Книга - Viriatho: Narrativa epo-historica

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Viriatho: Narrativa epo-historica
Teófilo Braga




Teófilo Braga

Viriatho: Narrativa epo-historica



A Alma portugueza caracterisa-se pelas manifestações seculares persistentes do typo anthropologico e ethnico, que se mantêm desde as incursões dos Celtas e luctas contra a conquista dos Romanos até á resistencia diante das invasões da orgia militar napoleonica. São as suas feições:

A tenacidade e indomavel coragem diante das maiores calamidades, com a facil adaptação a todos os meios cosmicos, pondo em evidencia o seu genio e acção colonisadora;

Uma profunda sentimentalidade, obedecendo aos impulsos que a levam ás aventuras heroicas, e á idealisação affectiva, em que o Amor é sempre um caso de vida ou de morte;

Capacidade especulativa prompta para a apercepção de todas as doutrinas scientificas e philosophicas, como o revelam Pedro Julião (Hispano), na Edade Media, Francisco Sanches, Garcia d'Orta, Pedro Nunes e os Gouvêas, na Renascença;

Um genio esthetico, synthetisando o ideal moderno da Civilisação occidental, como em Camões, reconhecido por Alexandre de Humboldt como o Homero das linguas vivas.

O cantor das grandes Navegações foi quem teve a mais alta comprehensão do genio nacional; a ALMA PORTUGUEZA achou no seu Poema a incarnação completa. Quando Camões descreve nos Lusiadas, geographica e historicamente Portugal, referindo-se á tradição da antiga Lusitania, relembra o vulto que symbolisa a sua vitalidade resistente, diante da incorporação romana da peninsula hispanica:

Eis aqui, quasi cume da cabeça
Da Europa toda, o reino Lusitano,
Onde a terra se acaba, e o Mar começa,
E onde Phebo repousa no Oceano.

Esta é a ditosa Patria minha amada,
Esta foi Lusitania.........

D'esta o PASTOR nasceu, que no seu nome
Se vê que de homem forte os feitos teve;
Cuja fama ninguem virá que dome,
Pois a grande de Roma não se atreve.

    (Cant. III, st. XX a XXII.)
Deixo … atraz a fama antiga
Que co'a Gente de Rómulo alcançaram,
Quando com VIRIATHO na inimiga
Guerra romana tanto se afamaram.
Tambem deixo a memoria, que os obriga
A grande nome, quando a levantaram
Um por seu Capitão, que, peregrino,
Fingiu na Cerva espirito divino.

    (Cant. I, st. XXVI.)
No tempo do grande épico ainda se não tinha perdido o conhecimento da relação de continuidade historica entre Portugal e a antiga Lusitania, mais vasta e por isso mais violentamente retalhada pela administração imperial romana. Esse conhecimento, embora confundido com as lendas syncreticas dos falsos Chronicões, influiu na consciencia do nosso individualismo ethnico e nacional. O esforço de desnacionalisação de Portugal pela politica da unificação iberica, veiu até reflectir-se nos proprios historiadores patrios, levando-os a considerar Portugal uma formação recente, adventicia, sem individualidade, e a Lusitania quasi como uma ficção banal dos eruditos da Renascença! Mas o caracter persistente do typo portuguez, a resistencia tenaz contra todos os conflictos da natureza e pressões da vida, que tanto o distingue entre os povos modernos, é a prova manifesta da raça lusitana como a descreveram os geographos gregos e romanos. Nas luctas pela liberdade territorial a Lusitania deixou nos historiadores greco-latinos o ecco da sua resistencia indomavel, sobretudo no Cyclo das Guerras viriathinas, que se reaccenderam ainda sob o commando de Sertorio.

Pela sua genial intuição teve Garrett a comprehensão d'este caracter resistente e soffredor da nossa raça lusitana: «Os Portuguezes são naturalmente soffredores e pacientes: muito arrochada hade ser a corda com que de mãos e pés os atam seus oppressores, antes que rompam em um só gemido os desgraçados. Um murmurio, uma queixa… nem talvez no cadafalso a soltarão! Vendem-nos os desleaes pegureiros de quem nos deixamos governar; vendem-nos, enxotam-nos para a feira a cajado e a latido e mordedella de seus mastins; e nós vamos e nem gememos. Se um clamor de queixumes, se uma voz de desconfiança acaso surde, aqui os clamores de rebeldes, os alcunhas de demagogos… e a nação (o rebanho, direi antes) que se resigna e soffre, e continua a caminhar para o exicio! Tal é, com as differenças de variados nomes e datas, a historia de Portugal quasi desde que a revolução ou restauração (restauração seria?) de 1640 fez da nação portugueza o patrimonio de meia duzia de familias privilegiadas e de seus satelites e parasitos.» (Carta de M. Scevola, 1830.)

Symbolisamos esta resistencia, vivificando o typo de VIRIATHO, reconstruindo poeticamente as situações laconicas referidas nos historiadores classicos; representamos artisticamente essa fibra que ainda hoje pulsa em nós, e pela qual, perante a marcha da Civilisação se affirma através dos cataclysmos politicos a ALMA PORTUGUEZA.

Assuetum malo Ligurem, disse Virgilio (Georg., II, 102) d'essa poderosa raça, de que o Lusitano foi um dos ramos mais activos; as terriveis desgraças que nos têm acompanhado desde a romanisação da peninsula até á subserviencia ingleza, como acostumados ao mal, não nos têm alquebrado: não apagaram a constituição da Nacionalidade, não embaraçaram as iniciativas dos Descobrimentos maritimos; não abafaram a expressão das altas capacidades estheticas. Pela expressão artistica se fixou a lingua portugueza, orgão reconhecido da nacionalidade, cujo sentimento se manteve pela idealisação poetica, em Camões. Seja ainda esse recurso poetico o meio de acordar a consciencia do passado de um Povo, no qual estão implicitos a sua rasão de ser presente, e o ideal do seu destino futuro.

Um dos fins da Arte moderna é a representação da vida dos povos e dos aspectos da natureza dos paizes longinquos, e tambem a evocação das edades passadas, vencendo por este exotismo o apagamento das impressões de tudo quanto nos cérca; assim se inicia a phase esthetica constructiva. Pela evocação da Raça penetra-se o sentir da fibra nacional, e por esta o drama das luctas das Instituições que se fundaram, o vinculo das Tradições, que foram germens e impulsos da missão historica e das creações artisticas que reflectiram a consciencia da collectividade.




I


No anno de DCIII da éra da fundação da Cidade de Roma, sendo Consules L. Licinio Lucullo e A. Postumio Albino, acontecimento inopinado suscitou nos espiritos um extraordinario alvorôço: O Senado fôra convocado repentinamente, com urgencia, sem ser pela fórmula usual de um Edito, mas pela peremptoria chamada nominal ordenada pelo velho e integerrimo Catão, denominado o Censor.

A gravidade do acontecimento forçára por certo o venerando presidente do Senado a simplificar essa fórmula da convocação? Algum grande crime perturbava ou ameaçava o governo da Republica! A curiosidade era immensa, e antecipadamente sabia-se que a voz austera de Marco Catão, o Censor, se ergueria no Senado contra o patricio o mais opulento dos romanos, que dispunha de riquezas bastantes para corromperem os juizes aos quaes se confiasse o seu julgamento.

Galba! era este o nome que soava de bocca em bocca, mais com inveja do que hostilidade, desde que o Tribuno do Povo Aulo Scribonio o citára para comparecer em justiça pelas depredações e carnificinas que praticára contra as Tribus e cidades tributarias da Lusitania, que como Provincia senatorial estava sob a égide da lealdade romana.

Era de um crime contra a magestade do Povo romano, que versava a accusação do Proconsul Servio Sulpicio Galba, ao qual fôra confiado o governo e administração da Hespanha Ulterior, essa parte occidental da peninsula em que se comprehendia a vasta Lusitania. Ninguem se atrevia a pôr em duvida a valentia do tribuno militar, que fôra á Hespanha com a missão especial de combater e submetter os Celtiberos; mas, sendo conhecida no mundo a gloria do Senado, que, vae para quatro seculos, dirige com um tino incomparavel as guerras de incorporação dos povos barbaros, como poderá consentir que no exercicio d'essa missão civilisadora lhe infamem a inviolavel auctoridade?

