doía muito. – Magnalana fez um beicinho com seu lábio inferior e entristeceu os olhos.

Billy concordou com a cabeça.

– Ah sim – disse Cian.

Ela não se incomodou com a presença de vários adultos querendo ouvir sua história, eles pareciam ansiosos para saber o que ela tinha a dizer. Ou eles ouviram falar de suas habilidades para histórias ou as crianças lhes contaram sobre a primeira parte, de qualquer maneira, um bom entretenimento é raro no mar. O capitão me passou sua bolsa de tabaco quando Cian começou.

– Como vocês se lembram, a mãe de Ravana era curandeira da vila e Ravana fora sua assistente por quase duas temporadas e reconheceu imediatamente que o quadril de Miki-Leya estava infecionando pela ferida de flecha. De fato, a ponta da flecha ainda estava no quadril, com o eixo quebrado visível logo acima da ferida. O veneno havia se espalhado e a garota ficou surpresa que o grande gato ainda estivesse vivo. Ela viu homens morrerem por muito menos. Ela também se viu involuntariamente pegando sua bolsa de remédios.

Como antes, Rachel e eu traduzimos para os outros, então Cian teve permissão para falar em seu próprio idioma. Ainda não reconhecíamos muitas palavras, e Cian nunca se cansava de explicar para nós dois, em termos mais simples, o que estava acontecendo. Nós, bem, Rachel, muito mais do que eu por causa de sua mente jovem e ágil, transmitimos o sentido aos outros ouvintes. Então, evidentemente, alguém perguntaria em português ou espanhol o que uma palavra francesa em particular significava. Ah, quanto burburinho e mistura de línguas havia, até que, finalmente frustrada, a pequena Magnalana ruiva batia na mesa e dizia

–Tá bom, nós entendemos, e depois, o que aconteceu?

Nessa explosão, Cian deu a Magnalana um olhar vesgo de macaco, o que lhe rendeu uma língua esticada da garota em troca, seguida por um riso e um sorriso extremamente fofo de ambas antes que Cian continuasse a história.

–Ravana sabia que poderia fazer um emplastro para tirar o veneno da ferida, mas seria tarde demais? E Miki-Leya permitiria que ela se aproximasse o suficiente para limpar e inspecionar a ferida?

O grande felino estava deitado ao seu lado, ofegante com tamanho esforço. A garota, depois de puxar a bolsa de remédios, também ficou imóvel e com medo enquanto seu coração continuava batendo forte com o a ameaça de ataque. O gatinho era o único que não era movido por suas emoções, parecia ter apenas fome. Ele se aconchegou no pescoço de Ravana, instintivamente buscando por alimento com sua pequena língua.

Ravana acariciou o gatinho e se entregou ao seu miado suave, tentando confortá-lo. A Amazônia estava escura agora, mas ela sabia que a lua cheia logo iluminaria o dossel da floresta tropical para banhar as margens do rio com sua luz pálida. Ela deveria esperar.

Cian parou para tomar um gole de chá.

–E a mãe de Ravana? – perguntou Rachel – Ela vai ficar preocupada.

– Sim – disse Cian, largando a xícara – mas sua mãe ainda não havia voltado para a vila e os demais habitantes pensavam que Ravana a acompanhara. Então os homens foram em direção às colinas de Calva, procurando por elas.

– Oh não – disse Magnalana.

– Ravana estava muito sozinha nesta noite, agora que a lua espiara por cima das copas das árvores, ela decidiu o que devia fazer. Para preparar o cataplasma, ela precisaria de fogo, e sabendo que uma fogueira poderia assustar o grande felino, ela se afastou silenciosamente, mantendo o gatinho nos braços enquanto puxava a bolsa de remédios.

Não estando muito distante, ela se levantou e correu de volta onde havia acendido fogo para secar as folhas. Ela reacendeu o fogo, depois foi ao riacho para encher duas tigelas de couro com água, deixando o filhote perto do fogo em um ninho que tinha feito de grama seca.