A voz de Catão ergueu-se no meio de um religioso silencio com a acuidade de um látego de fogo:

– Como velho octogenario, ninguem comprehende como eu o poder dos Costumes dos Antepassados representados hoje no Senado, como um tribunal permanente, de acção executiva, e com consciencia das necessidades publicas expostas pela palavra em discussão aberta. É d'esses Costumes dos Antepassados que deriva a Soberania com que nós todos aqui presentes, dando fórma á opinião publica, intervimos no organismo social de Roma. Diante de mim, e entre os trezentos membros aqui reunidos, vejo ainda os antigos chefes da Familia romana, os Patres, que pela edade fôram os Seniores, os quaes deram o nome a este Tribunal sacrosanto de Senado; tambem vejo os Conscripti, que a pouco e pouco fôram chamados a completarem o numero, que a morte ou a extincção das familias ia diminuindo. Emfim, aqui estamos constituidos tanto a Ordem senatorial como a Equestre, para deliberarmos sobre o que interessa á Republica. D'entre vós, uns exercem um poder temporario, e outros são inamoviveis desde que se reconheceram os seus serviços, e por sua vida incorruptivel são proclamados Censores. É pois no exercicio d'esta dignidade que eu fallo e conto ser ouvido, porque foi confiada á protecção da minha vigilancia essa uberrima provincia da Hespanha. Tendo eu, como Censor, cooperado sempre, todos os cinco annos, pela confecção do registo do Censo, na nomeação dos Senadores tirados dos antigos magistrados, raro será aqui o Senador que não deva á minha confiança a honra d'essa escolha confiada a Senadores consulares, a Senadores pretorianos, segundo as magistraturas, e cargos curues, em que se dignificaram. E tendo eu exercido este direito supremo dos Censores, compete-nos mais um, que é o da exclusão dos indignos do Senado…

Sentiu-se um vago rumor entre os trezentos membros da assembleia; Catão, quasi sem notar que o seu longo exordio já fatigava a attenção, proseguiu:

– É esse direito, que hoje me traz aqui, apoiado pela propria consciencia e pelo meu juramento. Eu bem sei que as attribuições dos Censores são constantemente diminuidas, e que virá tempo em que desapparecendo esta magistratura, irromperão as guerras civis. Deixemos o futuro, e perdoae as digressões proprias da provecta edade. Em gravissimas circumstancias, sabidas por nós todos, foi Servio Sulpicio Galba mandado á Hespanha como Pretor. E se a situação difficil reclamava todas as virtudes militares para a magestade de Roma se mantêr illeza, mais necessario era o espirito de uma intelligente politica, para perpetuar por bons tratados o que a espada nem sempre conseguiu. Galba deu primeiramente uma prova deploravel de militar incompleto, quando invadindo a Lusitania, perdeu sete mil e quinhentos legionarios, indo refugiar-se em uma situação ignobil em Carmona. Destemido, mas inconsiderado, é este homem por isso perigoso para a Republica. E ainda mais: é de um caracter falso, violando com descaro a palavra de um Tribuno, que vale tanto como um tratado escripto, rebaixando perante o mundo o poder romano sempre inquebrantavel, quando se trata de um dever moral. É certo que as trinta e seis cidades tributarias da Lusitania, sempre irrequietas e luctando pela sua autonomia e independencia local, tambem violaram o tratado concluido com Attilio, infestando as Colonias romanas, e as Cidades federadas e immunes, favorecidas com o regimen municipal. N'esta angustia, em que Roma tinha de impôr a sua auctoridade, bem comprehendera que já não devia empregar o systema da devastação; mas Galba, desgraçadamente não comprehendeu este pensamento governativo! Mandado á Hespanha, ahi chegou com um exercito cansado e exhausto; em vez de limitar-se á defeza immediata dos subditos romanos, encetou logo combates contra as tribus lusitanas, que nas suas emboscadas continuas, em assaltos repentinos o fôram estafando e enfraquecendo até encontrarem o momento azado em que se atreveram a dar-lhe uma batalha campal, em que ficaram trucidados sete mil legionarios. Os brios de Galba ficaram diminuidos perante a estupenda calamidade; Galba teve de collocar-se na defensiva, aproveitando a epoca das grandes invernias para se fechar cautelosamente nos quarteis de Conistorgis! As Aguias romanas, como bem diria ahi qualquer poeta satirico, estavam fechadas na capoeira.

O Senado permaneceu imperturbavel diante da ironia caustica do orador, que continuou no mesmo espirito:

– E de facto Galba, durante essa inacção, chocava uma tremenda infamia! Logo no principio da primavera do anno DCIII da fundação da Cidade eterna, que ficará affrontosamente assignalado nos Fastos Consulares, Galba poz-se em marcha para a Lusitania, devastando inconsideradamente Cidades immunes ou federadas, estipendiarias ou contributas d'aquella opulenta região, d'onde Roma tem haurido montanhas de prata. Esses povos da Lusitania, embora tenazes e inquebrantaveis, pelo natural bom senso reconheceram que era melhor gosarem os privilegios que Roma lhes concedia, do que envolverem-se em uma guerra interminavel, que com certeza visaria á sua destruição. Resolveram mandar a Galba enviados com a declaração, que se confessavam arrependidos da revolta a que tinham sido arrastados, e promptos a cumprirem integralmente o tratado firmado com Attilio. A uma tal proposta, Galba manifestando-se benevolente, elle mesmo respondeu aos enviados das tribus lusitanas: «Que era o primeiro a reconhecer a força das circumstancias, que os obrigára pela tremenda crise da fome e da miseria a quebrantarem a lei romana, e a entregarem-se por vezes a incursões e rapinas em logares que gosavam quasi os direitos da metropole. Mas, em vez de tomar directamente a responsabilidade d'esses actos, e sabendo a causa intima que os motiva, eu farei que finde a situação violenta das Cidades estipendiarias, acabando com os tributos pezadissimos que as oneram, eximindo-as dos pagamentos ás legiões romanas e ás provisões de viveres fornecidos ás tropas em passagem. Para se effectuar isto, passareis á cathegoria de Cidades municipaes, com o vosso territorio livre, sem pagamento de tributos, com magistrados eleitos livremente, e fóra da jurisdicção do governador da Provincia.» Diante d'esta perspectiva, Galba, traiçoeiramente apontou as terras que lhes reservava, e que dividia em tres cantões, e tratou de convocar para um determinado dia na margem direita do Tejo as tribus lusitanas, exigindo como prova da mutua confiança que se appresentassem desarmadas, para que em Roma se não dissesse, que a generosa concessão do Jus italicum era extorquida.

Catão, como que vencendo uma oppressão de momento, salientou o facto monstruoso:

– Á convocação feita por Galba concorreram os povos confiados na palavra que representava o poder romano; e logo que Galba apanhou as tribus desmembradas e desarmadas na planicie para onde as convocára, envolveu-as nas Legiões que subitamente se appresentaram fortificando a linha dos Hastatos e Triarios com toda a Cavalleria, que atropellando a multidão inerme, fez passar ao fio da espada para mais de trinta mil pessoas, entre homens validos, velhos e crianças, e até mulheres! Nada mais execrando, porque esta traição vilissima deslustra as victorias romanas! E se este instincto traiçoeiro é a base da sua tactica de guerra, é egualmente a feição do seu caracter no tempo de paz; e com taes recursos se defenderá da justiça implacavel, perante a qual seja chamado a responder, porque no meio de tantas carnificinas e depredações, Galba apoderou-se de assombrosas riquezas, com que de certo conta eximir-se de toda a pena. Mas a deshonra do individuo, ou o seu castigo, não ressarce os males da Patria! O poder de Roma está n'este momento abalado na Lusitania, que se debate em um levantamento geral contra uma tão inaudita monstruosidade. E se eu, como Censor, accuso o homem indigno, e defendo os meus clientes de Hespanha contra o sanguinario e iniquo prevaricador, perante o Senado tambem reclamo que um General intelligente com novas tropas vá promptamente restabelecer a paz e o direito ás povoações alvoroçadas da Lusitania.

A voz de Catão, o Censor, fôra escutada com assombro. Elle tinha alliada á veneração devida aos seus outenta e cinco annos de edade uma longa vida intemerata, que triumphára brilhantemente de todas as calumnias, com que por vezes procuraram minar o seu ascendente moral.

N'esta mesma sessão memoranda do Senado resolveu-se que immediatamente fôsse mandado a Hespanha o Pretor Caio Vetilio com novas Legiões e Cavalleria para reforçar o Exercito provincial. Determinou mais o Senado, que Servio Sulpicio Galba e o Consul Lucio Licinio Lucullo regressassem a Roma para prestarem contas estrictas pelos seus roubos, expoliações e crueldades affrontosas.




II


O Tribuno da plebe Aulo Scribonio, estimulado pela accusação de Galba no Senado, convocou o povo de Roma para o Forum, para pedir-lhe o julgamento do Proconsul pelo crime de infanda traição. O concurso foi enorme, tanto mais que desde muitos annos a competencia judiciaria dos Concilios estava cerceada pela delegação d'esses poderes a um jury ou Conselho perpetuo.

O Tribuno fallou á multidão, com nitidez e segurança:

– Sabeis que ao Senado, como corpo dirigente da Republica, pertencem os poderes sobre o Culto, sobre a administração das riquezas do Estado e principalmente a administração das Provincias. Competia-lhe por isto a iniciativa da accusação de Galba; mas é obrigação do Tribuno impulsionar a acção publica, sobretudo quando se trata do crime de alta traição, como agora, em que é réo Servio Galba! Eis o facto na sua espantosa crueza: numerosas cidades da Lusitania, que estavam na situação angustiosa de estipendiarias, vexadas pelos pezados impostos extorquidos pelos magistrados romanos, tinham requerido ao Senado para lhes ser concedida em premio de sua fidelidade a situação de confederadas ou immunes, podendo assim governar-se pelas suas leis consuetudinarias, pelas suas magistraturas locaes, sem comtudo aspirarem ao goso dos direitos politicos de cidadãos romanos. Era a base da pacificação da Lusitania! O Proconsul Galba servindo-se da magestade do povo romano garantindo esse pedido, convocou as povoações desarmadas para lhes communicar o Edito do Senado que o legislava, e envolvendo-as nas suas legiões trucidou traiçoeiramente para mais de trinta mil pessoas, em que a par dos homens validos estavam velhos, crianças e até mulheres!

O povo permaneceu mudo, sem mostrar commoção alguma pelo quadro da horrenda carnificina. O advogado Fulvio Nobilior, que fôra encarregado da defeza de Galba, notou esta circumstancia da insensibilidade moral da plebe. O Tribuno continuou:

– Para o julgamento d'este attentado contra a magestade do Povo romano, bem sei, é preciso um exame dos factos, e por felicidade das nossas instituições sempre perfectiveis, o processo de Galba será formado pelos Questores, que appresentarão ao Concilio da plebe os seus quesitos, sobre os quaes effectuareis a votação. O que outr'ora fôra um motivo de discordia entre o Povo e o Senado é hoje uma harmonia social, por que se reconhece, que assim como os negocios judiciaes carecem de sciencia juridica para serem tratados, os assumptos de jurisdicção criminal não pódem ser sentenciados senão mui reflectidamente. E se a lei tribunicia Calpurnia avocou estas questões a um jury perpetuo, o Povo sem perder a sua prerogotiva delegou este poder judiciario aos Questores. Que Servio Sulpicio Galba seja processado pelo Conselho dos Questores, sendo as suas conclusões appresentadas á vossa deliberação no mais breve lapso de tempo.

Depois de se ter calado o Tribuno, appresentou-se diante do povo, que enchia o Forum, o advogado Fulvio Nobilior, conhecido pela sua extrema argucia, por um espirito sarcastico, que chegava a tocar as raias do cynismo. O seu poder nos tribunaes consistia em fazer desvairar as opiniões, em actuar nas consciencias suscitando a dissolução moral, tornando ridiculos os sentimentos de piedade ou de humanidade. Era sempre ouvido com interesse; a multidão comprehendia-o. Quando veiu á barra, um rumor surdo foi o prenuncio de um grande silencio; o seu discurso ficou memoravel:

– É accusado o Proconsul Servio Galba de latrocinios na Hespanha Ulterior, n'essa região, que assenta sobre jazigos de ouro e prata, a Lusitania! O que tem a fazer um homem culto entre gente barbara, senão levantar do chão as joias que vê calcadas inconscientemente? Tambem da Hespanha Citerior, acabado o seu governo de dois annos, regressa a Roma o Consul Lucio Licinio Lucullo, carregado de assombrosas riquezas, e não foi accusado de latrocinio, nem de rapinas ou extorsões. E por que, tendo os dois magistrados seguido os mesmos processos administrativos? A rasão é evidente. É por que Lucullo soube captar as sympathias, compartilhando o seu ouro e prata, e gemmas preciosas com os patricios influentes, que ahi têm assento no Senado; e para desviar a ideia dos roubos, teve o pensamento de edificar um Templo á Deusa Felicidade, a quem attribuiu a posse de tantas riquezas! Servio Galba só commetteu um erro: – quiz tudo para si, dando apenas algumas migalhas aos legionarios, que o acompanharam nas depredações! D'ahi o odio dos Tribunos da Plebe. Mas, para que dispender aqui o tempo com uma moral especulativa, se esses pretendidos roubos ou concussões fazem que Roma regorgite em riquezas espantosas, trazidas d'essa Hespanha inesgotavel á avidez do estrangeiro? Só lembrarei, que quando Roma se viu assaltada pelos Gaulezes, difficil foi ajuntar mil libras de ouro para pagar a imposição de guerra! E desde que fômos a Hespanha, sete annos antes da terceira Guerra punica, 16:800 libras de ouro já se achavam no fundo do thezouro romano! E no começo da Guerra social, o Erario regorgitava com 1:620$829 libras de ouro! Quem não comprehende que a riqueza de Roma não lhe vinha do trabalho agricola e fabril, mas da guerra em paizes ricos? Foi esta sempre a nossa politica. Combater, vencer, para civilisar, pagando-nos por nossas mãos d'este beneficio. Desde que as Legiões romanas pisaram o sólo da Lusitania, conheceu-se que o ouro nativo ahi abundava em assombrosos filões, e em palhetas nas areias do Tejo! Nada mais claro para um Governo intelligente: – submetter esse povo, fazendo-o trabalhar ao serviço de Roma na exploração das minas de ouro e prata, e de convertermos esses metaes em ornatos pessoaes, baixelas, e sobretudo em moedas, que facilitam o commercio do mundo! Evidentemente Roma é a civilisadora do orbe! Quando Scipião Africano veiu receber em Roma a apotheose pelas suas victorias sobre os Carthaginezes e Iberos, entregou ao Erario de Roma trezentas e dez arrobas de prata lavrada, pilhada em outenta villas e cidades da Iberia! Mas não resam os Annaes romanos da que o general reservou para si. E o seu successor, Lucio Cornelio Lentulo? Tambem depositou no Erario mil e trezentas arrobas de prata lavrada. É incalculavel a quantidade de arrobas de prata que os Consules e Pretores, que administraram as duas Hespanhas, transferiram das suas prezas para Roma. E os celebrados dinheiros de Osca? Porém, essa riqueza só chegava ao Povo romano em alguma festa publica de apotheose; pelo processo moderno, o povo é mais favorecido, porque essas riquezas pilhadas na Iberia e na Lusitania são dispendidas em Roma pelos seus detentores na vida faustosa com que tornam a Cidade a capital da Civilisação do mundo. E depois, de quem tomou Galba as riquezas que está espalhando em Roma? De ladrões despreziveis e abjectos, que occupam o sólo da Lusitania, raça de escravos, impando de ignorancia e orgulho, indignos do bello céo que os cobre. Eis ahi o crime. Expoliar ladrões, do que possuem estólidamente, e enriquecer Roma, que mais será preciso para a apotheose? Galba bem merece do Povo. Fique ao Senado a gloria de condemnar o valente e magnanimo Proconsul pela affectada questão de humanidade, da qual nada consta nos sublimes Annaes das nossas glorias militares, que serão sempre o assombro do mundo! E, que justiça é esta, que accusa Galba, e deixa no doce olvido o Consul Lucio Licinio Lucullo, que passou tambem á Lusitania, trucidando os Vacceos a titulo de vingar os Carpetanos, e mandando a um signal dado passar a fio de espada todos os habitantes da cidade de Caucia? Se, como dizem os nossos jurisprudentes, a Justiça é só uma, os historiadores tambem proclamam, que ha uma só gloria militar: – Vencer! Se hesitarmos nos meios… Roma perderá o imperio do mundo.

O Povo comprehendeu as cynicas palavras de Fulvio Nobilior; e até o proprio Tribuno, cumprido o dever do seu cargo, concordava no fôro intimo com essa doutrina, reveladora de uma crise da consciencia nacional, em que se preparava para futuro não remoto a transformação das instituições sociaes e politicas de Roma.




III


O Consul Vetilio partira a toda a pressa para a Hespanha Ulterior, a reforçar o exercito provincial; temorosas noticias corriam pela Cidade, de um levantamento geral das cidades da Lusitania, que visava a sacudir o jugo de Roma, tornado odioso e incomportavel pela traição execranda de Galba. O Senado confiava na valentia e intelligencia estrategica de Caio Vetilio, sem desconhecer a resistente tenacidade inquebrantavel das tribus lusitanas, que apoiavam a sua independencia individual em um territorio livre, tendo por grito de guerra:

– Vencer ou morrer!

Presentimentos aziagos se espalhavam sobre o exito da expedição de Vetilio. E emquanto espantosos successos se estariam passando longe, muito longe, na parte occidental da Hespanha, no incendio da insurreição, o detestavel Servio Sulpicio Galba vinha compellido á barra do Senado appresentar a defeza dos crimes de que fôra accusado por Catão o Censor. Elle bem sabia que deslustrára pela má fé a dignidade do Povo romano, mas confiava no poder da sua eloquencia prestigiosa.

Galba receou por um momento a condemnação, e preparou a defeza espalhando pelos Senadores e funccionarios de Roma os blocos de prata e ouro em barra, que trouxera das minas da Peninsula, onde tinha para mais de quarenta mil homens entregues ao trabalho forçado da exploração d'esses jazigos, que rendiam vinte mil dracmas argenteas por dia. E como se não bastassem as riquezas que espalhou com profusão pelos juizes, dirigiu-se-lhes ao sentimento, appresentando-se no tribunal com os seus dois filhos. Lida a accusação, foi-lhe concedida a palavra, escutada attentamente. Era um dos casos mais emocionantes de Roma. Será condemnado? será absolvido? Faziam-se apóstas, aproveitando esse lance para um jogo descarado. A palavra eloquente de Galba era conhecida e admirada.