Ela então colocou as duas tigelas de couro nas pedras planas para aquecer a água. Enquanto a água aquecia, ela foi adicionando pedaços de folhas e raízes saídos de sua sacola, misturando nada mais que o suficiente de cada uma, em quantidades exatas. Na segunda tigela, ela colocou as pequenas tiras de carne da anta que havia caçado mais cedo.

Em alguns minutos, o doce aroma do caldo lembrou Ravana de que não comia desde o meio dia, mas ela esperaria até cuidar dos outros dois antes de atender às suas próprias necessidades.

Depois que o caldo esfriou um pouco, ela pegou o gatinho nos braços, mergulhou o dedo no líquido espesso e pressionou sobre os lábios do gatinho.

Tribi-Leya cheirou o caldo quente e depois lambeu o dedo da garota miando por mais. Ela lambuzou-se de mais caldo para ele. Desta vez, ele tossiu um pouco, mas, ainda assim, lambeu tudo e queria mais.

Ravana sorriu. Não era o leite da mãe, mas era a coisa mais próxima que ela tinha, e talvez ele pudesse se nutrir um pouco com isso.

Quando a barriga dele estava cheia, ela o deitou em seu ninho, onde ele se aconchegou e foi dormir.

Agora a parte difícil, pensou Ravana, acrescentando alguns pedaços de carne ao restante do caldo quente, depois o levou, junto com a outra tigela, em direção à margem do rio.

Ela colocou as duas tigelas e uma folha de bananeira grande que cortara ao longo do caminho ao lado do grande felino. Então, foi até a margem do rio pegar um punhado de lama.

Ajoelhando-se ao lado do gato, ela pegou as raízes e as folhas cozidas da tigela, bateu a mistura como uma panqueca e inspirou profundamente antes de prosseguir.

Colocando cuidadosamente o cataplasma quente no quadril do gato, ela o espalhou suavemente ao redor da flecha para cobrir a ferida purulenta.

No começo, a onça apenas suspirou, se contraindo um pouco, mas em seguida seus olhos se abriram e ela viu a garota tocando-a.

Miki-Leya rosnou e levantou a cabeça, mas Ravana estava pronta para ela, enquanto segurava o cataplasma no lugar com a mão direita, cuidadosamente empurrou a tigela de caldo sob o nariz do gato com a mão livre. A fome superou sua preocupação com a garota, e a felina começou a lamber o caldo, pegando os pedaços de carne com a língua e devorando-os.

A tigela logo ficou vazia e, antes que a gata tivesse tempo de fazer qualquer coisa, Ravana empurrou o último pedaço de anta perto o suficiente para que a felina o alcançasse.

Quando Miki-Leya comeu a carne, a garota cobriu o cataplasma com uma folha grande e depois espalhou lama por cima. Durante todo o tempo ela falava com a gata:

– Você deve descansar em silêncio agora, sua cria está segura pelo fogo, alimentada e dormindo, não se preocupe.

A gata parecia não prestar atenção enquanto triturava o último dos ossos e lambia a medula.

Ravana manteve uma leve pressão no cataplasma enquanto falava e acariciava o pelo dela.

– Você deve descansar e juntar suas forças. – ela sussurrou – Tudo ficará bem em breve.

Miki-Leya lambeu os lábios, olhou uma vez para o som da voz da garota, depois deitou a cabeça fechando os olhos.

Ravana, em sua absorção pelos dois felinos, não pensara na aldeia ou na mãe por muitas horas. Agora ela se preocupava com a aflição da mãe por ela, mas não podia deixar os animais; os dois eram completamente dependentes dela.

O som de um papagaio verde tucumă, agitando sua companheira despertou Ravana e ela, imediatamente, percebeu a dor em seu braço. Levou um momento para entender onde estava e o que havia acontecido. O sol não havia ainda nascido, mas o amanhecer se arrastava pela floresta tropical. Ela levantou a cabeça do flanco da grande felina, onde havia adormecido. Quando virou a cabeça, encontrou o gato olhando para ela, aparentemente com pouca preocupação.

Ravana levantou a mão do emplastro e esfregou o braço, estava dolorido por permanecer na mesma posição durante toda a noite.