Perorando:

– Todos vós estaes bem lembrados, que sob o consulado de Licinio Lucullo e de Aulo Postumio, um terror excessivo se apoderou dos Romanos por causa das tremendas derrotas dos nossos legionarios na Hespanha, derrotas infligidas pelos Celtiberos, por fórma, que não havia togados, nem pretorianos que se inscrevessem para acudir á remota região em que fraquejava o Poder de Roma. Scípião Africano revoltou-se contra tanta covardia, offerecendo-se para ir combater e subjugar essas populações indomitas, que luctavam pela independencia da sua terra. Passada a apparente pacificação, fui mandado como Pretor á Hispania. Eu mesmo então vencido pelos Lusitanos em uma batalha campal, consegui salvar-me com um troço de cavalleiros entre penhascos! Ah, foi alli, n'essa extrema angustia que jurei, que prometti á gloria dos Quirites o exterminio dos Lusitanos, d'essas tribus irrequietas, que são hoje o unico embaraço para que a soberania de Roma se estenda imperturbavel sobre toda a riquissima peninsula da Hispania. Lucio Minutius veiu a toda a pressa acudir á minha situação desesperada. Bem sabeis com que altivez e soberbia os Lusitanos e Celtiberos fallam contra o poder de Roma; e a todos os Proconsules, que vão ás guerras da Hispania Citerior e Ulterior, tem sido recommendado que a tantas bravatas estolidas se deve responder com castigos tremendos e inolvidaveis; e sobretudo que os Lusitanos apprendam á sua custa, que as Aguias romanas não soffrem ameaças da vil preza. Não fiz mais do que seguir a politica traçada. Dirão que me excedi na acção repressiva? Respondo, e ouça-me a historia: Emquanto existir sobre o territorio da Hispania esse povo Lusitano, hade ahi manter-se sempre vigoroso o instincto e o sentimento da autonomia. Roma nunca ahi sustentará o seu imperio tranquillo, porque as tribus lusitanas sonham com uma Patria livre! Por mais que as nossas divisões administrativas retalhem o seu territorio, desmembrando-o, mais os Lusitanos comprehendem a necessidade da Confederação das raças peninsulares como condição para repellirem o jugo estrangeiro e affirmarem a sua independencia! E se essa Confederação se chega a organisar, Roma terá no extremo occidente um inimigo mais terrivel do que Carthago, e as guerras contra os Lusitanos serão mais sangrentas do que as Guerras punicas. Foi para destruir estes germens de Confederação, que eu convoquei á falsa fé os Lusitanos para tratar das liberdades que Roma lhes concedia, e passei á espada uns sete mil d'entre elles? Sim, parecerá cruento? Mas, do mal o menos; sabei, que a Lusitania tende a unificar em uma mesma patria os Carpetanos, os Vettões, os Vacceos e os Callaicos. Do Anas ao Mar Cantabrico tudo é lusitano; e do Anas ao Cabo Sacrum, e tambem grande parte da Betica, ou Tartessida, são regiões occupadas pelos Lusitanos, o Povo mais poderoso da Hespanha, como notam os geographos. Ahi veriamos formada uma forte nação, cujo territorio terminava ao nascente dos Asturios e Celtiberos, e comprehendendo a Callaecia, com todos os territorios do Minio, do Durio até ao Tago, e mesmo a região transmontana. Do Cabo Sacrum até ao Mar Cantabrico, toda esta parte occidental da Hispania constituindo a Lusitania! comprehendeis agora o perigo que nos ameaça, e de que eu consegui salvar o poder de Roma. Nós erradamente damos o nome de Celtiberos a povos que são lusitanos de raça; julgamol-os desunidos, e apparentemente se mostram, até á hora do perigo. Se os Lusitanos chegarem um dia a estabelecer uma Confederação, serão invenciveis e derrotarão os invasores estrangeiros que tocarem o solo da amada Patria. É isto que importa ter sempre presente á consideração dos politicos, que tentarem dominar a Hispania, e governal-a enfraquecida para a exploração das suas incalculaveis riquezas. Que o dito de Catão, Delenda Carthago, se converta agora em Finis Lusitaniae! Mas, não quero acabar com uma phrase de effeito; a rhetorica não entra aqui para nada. Importa mantêr a Hispania dividida; não é em Citerior nem Ulterior, mas em LUSITANOS e IBEROS. Esses dois povos são incompativeis entre si; o Ibero admira a auctoridade, a força, e quer exercel-a impetuosamente, ao passo que o Luso ama a independencia sem ruido nem apparatos. O Ibero é incapaz de se unir para a defeza, e obedece passivamente a qualquer poder physico ou moral que se lhe imponha; o Lusitano liga-se facilmente para a defeza, em revolta contra todo o poder. Conheci pela experiencia estas differenças, e reconheci por que fórma poderia fundar na Hispania o Poder indestructivel de Roma: acabar com a Lusitania, e estender as populações ibericas. Chamado a Roma, por causa dos sete mil trucidados, que outros augmentam até trinta mil, ficou truncado o meu plano; mas estou convencido, que Roma, se não hoje, um dia me fará justiça.

No seu discurso Galba concluia por ser preciso incendiar as principaes cidades da Lusitania; passar á espada as povoações que se revoltaram; transplantar os povos lusos, substituindo-os por tribus propriamente ibericas; vender como escravos nos principaes mercados essas tribus inteiras, que pelo seu orgulho embaraçam a acção do Poder romano na Hespanha; arrasar os burgos e as citanias; estabelecer a pilhagem systematica dos campos; decapitar todos os cabeças de motim, logo que sejam agarrados ou pela força ou pela traição, e não bastando isto ainda, retalhar a Lusitania pelo menos em tres trôços: ao norte, constituindo em corpo á parte a CALLAECIA, ao centro a TARRACONIA, e a sudeste a BETICA: logo que fique a LUSITANIA reduzida ao limite do Durio ao Anas, em uma miseravel faixa de terreno, tapada pelo mar, nunca mais terá resistencia, e mesmo chegará até a esquecer-se da pretendida autonomia.

O discurso foi ouvido com assombro, não já como defeza, mas como um plano de futuro governo para a incorporação completa da Peninsula hispanica.

Quando estava para ser proferida a sentença sobre as responsabilidades de Servio Galba, eccoaram por toda Roma as desoladoras noticias vindas da Lusitania: a derrota formidanda de Vetilio! a morte ignominiosa do general romano! O exercito reduzido a seis mil homens, refugiado na cidade de Carpesso! E o poder de Roma ameaçado por um cabecilha, dizem que outr'ora Pastor, outros affirmam que Salteador de estradas, outros que é uma apparição maravilhosa d'esse Viriatho, que ha setenta e dois annos acompanhára Annibal á Italia, e que combatendo em Cannas fôra morto por Paulo Emilio!

Todas estas vozes corriam em Roma, e avolumavam-se, augmentando o terror, e o prestigio do Cabecilha. É de crêr que influiram na sentença, que absolveu a Servio Sulpicio Galba da inaudita carnificina dos trinta mil lusitanos desarmados. E tambem se conta, que a morte inesperada de Catão, o Censor, se explicava pelo desgosto de vêr a justiça avergada á iniquidade triumphante, e diminuida a gloria de Roma ultrajada nos annaes humanos.




IV


Em Roma não se formava uma ideia clara das monstruosidades praticadas por Galba. Diante d'estes planos de forte administração, e pelas doutrinas da politica de interesse, o quadro da mortandade de trinta mil individuos desarmados, convocados juridicamente pela auctoridade do Pretor, e chacinados traiçoeiramente, pouca impressão fazia na alma do povo romano: a falta de sensibilidade moral preparava a sua marcha decadente para a servidão. Mas o crime de Galba era d'aquelles que fazem levantar as pedras! D'entre os montões de cadaveres, meio incinerados e cobertos de pedregulhos, quando a noite viera pôr termo á carnificina, levantaram-se cautelosamente algumas das raras victimas, que a casualidade resguardára dos golpes successivos que esmagavam aquella multidão inerme; e esses desgraçados, fugindo por entre as trevas cerradas, espalharam-se pelas montanhas e valles, e fôram, de povoação em povoação, de cidade em cidade, clamando, bradando, fazendo a narrativa da tremenda catastrophe com que os romanos invasores queriam extinguir os Povos Lusitanos.