–Você deve estar com fome, grande amiga —disse ela enquanto esfregava a circulação de volta no braço – Se prometer não mexer nesse curativo em seu quadril, eu caçarei para você.

A gata não emitiu nenhum som, apenas bocejou e deitou a cabeça na grama.

A garota sorriu e ficou logo de pé.

–Voltarei em breve – disse ela ao deixar Miki-Leya e voltar à fogueira para pegar seu arco e flechas.

Cian tomou um gole de chá e me lançou um olhar sobre a borda de sua xícara.

– Bem, crianças – eu disse – acho que já tivemos história suficiente para esta noite, já é tarde e hora de dormir.

Magnalana olhou para mim com os olhos estreitos.

–Nós queremos…

O capitão Sinawey pigarreou, encerrando qualquer protesto dela ou das outras crianças.

A pequena Magnalana olhou para o capitão, depois voltou seu olhar para Cian.

–Obrigada, Cian, adoramos sua história. Quando podemos ouvir mais, por favor?

– Amanhã, minha querida – disse Cian – Depois de lavar as roupas e pendurá-las para secar, teremos mais histórias.

O pequeno Billy, não tão articulado quanto Magnalana, foi até Cian para um abraço.


* * * * * *

Cian e eu caminhamos pelo convés em direção à proa do Borboleta. O céu noturno estava perfeitamente limpo e uma brisa suave passeava de leste a sudeste, atravessando o convés.

– Ainda hoje – eu disse – atravessaremos o equador para o hemisfério norte.

Gostaria de saber se ela entendeu quando olhou para mim, esperando por uma explicação. Cian era uma mulher excepcionalmente brilhante, mas ela não possuía todo o conhecimento para além de sua própria cultura, tanto quanto eu não compreendia sua sociedade e valores. Ela se adaptava rapidamente aos novos ambientes e ideias. Se eu tivesse sido empurrado repentinamente e sozinho em seu mundo, como ela foi atraída para o meu, não tinha certeza se teria me adaptado tão bem. Mas ela levara tudo tranquilamente, com seu típico bom humor e entusiasmada curiosidade.

Eu tentei explicar como a Terra era redonda, girando sobre o próprio eixo e voando pelo espaço, esperava que esse conceito fosse difícil de entender, especialmente para quem, por exemplo, não tinha palavras em sua língua para números além de dez, muito menos para descrever a imensidão do universo. Era complexo, mas ela esperou pacientemente por mais informações.

– O céu – expliquei – percebe como as estrelas de primeira magnitude brilham com mais brilho aqui, no cinturão da Terra, do que nas latitudes mais baixas?

– Ah, sim – disse Cian.

Ela compreendia as estrelas total e completamente, apontou várias constelações para mim, explicando seus nomes Yanomami e me mostrou como as posições delas no céu noturno haviam mudado à medida que avançávamos a norte e a leste. Ela conhecia as estrelas e seus padrões de migração anual através dos céus, assim como qualquer navegador poderia conhecer. Eu me perdi rapidamente no seu vasto fluxo de conhecimento das estrelas e até dos planetas visíveis, e pude ver que isso lhe dava algum prazer. Tentei fazer perguntas inteligentes, como ela sempre fazia quando lhe explicava algo, mas fiquei realmente perdido e completamente desarmado, além de profundamente impressionado. Eu me perguntava em que outros assuntos ela se mostraria especialista, que, se eu tivesse as habilidades para perguntar, poderia aprender com ela.

Ela parou depois de um tempo e ficou sorrindo para mim. Me contou como ela e seu povo antes dela usaram o conhecimento das estrelas para encontrar o caminho pela selva e para prever a chegada das estações secas anuais, quando sua partida pode ser percebida à medida que as estações mudam e os animais migram de uma área para outra para encontrar comida.

– Você percebe – perguntei a ela – que existem estrelas abaixo de nossos pés e acima de nossas cabeças?

Ela olhou para o convés e longamente para o mar.

–Como pode ser?

Fechei minha mão em punho.

– Esta – eu disse – é a terra. Redonda como a bola de Billy. É onde estamos – Toquei o topo do meu punho —Aqui estão as estrelas. – Revirei a mão aberta sobre o punho apontando para o céu.

Ela olhou para a minha mão e seu olhar caminhou ao céu assentindo.

–Se pudesse olhar diretamente através do mar e da terra para o outro lado, também veria uma cúpula de estrelas.

Revirei minha mão aberta em torno e abaixo do meu punho. Ela pareceu confusa por um momento, depois girou as mãos lentamente em volta do meu punho e seu rosto se iluminou.

– Isso explica aquilo – disse ela, apontando para o horizonte norte.

Lá, ela me mostrou várias constelações que nunca tinha percebido antes. Ela estava tentando descobrir o sentido para noite após noite, essas novas constelações subirem cada vez mais alto no céu, enquanto aquelas familiares a ela afundavam atrás de nós.

– Sim, sim – ela exclamou – a Terra é redonda, estamos aqui, e as estrelas estão por toda parte – disse tocando meu punho cerrado.

Ela suspirou, pegou minhas mãos entre as dela enquanto se recostava no parapeito e observando o céu enquanto se aproximava de mim.

–Como isso tudo é maravilhoso – ela sussurrou – assim como viajar entre as estrelas completamente despidos e indefesos exceto pelos nossos pensamentos.

Sorri também, ao perceber que a mulher que amava estava muito além de uma equidade intelectual para comigo. Imaginei se ela teria chegado à mesma conclusão.

De volta ao presente, ela deslisou seus olhos para mim e me fitou por um momento.

–Agora me diga, Sr. Saxon, se há estrelas abaixo de meus pés, estrelas acima da minha cabeça e estrelas ao redor de toda a bola de Billy, onde está nosso amigo Deus agora?

Eu tinha certeza que ela já sabia a resposta antes de fazer a pergunta.




Capítulo Doze


Fiquei sozinho na ponte do Borboleta madrugada afora, observando a lua afundar em direção ao horizonte ocidental à minha esquerda, enquanto o horizonte oriental se iluminava. A noite estava quente, o mar tranquilo, o vento calmo; tudo em equilíbrio, um equilíbrio perfeito.

Até demais.

Isso me deu uma sensação de desconforto. As coisas pareciam não se conectar, era quase assustador.

Desliguei as luzes interiores e olhei para a bússola brilhante.

Hero entrou na ponte, parecendo pensativo e deslocado.

–Bom dia, tutti – eu disse a ele —Eu pensei que havia fechado a porta.

O cachorro tinha uma maneira desdenhosa de estreitar os olhos, se virou para olhar algum objeto qualquer, como se fosse mais interessante para ele do que eu. E ele odiava quando eu o chamava de tutti.

Ele se aproximou do leme e sentou-se no rabo, perto de mim, sem emitir nenhum som. Isso era realmente estranho, o cachorro nunca se importou muito comigo e raramente me procurava.

O que o estava incomodando?

–Por que não está com Rachel?

Ele me deu uma expressão que se traduzia aproximadamente em: “Saxon, cale a boca e olhe lá pra fora.” Algo estava acontecendo.

Muito além da proa do navio, a paisagem marítima mudou diante dos meus olhos, o sol nasceu ao mesmo tempo que a lua caiu, me dando a estonteante sensação de rotação terrestre. Em todos os meus anos no mar, nunca tinha visto nada assim, o sol e a lua estavam de frente um para o outro na face da Terra, comigo de pé diretamente na linha de visão deles. O tempo foi suspenso e os trinta e cinco anos da minha vida de brinquedo se transformaram em uma mancha pictórica, não maior do que os fractais de uma gota transparente caindo no preciso centro do Oceano Atlântico.

A lua afundou no mar, o sol iluminou o horizonte oriental e o Borboleta navegou atravessando um mar calmo e quase morto.

O tempo passou, não saberia precisar quanto, procurei por Hero, mas ele já havia ido, deixando-me com minha perplexidade.


* * * * * *

Duas horas depois, quando meu turno terminou e o Sr. Choy assumiu meu lugar, fui procurar Cian e contar a ela sobre minha experiência. Ela era a única pessoa a bordo que entenderia meus sentimentos de desamparo diante daqueles eventos.