Esses foragidos, ainda cobertos de sangue e de lama tábida, rôtos e estropeados, levados em um desvario de quem perdeu a rasão pela enormidade do terror, dispersaram-se pelos campos e fôram dar ás grandes cidades municipaes como Ollissipo, aos Conventos juridicos como Scalabis e Jerabriga, narrando o espantoso successo. Por pobras e aldeias, por casaes e villares, por citanias no alto dos montes, por toda a parte correu o rumor sinistro da mortandade atrocissima e iniqua, e não houve folego vivo que se não extorcesse em impetos de colera impotente, em revolta moral contra o maior attentado que á luz do sol se tinha praticado contra a lei humana. O grito delirante dos foragidos, que iam de terra em terra repetindo a tragica narração, tornava-se contagioso, e acordava um profundo instincto de revolta, que ia crescendo como uma onda até rebentar em uma convulsão irreprimivel. Os Arevacos, os Tittes e os Belli, povos que andavam sempre em mortaes conflictos, agora achavam-se unidos no mesmo protesto. Rugidos de colera irrefreavel irrompiam entre os Asturios, Callaecos, Vacceos e Carpetanos; estes olhavam com anciedade quem daria começo a uma lucta, para a qual nada estava preparado, a não ser um temperamento sempre resistente. Para o sul os Oretanos, Bastitanos e Edetanos ardiam em um rancor exacerbado pela inqualificavel traição de Galba, legitimo representante da fé romana. Já sôavam no ár Cantigas de guerra, que levantavam as almas; e até por essas povoações remotas e mal conhecidas, como Lubara, Aritium, Elbocoris, Araducta, Verurio, Vellade, Arabriga, Tacubis, cujos nomes os geographos romanos e naturalistas não queriam repetir por consideral-os barbaros, por onde quer que passaram os foragidos que escaparam casualmente da horrifica matança, já se formavam trôços de gente armada com hozes, ou fateixas de arrêmeço, catanas grossas, pelo instincto natural da defeza de seus lares.

Esses poucos foragidos levavam na palavra o incendio, que se espalhava de cidade em cidade, de povoado em povoado, narrando desenfeitadamente o crime do governo de Roma. É certo que a população lusitana estava cansada das recentes e inefficazes luctas; as cidades confederadas e estipendiarias queriam o socego da sua vida laboriosa, supportando sacrificios da liberdade. Nas cidades dos Turdetanos, como Balsa, Salacia, Cetobriga eccoara imprevistamente o caso nefando da carnificina, e lamentavam não existirem chefes que organisassem a resistencia contra o brutal e monstruoso attentado. E se esta impotencia, ao menos, assegurasse alguns annos de tranquillidade para o sul da Peninsula! Outro Pretor que venha, diante da impunidade d'este, até onde levará as depredações e os morticinios!

Os povos que gosavam das garantias de Municipio romano não queriam mover-se para não decahirem dos privilegios que fruiam concedidos pelo conquistador; os povos que participavam dos direitos do antigo Lacio obedeciam á mesma tendencia egoista. Sómente entre os povos na situação de tributarios poderia surgir um impulsivo instincto, mas impotente de revolta. Nas cidades dos povos denominados Celticos e Iberos havia um certo ciume contra a aspiração hegemonica dos Lusitanos; mas nem por isso se ligou menos interesse ás narrativas dos foragidos da matança de Galba. Os seus gritos repetidos de terra em terra chegaram a Laucobriga, a Castraleuco, Arandis, Mirebriga, e os trabalhadores do campo interrompiam as bessadas para escutarem esse caso estupendo; as festas religiosas e as nupciaes suspendiam-se á chegada d'essas figuras sangrentas, que pareciam phantasmas resurgidos do campo da matança para virem reclamar a eterna vindicta.

Ouvireis o que bradavam esses foragidos, quasi em delirio, alguns d'elles cahindo no chão esgotados de sangue que ainda vertiam das feridas, outros borbotando sangue pela bocca, aos gritos convulsivos com que narravam o caso da mortandade.

– «O Pretor Servio Sulpicio Galba convocou para uma assembléa nas campinas da margem direita do rio Tagus, os trez Conventos da Lusitania Emeritense, Pacense e Scalabitano com as trinta e seis Cidades estipendiarias, recommendando que viessem sem armas, porque se tratava da distribuição de terras, do estabelecimento de novas Colonias, e de elevar alguns Povos tributarios aos privilegios de Cidades Confederadas, de Municipio romano e do antigo Lacio.

«Confiados nas palavras do Edito do Pretor, concorreram ao local que lhes fôra aprazado, muitos povos, interrompendo as suas lavouras; e como se fôsse para uma festa de paz e congratulação levaram comsigo suas mulheres e filhos, e os anciãos mais venerandos das tribus, como arrefens do seu animo pacifico.

«O Pretor ordenou que se ajuntassem na campina em que tinha mandado plantar uma Arvore de Maio, junto da qual se devia assignar o pacto perpetuo da concordia com as Tribus lusitanas.

«Emquanto se esperava o Pretor cercado da sua Cohorte, começaram a apparecer quatro Legiões, que se formaram em orbis, estendendo em ordem de batalha as suas tres fileiras, e envolvendo como em uma grande muralha toda aquella multidão inerme! Ninguem suspeitava o intuito do subito envolvimento.

«Os manipulos da Legião, com as suas bandeirolas fôram marcando os logares, que á frente de todos occuparam os Hastarios; por traz d'estes ficaram os Principes dispostos de modo a por entre elles poderem recuar os que lhe estavam em frente; na terceira linha estendiam-se os Triarios, como barreira de resistencia.

«Depois d'isto appareceu a Cavalleria, correspondendo quinhentos Cavalleiros a cada Legião, armados com o gladio hispanico de dois gumes. Foi então que um gelido terror se apoderou d'aquelle povo indefenso. As lanças e chuços dos Hastarios collocaram-se por um movimento repentino em riste, como formando uma muralha cerrada de espetos.

«O Pretor Galba não apparecia! Um presentimento de morte se estampou na lividez de todos os rostos, quando viram por detraz dos triarios moverem-se torres de madeira, catapultas e balistas.

«Com certeza Galba planeára uma infamissima traição! Como fugir-lhe? As mulheres, em lamentos atroadores, abraçavam os filhos, sem perceberem ainda o perigo. Os velhos aconselhavam prudencia, esperando serenos as ordens do Pretor.

«N'este momento de angustia pezados calháos fôram de longe arremessados por catapultas contra aquella multidão compacta, esmagando alli algumas centenas de lusitanos. O grito de espanto parecia uma tempestade; os que tentavam fugir fôram espetar-se e morrer nas fileiras cerradas dos Hastarios; os que se estreitavam uns aos outros n'um panico inconsiderado abafavam-se.

«E emquanto iam chovendo os grandes calháos arrojados pelas catapultas, cahiam sobre a multidão as Falaricas ou lanças incendiarias, que os Romanos tinham tomado dos costumes hispanos, e outros engenhos arremessavam panellas de pez e estôpa ardendo, que os Cestrophendones faziam cahir no meio da assembléa.

«E como se não bastasse tudo isto para destruir aquella gente desarmada, os Fundibularios baleares mantinham um chuveiro de pedras sempre certeiras, coadjuvados pelos Arcubalistas.

«A multidão ainda se movia, embora não offerecesse resistencia alguma; mas Galba, querendo terminar a sua hediondissima traição e vendo que o sol já declinava, resolveu o final exterminio antes do descer da noite. Os Cavalleiros recusavam-se á fadiga de passar á espada tantissima gente inerme que ainda sobrevivia. Foi então que Galba se lembrou de como na guerra de Macedonia, Paulo Emilio deveu a victoria decisiva ao emprego da tactica dos Elephantes; e deu logo ordem a que os dez Elephantes offerecidos por Massinissa aos Romanos para servirem nas guerras contra os Celtiberos, se empregassem agora para acabarem de esmagar os temerosos rebeldes Lusitanos.

«Os Elephantes couraçados com chapas guarnecidas de espadas fôram conduzidos para aquelle montão de gente, cuja carne e sangue formava com a terra recalcada uma massa horrenda. De baixo das patas dos dez Elephantes sentiam-se fracassar os ossos das victimas, e o sangue respingava-lhes até aos peitos, prendendo-se-lhe nas pernas as tripas que eram casualmente arrancadas na sua passagem.

«A noite vinha descendo caliginosa e um vapor espêsso se erguia dos valles fundos. Foi então, que ainda d'entre o montão dos cadaveres se ergueu um vulto surrateiramente, e saltando ao pescoço de um Elephante, o pezado animal cahiu redondamente morto em terra! As trévas iam-se engrossando, e o vulto agil e escorreito foi assim saltando sobre cada um dos Elephantes, que por seu turno iam cahindo mortos! Quem seria esse vulto extraordinario, que sabia o segredo de dar a morte instantanea a tão poderosos animaes, em cuja pelle não penetravam os mais pujantes dardos? Quem quer que fôsse, elle sabia o segredo apprendido nas Guerras punicas: de que a mais leve picadela no bolbo pela vertebra que toca no craneo do Elephante fazia-o cahir fulminado instantaneamente. Assim fôram mortos os dez Elephantes.

«A noite era já cerrada; e enquanto Galba mandára lançar fogo ao montão dos cadaveres entre os quaes fôram encontrados os dez Elephantes de Massinissa, d'entre esses cadaveres escaparam-se alguns individuos que se tinham occultado debaixo dos corpos exânimes, e que se fingiram mortos: são esses os que andam de cidade em cidade da Lusitania e da Turdetania pedindo vingança! Vingança! Vingança!»

Por valles e serras, e resoando de monte a monte, entoava-se um Canto de guerra, que fazia referver o sangue nas veias, exaltando os espiritos ainda os mais acabrunhados. O Canto podia mais do que a reflexão, e cada povo accrescentava-lhe uma nova estrophe, como a aspiração do resgate. A palavra poetica é alada, o pelo prestigio da tradição transpõe as edades repercutindo-se na alma dos vindouros.