Imagine minha surpresa quando vi Doki em seu lugar habitual, não portava seu violão, mas tinha os cabelos recém-cortados, muito bem penteados e cheios de vitalidade ao lado de um pente marrom e uma tesoura familiar. Com o cabelo selvagem domado, e até a barba grisalha aparada e penteada, ele ficou com uma perfeita apresentação profissional. Mas isso não foi nem metade da minha surpresa, ao seu lado e sob os olhos do professor errante, Cian praticava acordes no violão antigo!

Meu primeiro impulso foi marchar até lá e dizer algo ridiculamente insano, talvez um comentário grosseiro sobre o cabelo impetuoso ou uma observação humorística sobre os sons terrivelmente desajeitados vindos do instrumento. Mas a voz da razão me mandou esperar um momento. Assim o fiz. Antes que qualquer um deles pudesse me notar no caminho que levava ao canto musical, eu me virei abruptamente para a cabine principal para ver se encontraria uma xícara de chá ou uma garrafa com alguém que ouvisse minha lamentável história.

Infelizmente, encontrei o homem das peles, Stanley Dortworthy, bebendo meu chá e conversando com minha irmã rapsódica.

Kaitlin me deu um oi alegre e entrou na cozinha para encontrar um copo vazio.

– Você sabia – disse ela por cima do ombro enquanto infundia uma peneira de folhas de pekoe usadas – que Stanley também está a caminho da Riviera?

Suponho que qualquer homem possa descrever Kaitlin como amável, de certa forma grega, com características delicadamente esculpidas, esse tipo de coisa. Mas um irmão conhece a alma da mulher que vive atrás daqueles olhos azuis angelicais, ele a ama por seu coração e pela confiança que ela deposita nele, não por sua beleza.

– Não – eu disse, sentando em uma cadeira em frente ao Sr. petulancia – Quando “Stanley” decidiu fazer isso? ]

Pronunciei seu nome desdenhosamente, preferindo ignorar o homem do que sofrer com sua total falta de capacidade intelectual para manter uma conversa desequilibrada.

–Há dinero a ser feito lá.

Ele falou comigo de qualquer maneira, como em uma canção, e quase me afogou em seu sorriso torto enquanto mostrava, de forma repugnante, praticamente todas as gengivas e tentava enrugar os olhos incolores.

– Eu acredito – disse a ele – o último búfalo da Riviera foi morto antes do fim da guerra, junto com um dos últimos garimpeiros remanescentes.

O homem riu educadamente, e minha irmã, rindo daquele jeito dela, quando irritada por minhas observações tolas, chacoalhou meu chá diante de mim.

Adicionei açúcar e leite ao líquido morno, praticamente anêmico, e perguntei:

—Mas que diabos aconteceu com você? – não para ela, mas para mim mesmo.

Kaitlin me presenteou com seu encolher de ombros e olhou para Stanley daquele jeito idiota das histórias de verão.

Sangue de Cristo! Essa predestinação está encarnada, que futuro se aproxima grosseiramente diante de mim? Só porque dei uma espiada em um canto minúsculo do universo, o destino vai transformar uma viagem descontraída de Lisboa para a Riviera Francesa, através do sopé dos Pirenéus, em uma trilha interminável de mortos, animais, despidos de suas peles preciosas? Junto com a fervura de pétalas de lótus em pequenas garrafas azuis fedorentas como chinelos de uma velha, justamente STANLEY, o comerciante de peles fedorento e pegajoso? E ainda por cima, ao longo do caminho seremos entretidos pelo barulho de um violão desajustado?

Não, Kaitlin, isso nunca funcionaria. Em seguida, só o que faltava, era minha pequena Rachel anunciar que decidiu permanecer a bordo do Borboleta em Lisboa e navegar em volta do Cabo da Boa Esperança, servindo como marinheira! Afinal, ela tem quase a idade de sua mãe quando fugimos para o mar.