Baladro de guerra

Terra da Lusitania,
Ensopada de sangue
Por horrendo baldão!

Chamou-nos o Romano
Para a alliança de paz,
Mata-nos á traição!

Virus de iniquidade,
D'esse fermento de odio
Brote a destruição.

Que a lança dos Quirites
Se quebre, e em nossa frente
Não se erga Legião!

Quem sobrevive ao crime,
E escuta estes lamentos
Da atroz desolação;

Quem perdeu lá seus filhos,
Os paes, entes queridos,
O esposo, o irmão;

Que se revoltem todos,
Peitos sejam escudos,
Lanças raios na mão!

Soffrimento e opprobrio,
A morte e a vingança
Forçam á união!

Vós, Povos da Callaecia,
De Oretania, Beturia,
Cynesia região;

Robustos Carpetanos,
Tartessios, desmembrados
Da Lusonia nação!

Que o mesmo odio nos una,
Vingae mortos, e os vivos
Salvae da escravidão!

Reviva a Lusitania,
Ensopada no sangue
Da romana traição.




V


De todas aquellas povoações até onde chegára o rumor da horrente catastrophe, partiram homens audaciosos, movidos pela curiosidade para observarem com os seus olhos os despojos que restavam; alguns não voltaram mais aos seus lares, porque iam engrossando uma onda dos revoltados contra tamanha traição. Os que regressavam espavoridos contavam o assombro que lhes causára o vêr uma ampla campina coberta de cadaveres incompletamente carbonisados, em volta dos quaes uivavam lobos em numerosas alcateias, e aguias e abutres que esvoaçavam em bando sobre a vasta presa, cujo fetido os attrahira de longe. As calmas estivaes tornavam-se mais intensas, apressando a putrefação de tantos cadaveres; as fortes nortadas levavam até muito longe os miasmas, e n'uma e n'outra cidade da Lusitania appareciam ameaços aterradores da peste. Era a perspectiva de uma mais horrivel devastação, porque se não via o látego mortifero que flagellava os povos. Um pensamento de piedade pelos mortos occorreu suscitado pelas calamidades:

– É certo que esses corpos insepultos reclamam dos vivos o cumprimento de um dever sagrado! Em quanto lhes não dermos sepultura condigna, suas almas andarão errantes diante de nós, perturbando-nos, perseguindo-nos até acordarmos do nosso desdem egoista. Carecemos para propria segurança de lhes darmos sepultura segundo o patrio e antigo costume, quando se encontra um morto n'um ermo ou n'uma encruzilhada. Que cada cidade, villar ou aldeia, faça suas peregrinações ao campo da matança, e seguindo a tradição da piedade, cada um arroje uma pedra para cima dos cadaveres até que se formem Montes Gaudios, que serão os tumulos venerandos dos nossos desventurados conterraneos.

Segundo aquelle costume, vogou de cidade em cidade a ideia da funebre peregrinação, e não eram ainda bem passadas duas luas quando por toda a Lusitania se operára um movimento que ligava todas as povoações no mesmo affecto. Os mortos podiam agora mais de que os vivos, porque por via d'elles se uniam tribus até aquelle dia inconciliaveis, que iam visitar o campo da matança e lançar suas pedras para erguerem bem alto os Montes Gaudios, que deviam tornar-se não um simples monumento funerario, mas uma como torre de protesto e de eterna revolta. Muitos povos dispersos nas regiões de entre Durio e Minio, entre o Durio e o Tagus e mesmo os que se achavam para lá da banda de Traz dos Montes, desde a foz do Anas até ao Mar Cantabrico, adheriram á desolação dos Lusitanos, e mandaram tambem peregrinações ao campo da matança para que os Montes Gaudios attestassem aos vindouros que elles se consideravam formando parte d'este valente e activo povo ribeirinho que dos seus portos de Lez e das suas bem trabalhadas Lezirias tomára o nome nacional de Lusitania. O ecco da grande catastrophe produzida pela perfidia impune de Galba chegára egualmente aos confins dos territorios dos Asturios e Celtiberos. Os Povos denominados Carpetanos, os Vettões, os Vacceos e Callaecos, que sempre se tinham conservado apartados para o norte da Hespanha esperando constituir uma Confederação e unidade política sob o nome de Callaecia, agora sentiam-se dominados pela insondavel fatalidade que arrastára os destemidos e independentes Lusitanos á maior das ruinas; elles vierão em magotes vêr de perto a horrorosa mortandade, e arrojar piedosamente mais pedras para os Montes Gaudios. Esses tumulos cresciam, como attestando ao mundo, que eram innumeros os corações que pulsavam por inultos mortos, e que os mesmos braços que arrojaram aquellas pedras, serão os mesmos que arremessarão as suas lanças e brandirão as pezadas lorigas contra o fautor da execranda iniquidade.

Assim se fôram formando bandos e numerosas guerrilhas, imperfeitamente armadas, que clamavam por vingança; e vendo que muitas cidades alliadas dos Romanos, e outras por temor ou covardia, não tinham vindo celebrar a cerimonia dos Montes Gaudios, foi contra ellas que arremeteram na sua ancia de vindicta. Passavam ja de dez mil os Lusitanos que se ajuntaram em differentes guerrilhas, entregues á aventura e audacia de destemidos Cabecilhas, que fôram descendo para o sul da Peninsula, devastando e roubando quantos povos encontravam que estavam no goso do patronato romano. Chegaram até á Turdetania, essa opulenta região banhada pelo Betis, tendo por limite da parte do norte o curso do Anas; e levaram a sua audacia até ao ponto de atacarem a importante fortaleza de Gades, ou Gadir, como lhe chamaram os Phenicios. Não era sem rasão que os viajantes phenicios, gregos e romanos diziam que os Lusitanos eram o povo mais numeroso e valente entre as nações de toda a Iberia.




VI


A Hespanha Ulterior estava quasi completamente insurrecta. Passavam de dez mil os Lusitanos revoltados contra o poder de Roma, e que juraram sacudir o infame jugo. No seu Conselho armado decidira-se, que todo aquelle que podesse sustentar-se a cavallo, embora velho ou doente, se appresentasse para o combate; mesmo as crianças que podessem alevantar um chuço ficavam obrigadas a incorporar-se nas turmas e milicias de cada terra.

Era o começo de anno estival, e na entrada de Maio, em que se faziam as dansas e cantares debaixo do verde pinheiro, e em que os homens validos, os chefes de familia, effectuavam as grandes paradas das suas forças defensivas. Parece que o ajuntamento d'aquella multidão enorme respirava um ár de festa, uma alegria communicativa, em que a ideia de morrer pela liberdade da sua terra dava uma exaltação delirante; dir-se-hia que era a Primavera sagrada, em que novas colonias iam pelo mundo para fundarem uma outra cidade. Verdadeiramente era uma entrada em campanha, em que o costume vinha coadjuvar a necessidade. Viam-se homens da estatura meã, e enxutos de carnes, de cabellos pretos e olhos castanhos, ligeiros e ageis, capazes de resistir a todas as intempéries, soffrendo todas as privações mas sempre alegres; traziam pendurados ao pescoço, por correias, pequenos escudos de tamanho de quatro palmos, e prezas á cinta umas compridas facas, a que se soccorriam em lances decisivos, e ainda no combate pessoal. O braço era armado com uma lança comprida, com uma ponta de bronze e um gancho ao lado, servindo para ferir e prender aquelle que topasse na frente. Apenas lhes defendia o corpo uma couraça de linho crú fortemente tecido, ou treu, sobre a qual assentava uma cóta de malha tecida de arame, que nenhum dardo poderia atravessar. Capacetes de couro com triplice cimeira cobriam-lhes as cabeças, aparando com segurança os golpes dos montantes; outros guerreiros traziam os cabellos compridos, como usam as mulheres, cingidos com nastro na fronte, no momento das refregas; os peões appresentavam-se com cnémides, saiaes negros, e chuços; outros com bragas forradas de pele de cabra, ou safões. E os Cavalleiros, montavam alazões e fouveiros, com estribos em fórma de concha feitos de madeira; com mantos listrados formando quadrados variegados. Formavam grupos de trez em trez, a que davam outr'ora o nome de Trimarkisia, indo um dos Cavalleiros á frente no ataque, ficando mais atraz os outros dois para o defenderem e substituirem. Reinava uma certa ordem n'essa multidão, dividida em catervas de infantes ou peões, com alguns Cavalleiros nas alas extremas: e os Hastarios, os Sagitarios, ou archeiros, os Fundibularios, moviam-se com uma ligeireza extrema, tomando os Cavalleiros como pontos de mira para se ajuntarem no sitio em que se tornava mais urgente a defeza ou o ataque. Os Carros, ou Covões armados de longos espetos, eram puxados a quatro cavallos, empregando-os para romperem a ordem da infantaria inimiga, e para servirem de parapeito e estacada defensiva detraz dos quaes os archeiros arrojavam os seus dardos.