Bem, a única coisa sensata a fazer era encontrar Hero e garantir a mim mesmo que ele não estava tramando um plano desonesto para se tornar o animal de estimação do nosso Sr. Choy e transferir sua lealdade para ele. Ninguém notou minha saída da cozinha,

encontrei Hero deitado de costas sob uma fresta de sol ao lado da porta da casa do leme, através do vidro, Sr. Choy sorria amplamente para mim e curvou-se profundamente enquanto segurava o timão. As duas pernas esquerdas de Hero estavam no ar, movendo-se em uníssono, embora espasmodicamente, deveria estar a perseguir coelhos ou algo do tipo, em seus sonhos. Eu sabia que não deveria acordá-lo. Rachel poderia agarrá-lo e sacudi-lo à vontade que ele não faria nada além de uivar um pouco e depois lamber sua mão com amor, mas se eu tocasse com apenas um dedo do pé que fosse, corria sérios riscos de perder um braço, no mínimo até o cotovelo.

O Sr. Choy ainda estava curvado na minha direção, então eu assenti para aliviá-lo de sua cortesia e deixei os dois entre suas várias fantasias, partindo para dormir abandonado na cabine vazia.


* * * * * *

Quando acordei no início da tarde, a cabine estava ainda preenchida apenas pelo meu mal-estar sombrio, então fui procurar um pouco de café e alguma companhia.

Ao abrir a porta da cabine principal, a cena mais incrível surgiu diante de mim, como se algum fotógrafo de notícias errante tivesse pulado na sala à minha frente e disparado um flash. Kaitlin estatelada com olhos sonhadores, Cian sorrindo e acariciando um cão preto, o tabuleiro de xadrez meio vazio, Rachel segurando seu cachorro estúpido e Stanley Dortworthy com um corte de cabelo entopetado, que o fez virar um garotinho, explicando as complexidades do garfo de cavalo para minha Cian!

—Por que não está tocando violão com a mão livre para seu amigo Doki?

Era o que eu queria dizer a Cian, mas depois de resmungar uma saudação qualquer pelo caminho, tudo o que consegui foi um bocejo de Hero, um meio aceno de Rachel e um olhar apressado de Cian enquanto ela voltava sua atenção para o tabuleiro de xadrez, para não perder nenhum nuance estratégico de nosso mestre enxadrista.

Mexi na cozinha até Kaitlin pegar uma frigideira pesada da minha mão, colocá-la novamente no gancho, derrubar a cafeteira e dizer para eu me calar com um sonoro “Shh?!”

Tudo que eu queria era cafeína e, talvez, uma dose de vingança.

Bebi meu café enquanto me afastava observando as três mulheres da minha vida acariciando Stanley com os olhos, como se ele fosse o último da espécie. Elas eram como três abelhas-rainhas, gordas de ovos não fertilizados, sendo ele o único zangão vivo e disposto. Eu brinquei com o pensamento de dizer a elas que todos os zangões são estéreis e capazes de nada mais do que produzir mel, mas em seu estado atual de espírito, isso provavelmente desencadearia um coro de risadas apaixonadas.

Notei um fato interessante. Stanley, sem seu topete, tinha uma cabeça deveras pontuda.

Dez minutos depois, as lições terminaram, Cian deixou o Sr. Dortworthy, homem das peles e professor de jogos de tabuleiro antigos, no ardor de Rachel e sua mãe, para me acompanhar a algum lugar tranquilo no convés, onde poderíamos conversar em paz.

Saindo no convés, encontramos o ar pesado a nos comprimir. O mar estava perfeitamente liso e o horizonte parecia ter sido pintado com um pincel de aquarela. Exceto por uma pequena nuvem a dez pontos do arco de estibordo, o céu refletia tons acobreados.

Os marinheiros que encontramos em nossa caminhada à popa pareciam nervosos e pensativos, assim como eu estive o dia todo, comunicando-se apenas com um rápido aceno de cabeça ou um grunhido, enquanto se apressavam a seus afazeres. Antes mesmo que chegássemos à popa, o capitão Sinawey transmitiu comandos para levar abaixo qualquer coisa livre no convés. A tripulação já havia começado a arrumar cadeiras e apertar as linhas dos botes salva-vidas. Pedi a Cian para chamar Rachel e Hero e ter certeza de que as outras crianças estavam com seus pais. Ela não questionou minha intenção enquanto voltava mancando para a cabana. Eu estava de vigia, mas fui trabalhar com o resto da tripulação para proteger o navio.