Foi no meio de uma anciedade de lucta, que entre as Catervas lusitanas correu a nova, de que já pisava terras de Hespanha o Consul Caio Vetilio, com tropas frescas e aguerridas; o Senado encarregára-o de reprimir o levantamento provocado pela infamissima traição de Galba, que, deixando-o impune, tacitamente a approvava. Vetilio chegou a Corduba, onde assentára o seu quartel general. Tudo se sabia no campo lusitano, porque não faltavam esculcas e mensageiros, que davam conta dos movimentos do velho Consul.

Em Corduba ia Vetilio ajuntando todas as tropas romanas, que estavam como presidiarias, formando phalanges com as que trouxera de Roma, e dando-lhes uma forte disciplina, que centuplicava a sua resistencia. Não havia tempo a perder; a rapidez do ataque muitas vezes decide da sorte da campanha, e Vetilio como general experimentado comprehendeu que tinha de luctar com tribus de uma resistencia tenacissima, que se deixavam matar, mas que não transigiam com a perda da liberdade da sua terra.

O territorio da Lusitania, que se conservára submisso, fôra, pela traição de Galba, agitado por uma insurreição tremenda; com a maxima rapidez e a marchas forçadas, o Consul Vetilio, no rigor do inverno, transpozera os Pyrenneus, vencendo difficuldades insuperaveis, e engrossando as novas Legiões com as tropas que nas provincias pacificadas estacionavam em seus quarteis de inverno. Entrava na Hespanha Ulterior com um grande exercito, maior do que aquelle com que partira de Roma, e o exito da empreza fôra bem calculado – cahindo de surpreza sobre as populações insurrectas, e impellindo-as á defensiva, sem tréguas, sem lhes dar tempo para organisarem a resistencia.




VII


Vetilio deu ordem para que o seu exercito, de mais de dez mil homens sahisse de Corduba, e seguindo em massa compacta pela Turdetania fôsse ao encontro das tribus lusitanas; e fortificadas por uma severa disciplina, contava que as tropas luctariam com vantagem contra Catervas impetuosas, mas sem a cohesão de um bom e seguro commando, nem a lucidez de um pensado plano estrategico.

E não se enganava. Ao segundo dia de marcha, Vetilio avistou ao longe, em um valle immenso, grande numero de Carros de guerra, e Cavalleiros, e por traz d'elles, negrejando, Catervas de peões, que pela direcção que traziam, com certeza vinham sobre Corduba com intenção de assediar o exercito romano, ahi na capital da Turdetania. Era o instante opportuno. Vetilio manda organisar em columna todos os seus infantes: aos flancos os seus Carros, com os projectis incendiarios; a Cavalleria mais atraz, destinada a envolver as tribus lusitanas durante o ataque.

Desde que as tropas romanas fôram avistadas pelos Lusitanos, um grito immenso como de alegria retumbou nos áres, como os renchilidos e apupos ou atruxos com que se distinguiam as varias povoações lusonias; e d'entre esse ruido escutava-se o ecco de cantos, de hymnos, que davam uma animação indescriptivel ao movimento dos combatentes. Vetilio contava com o enthusiasmo dos Lusitanos no primeiro assalto, e reservou todas as suas forças para sustentar o pezo d'esse primeiro impeto. E a carga dos peões lusitanos foi imponente, mesmo incomparavel. Valeu-lhe ao Consul o sangue-frio que soube mantêr; e foi assim, que subitamente reconheceu, que o exercito dos Lusitanos, tão numeroso como o seu, e que não constava de menos de dez mil homens, não tinha cohesão entre si; faltava-lhe a disciplina, e mais do que isso pela ordem de combate descobriu que essa multidão compacta não tinha um general, que sustentasse intelligentemente o commando. O numero extraordinario dos combatentes lusitanos complicava a sua propria segurança, pela falta de um chefe digno d'este nome. Este relance de Vetilio bastou para abranger a situação, e no seu espirito entrou a segurança de que seria certa a victoria. E tirando partido da situação comprehendeu que para vencer era a melhor condição empenhar-se em uma batalha campal com todas as suas tropas; por que embora os Lusitanos aguerridos apresentassem um egual numero, faltava-lhes o commando, o que tornava perigosa a sua situação em campo raso. As Legiões estavam então formadas com quatro mil infantes de linha, que se dividiam em trinta manipulos ou companhias, manobrando em campanha como a unidade tactica de uma divisão moderna. E esses manipulos ou companhias, agrupavam-se em cohortes ou batalhões, em numero de dez.

Passado o primeiro impeto de uma carga destemida de lanças, que os soldados de Vetilio apararam rijamente nos seus escudos, o Consul aproveitou-se da tactica aprendida nas guerras de Hespanha, e mandando-os formar em cunha rompeu as filas dividindo-as, mandando em seguida as suas quadrigas a toda a carreira sobre os flancos, para evitar que tornassem outra vez a reunir-se. Os Cavalleiros dispersos por entre a multidão desorientada, trucidavam incessantemente os que encontravam com um furor attonito, mal sabendo defender-se. A Legião romana mais uma vez, sob o commando de um habil chefe, patenteava a importancia da sua constituição estrategica. A lucta prolongou-se com coragem da parte das tribus lusitanas, mas repentinamente ellas reconheceram-se enfraquecidas, não por falta de valentia, nem de bravura, mas pela imprevidencia com que entraram em campanha, sem um chefe que as dirigisse e tivesse firmemente disciplinado.

Toda a lucta n'estas condições era uma temeridade estulta, um inutil sacrificio. A batalha era agora insistentemente continuada por Vetilio; milhares de cadaveres cobriam o solo recalcado, e o Consul pensava já em aniquilar toda essa multidão lusitana que ainda resistia. O sol declinava; prestes viria a noite, e era de força que o triumpho de Roma ficasse definitivo. Os Lusitanos sem esperança, sentiam-se cansados; a fome e a sêde hallucinava-os até ao desespero, e cercados no valle em que tinham sido surprehendidos, só viam um unico refugio para escaparem ao inevitavel destroço – renderem-se!

D'entre o campo dos Lusitanos fôram enviados a Vetilio quatro emissarios, levando erguidos ao alto ramos de oliveira. O Consul consentiu que chegassem á sua presença, e que appresentassem a mensagem; um d'elles por nome Diálcon, fallou:

– Vimos aqui pedir a suspensão do combate, e a paz, rendendo-nos em massa ao Poder de Roma!

O Consul mandou suspender as hostilidades; e perguntou com dureza aos emissarios:

– Quem responde pela revolta contra a soberania de Roma?

– Nós todos, perdendo o direito de Povos livres; mas conservando sómente a liberdade individual de cada lusitano.

– É muito! retorquiu-lhes o Consul.

– Se não quereis matar-nos, passando tudo á espada, só poderemos acceitar a vida com a liberdade individual que pedimos. E é isso bem pouco, diante do Poder de Roma; porque de hoje em diante podereis mandar-nos habitar o territorio que á grande e generosa Roma lhe aprouver conceder-nos. Ahi em campos de concentração, nos conservaremos quietos e submissos no cumprimento de todas as imposições.

Parecia mais que fallava um traidor do que um vencido; mas o escalavro das forças lusitanas era estupendo e tudo justificava. O Consul Vetilio, velho e astuto, determinou que os emissarios se retirassem, voltando na madrugada para assignarem o pacto da rendição e submissão perpetua, incondicional e peremptoria, vindo acompanhados de refens nobres, que pela sua vida ficariam responsaveis pela tranquillidade das tribus lusas. No resto da noite, Caio Vetilio ficou pensando nas consequencias da sua incomparavel victoria, no prestigio que teria em Roma, no impôsto de guerra que cobraria das populações subjugadas, dos escravos que o acompanhariam na entrada triumphal na Cidade do Tibre! Os sonhos acordados são mais bellos do que os que se tem dormindo, mas não são menos fallaciosos.




VIII


Noite cerrada, quando os emissarios chegaram ao acampamento lusitano. Eram esperados com trépida anciedade. Traziam alçados os galhos de oliveira, denunciando de longe a concessão do armisticio e no seguinte dia o assentamento da paz. Extenuadas de fadiga e famintas, as hostes ouviram sem espanto as condições prévias impostas pelo Consul Vetilio. N'aquella angustia desesperada apagavam-se as energias moraes, e era-lhes mesmo indifferente que a Lusitania fôsse livre ou escrava. E considerando a situação, trezentos lusitanos para trez mil romanos patenteavam uma desproporcional desegualdade, que seria rematada loucura defrontarem-se as forças.