Quando amarrei um adriático, notei nossa tormenta formando um arco, demonstrando um ponto de interrogação nebuloso no mar adiante. Aparentemente, o capitão havia ordenado uma correção de curso para o leste, também enviou o Sr. Choy para dizer a Kaitlin que apagasse o fogo na cozinha e que garantisse todos os potes, panelas e pratos. O jantar seria uma refeição fria, se é que teríamos alguma chance de comer.


* * * * * *

Às quatro da tarde, o céu ficou pálido, com longas caudas de cirros e a maresia voando por todo canto. A pequena nuvem do início da tarde se multiplicara em uma linha de trovões que avançava sobre nós vindo do norte.

O capitão seguiu um curso paralelo à linha de tempestade, na esperança de superá-la a leste. Se ele fosse para sul, sabia que a tempestade logo nos alcançaria e se mantivesse o nosso curso norte, seria o mesmo que convidar um desastre para jantar.

Eu já passara por muitas tempestades no mar, mas poucas foram à noite e confesso que não estava ansioso pelas próximas horas. Reuni minha família em nossos aposentos e disse para ficarem lá, não importa o que acontecesse. O capitão Sinawey me designou ao leme para o turno da noite, então não poderia e estar na cabine com elas, mas pedi que não se preocupassem.

Kaitlin trouxe uma enorme cesta com biscoitos e bacon, junto com água fresca, para a cabine. Ela conhecia a situação e estava bem ciente dos perigos. Cian e Rachel tinham pouco medo de eventos desconhecidos, o que nem sempre era uma coisa boa, mas senti que Kaitlin conseguiria mantê-las dentro e sob controle.

Quando deixei minha família e abri a porta da cabine contra o vento crescente, encontrei Stanley Dortworthy ali, com os nós dos dedos levantados, pronto para bater. Ele disse algo para mim.

– O quê? – gritei.

–Eu vim oferecer minha ajuda! – Ele gritou.

Olhei para ele, imaginando que tipo de assistência ele poderia dar quando percebi que seria melhor tê-lo sob os olhos atentos da minha irmã do que rolando em sua cabine ou correndo pelo convés, torcendo as roupas e chorando por ajuda. Peguei-o pelo bíceps, agradeci, e o empurrei para dentro, batendo a porta com força.

Enquanto corria para a ponte, Doki me parou a estibordo, nos agarramos ao parapeito enquanto ele perguntava sobre Cian e os outros. Disse que estavam seguros na cabine. Ele pareceu satisfeito com a resposta e correu para a escada que levava à casa das máquinas.

Antes de chegar à ponte, pensei em outra coisa e corri de volta para as cabines de passageiros. A porta de dona Lilian estava aberta e ela estava lá dentro, olhando para o mar agitado. Empurrei a porta e percebi o pânico em seus olhos.

– Venha – eu disse, colocando um braço em volta dos ombros dela – Os outros precisarão de você.

Ela me permitiu levá-la para minha cabine. Quando abri a porta, Rachel correu para pegar a mão dela e puxá-la para dentro.

Encontrei o capitão e o Sr. Choy na ponte. O Sr. Choy estava com o timão e o capitão examinava o horizonte com seus binóculos. Sr. Choy olhava nervosamente para mim e recuou do vidro da frente quando outra onda quebrou acima do casco. O Borboleta rolou com o soco, mas logo se endireitou.

Eu assumi o comando para dar um descanso ao Sr. Choy, assim ele poderia tentar pegar um biscoito frio e um pouco de bebida. Montoi veio da sala de rádio e disse ao capitão que havia enviado uma mensagem a Lisboa, informando a posição, o rumo do navio e um relatório sobre o clima.

– Muito bem – disse o capitão – Algum outro navio na área?

– Tris (três) – respondeu o radialista – mas nenhum por perto.

– Deixe-me saber assim que Lisboa enviar novo relatório sobre a tempestade.

– Sim, senhor.

– E talvez – acrescentou o capitão – eles expliquem porquê não nos disseram nada sobre esse golpe que está prestes a cair sobre nós.

Montoi voltou ao seu posto.


* * * * * *

Às 18 horas, caiu o crepúsculo, mas pudemos ver claramente a borda irregular das nuvens carregadas. Às seis e meia, o vento havia se contido em uma brisa que vinha do leste. As ondas ainda não estavam diminuindo de altura ou intensidade, mas sabíamos que elas logo diminuiriam.

– Parece que a superou, capitão – eu disse enquanto olhava da bússola para ele.

Ele assentiu e soltou um grande suspiro de alívio.

Às 6:40, o radialista apareceu com uma folha rasgada de papel amarelo de telégrafo.

– É um SOS, capitão.

– De onde? – O capitão largou a xícara e pegou o pedaço de papel de Montoi.

– Trinta milhas, senhor – ele hesitou – norte a noroeste.

O capitão Sinawey xingou baixinho e depois leu em voz alta:

–A sala de máquinas inundou, três tripulantes perdidos no mar, tomando água à frente das bombas. Helm não está respondendo. – Ele não hesitou em sua decisão – Senhor Saxon, venha para o pórtico.

Para Montoi, ele disse:

–Qual é o nome?

–Ele é o Tecora, de Mombaça, Booth é o nome do capitão.

Girei a roda de leme para a esquerda, todos nós sabíamos que o outro navio estava na borda interna da tempestade.

– Encontre esta localização no gráfico, Sr. Choy, e nos dê uma direção.

O Sr. Choy não respondeu. Ele pegou o pedaço de papel que continha as coordenadas do Tecora, tropeçando na balaustrada enquanto fazia isso. Ele se segurou agarrando o braço do capitão.

– Com o perdão do capitão, senhor – disse Montoi, com a voz embargada. – Certamente, o senhor não pode navegar de volta para a tempestade.

– Suponha, Sr. Montoi – disse o capitão, enquanto segurava Choy, libertando-se de suas garras e ajustando sua posição – que você fosse o operador de rádio a bordo do Tecora. – Ele levou as mãos às costas e fixou o olhar no radialista – Você nos telegrafaria para navegar e ter um bom dia?

Montoi engoliu em seco.

– Não, senhor, eu não o faria.

– E o que você estaria nos pedindo para fazer, senhor?

– Que oferecessem toda a assistência disponível.

– Exatamente – O mastro virou enquanto o capitão continuava – Agora, verifique com Lisboa esse boletim meteorológico imediatamente depois de contactar seu igual no Tecora. Informe a ele e ao capitão Booth minhas saudações e diga que estaremos em sua localização em aproximadamente uma hora e trinta minutos… se Deus quiser.

– Sim, senhor.

Montoi saiu correndo da sala.

Um momento depois, caímos diretamente em uma onda de cinco metros e meio e toda a parte dianteira do navio desapareceu sob um oceano de água verde. Senti um tremor percorrer a espinha de aço do Borboleta enquanto o Atlântico tentava torcer o arco da quilha. Então, do fundo de nossa embarcação corajosa, veio um gemido abafado e metálico. Me perguntei se seria este um antropomórfico suspiro de resignação. Segurei o leme, me preparando para a próxima onda e pensei em Cian na cabine com Kaitlin e os outros.




Capítulo treze


Chegamos ao Tecora pouco antes da meia-noite.





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O encontro entre Cian e Saxon no coração da Amazônia é muito mais que a simples reunião de duas pessoas; é a junção de dois mundos distintos. Suas explorações e aventuras os leva às profundezas da floresta tropical, e então, meio caminho ao redor do mundo na busca por um lugar para se assentarem. Mas ao invés de encontrarem paz, seu senso de justiça os faz viajar da Europa à Nova York. e então de volta ao Brasil, onde eles devem confrontar a organização criminosa da fria e ambiciosa Oxana, que seguirá a qualquer custo em seu tráfico de animais silvestres, assim como mulheres e crianças.

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