Quando os emissarios accentuaram as palavras de Vetilio – submissão perpetua e incondicional, com garantia de refens para a effectividade do pacto – ouviu-se um rugido, como de uma féra que se vê subitamente preza. Esse rugido não articulado, que nem mesmo era imprecação, infundiu uma emoção terrifica e desconhecida. Olharam todos em volta da gente que se atropellava junto do Conselho armado, e viram um homem bastante novo, de menos de trinta annos, de estatura mediana, delgado, mas robusto e de aspecto decidido. Fez-se um silencio inesperado, involuntario, por que aquelle impeto de colera fizera suspender qualquer resolução repentina e fatalmente covarde. O vulto pareceu crescer com a grandeza da commoção, e aproveitando o momento unico, fallou:

– Para ser escravo de Roma não são precisos tratados, nem refens. Tudo isso é um ludibrio. Todos nós sabemos como a grande e generosa Roma cumpre os seus tratados. Seremos nós tão estupidos e indignos, que ainda depois da inolvidavel traição de Servio Galba, e da sua impunidade, confiemos n'uma potencia, que, não fallando já das riquezas, nos rouba a nossa liberdade? E esse Consul, que está em campo aberto, com as suas Legiões contra nós, que outro intuito tem senão a oppressão da desmembrada Lusitania, e o animo exclusivo da rapinagem? Bem pouco tempo ha decorrido sobre o estupendo morticinio, e já parece que ninguem aqui se lembra do juramento feito sobre os despojos dos clamorosos trucidados. O verbo do juramento foi —Vencer ou morrer!– Eu ainda não perdi a esperança de vencermos…

Um rumor irrepressivel cortou a phrase do moço, que suscitára latentes energias.

Elle continuou em um tom firme e de crença communicativa:

– Que loucura o confiar na fé dos Romanos! A tregua que nos concedem até ámanhã é um torpe embuste; o Consul pançudo finge que nos outorga uma paz generosa, simula a assignatura de um pacto para conseguir por esse meio capcioso a entrega das armas pela nossa parte, e em seguida, como é de uso, extermina-nos em massa, porque não quererá ser menos do que Servio Sulpicio Galba. Tal é a sorte miseranda que vos espera a todos, se…

Diante d'esta suspensão intencional e suggestiva, muitas vozes soltas d'entre os grupos o interromperam:

– Que fazer? que fazer?

– Resistir! – exclamou promptamente o moço, confiado e sorridente: Nada está perdido. Poderemos salvar-nos, e até mesmo…

– Falla! falla! Dize o que temos a fazer.

– Obedecer-me.

Ao ouvirem esta phrase incisiva e simples, mas com uma vibração sobrehumana, que denunciava uma absoluta confiança em si, entreolharam-se todos abalados, hesitantes, como que interrogando, quem era e d'onde viera aquelle homem audacioso. Elle proseguiu:

– Comprehendo a vossa desconfiança; não me conheceis de figura, nem mesmo esta estatura meã e magra se vos impõe, como o faria qualquer colosso. Mas, quem aqui se recordar do nome de Ouriato, d'aquelle pastor que conseguiu escapar da carnificina de Galba; d'aquelle que sabe o segredo de dar morte instantanea aos elephantes africanos; d'aquelle que andou de cidade em cidade proclamando a insurreição, a guerra santa e a vindicta contra o invasor estrangeiro, contra a occupação dos Romanos, que nos escravisam, reconhecerá que é um homem decidido que vos offerece a salvação e talvez a victoria.

– Ouriato! Ouriato! – proromperam de todos os lados vozes de acclamação.

Este nome proferido n'aquelle lance extremo de um exercito prestes a entregar-se, reaccendeu coragem nos animos abatidos; todos esperaram que Ouriato completasse o seu pensamento, dando-lhe em um tacito assentimento a certeza da inteira obediencia. O pastor fallou:

– Desde os mais tenros annos, eu trabalho na deambulação dos gados, que vêm das regiões calmosas para a frescura dos dois Herminios, e d'aqui dirigindo-os para os seus bostaes na epoca das invernias. N'este serviço, em que se me tem confiado mais de vinte mil cabeças de gado, e por que soube sempre defendel-o dos perigos das barrocaes, dos ursos e da pilhagem dos romanos, cheguei a ser Maioral, ou chefe da Mésta! Bem comprehendereis que, embora novo, eu devo conhecer como as palmas de minhas mãos todos os territorios da nossa Lusitania, os seus montes, os seus valles, covões, algares, cavernas profundas e passagens dos váos das ribeiras e cachões dos caudalosos rios. É esse conhecimento o que n'este momento me dá um poder unico e inesperado.

– Obedeçâmos a Ouriato! gritou a multidão entrevendo o plano de uma retirada habil. – Obedeçamos-lhe cegamente!

Ouriato, fitando os principaes chefes dos terços, que se tinham approximado, expoz com simplicidade:

– Aqui em frente de nós, passado aquelle outeiro, estende-se uma planura vasta, revestida de uma relva fina e variegada como um tapete, que dá vontade de retoiçar sobre ella! Ai de quem deixar ahi entrar os rebanhos! Essa planura encantadora chama-se o Barrocal fundeiro. Todas as suas ravinas fôram niveladas pelas neves do inverno, e sobre essa face lisa aos primeiros adoçamentos da temperatura, desabrochou com uma pasmosa vivacidade o nardo ou gervum, formando um espêsso e cerrado tapete em que as raizes se entrelaçam rijamente! É um gosto deslisar sobre esse vistoso relvado, que exhala um perfume estonteante; mas as neves vão-se derretendo por debaixo d'elle, e infiltrando-se pela terra mole e lodacenta; o tapete de verdura mantem-se então encobrindo todo o Barrocal, conservando uma apparente planura! Gado que alli pise rompe com o seu pezo o tecido forte das raizes do gervum, e abysma-se pelas terras moles, d'onde não é possivel arrancal-o. Pois bem! é para ahi que eu conseguirei attrahir o exercito de Vetilio; hade ficar como o carrapato na lama.

O terror converteu-se em alegria, irrompendo uma gargalhada estrepitante. Então levantaram Ouriato sobre os hombros, alguns dos companheiros que com elle escaparam da carnificina de Galba; e á luz das fogueiras do arraial, elle fitou as catervas que contemplavam o pastor destemido. Brandindo no ár a foice roçadoira, que sempre o acompanhava, Ouriato proferiu:

– Eu juro, mais do que pela minha vida, pela liberdade d'esta nossa Lusitania, que salvarei o exercito, com tanto que me obedeçam, na execução do plano. D'isso depende o exito completo.

Cavalleiros, peões, fundibularios, todos sem reserva ergueram os braços dextros para o ár, como symbolo sacramental, bradando unisonos:

– Juramos obedecer-te! até á morte.

– Ouriato é o nosso chefe.

– Ouriato manda sobre nós todos; ninguem tem mais poder do que elle.

E collocando Ouriato sobre um grande escudo feito de coiro crú, quatro valentes hastarios erguendo-o bem alto, levaram-o em redor do acampamento em uma marcha solemne, parando de vez em quando para gritarem:

– Ouriato é o nosso chefe!

– Ouriato manda sobre nós todos.

– Obedeçâmos-lhe até á morte.

Á maneira que o nome de Ouriato ia resoando na calada da noite, tambem na reminiscencia da soldadesca se acordava a vaga relação com o nome glorioso de um valente lusitano, que em tempos não remotos acompanhando Annibal, fôra combater os romanos até á propria Italia. Esse ainda lembrado VIRIATHO, que no seu odio contra Roma transpozera os Pyreneos e os Alpes, dizem que morrera na batalha de Cannas; mas o seu odio não morreu, é redivivo. E por ventura não será Viriatho o que agora reapparece na figura do Maioral da Mésta, do valente Ouriato? Como elle, é um salvador que resurge, um vingador da liberdade da Lusitania?

Este prestigio espalhou-se entre a soldadesca, influindo por modo absoluto na confiança do commando de Ouriato. E desde aquelle momento os dois nomes identificaram-se, como synthetisando a missão do guerreiro que votava a sua vida á defeza da Lusitania livre de todo o jugo estrangeiro. Emquanto levavam o novo general em triumpho, e as acclamações repercutiam por todo o acampamento lusitano, os chefes depostos conformaram-se pela necessidade da situação desesperada a tudo cumprirem. Acercaram-se do novo chefe, para receberem as particularidades do plano da cilada sob a fórma apparente de retirada urgentissima, logo ao primeiro alvor. Todas estas disposições fôram organisadas aproveitando o costume dos generaes romanos de suspenderem a marcha durante a noite.

As cohortes lusas, emquanto aguardavam o momento de se moverem, cantavam coreadamente:


Acclamação de Viriatho

Ha setenta e dois annos
Que falta aos Lusitanos
Um braço que os defenda
Da escravidão horrenda!

Rumor incerto espalha,
Que morreu na batalha
Que se travou em Cannas
Contra as Legiões romanas.

É rumor não exacto;
Não morreu Viriatho!
Porque o odio não morre,
E esse odio nos soccorre.

Rejuvenesceu hoje!
Viriatho nos arroje
Á implacavel guerra
Por esta livre Terra.

Salvador desejado,
Não debalde esperado,
Vencerão seus tyrannos
Por ti os Lusitanos.




IX


Acclamado chefe supremo, acceitou Ouriato desde esse momento o titulo de Viriatho, que já não era um nome mas uma prestigiosa invocação, um grito de guerra, que dava confiança e energia ás almas. O que Viriatho assentou no Conselho armado com os chefes dos terços e catervas, de essedarios e trimarkisios, sobre o seu plano estrategico, patenteou-se d'ahi a poucas horas nos pavorosos effeitos.

Rompia a madrugada. Vetilio, em seu acampamento, esperava os emissarios lusitanos para effectuar-se a rendição e a deposição das armas. Alvorecia-lhe um dia de gloria: firmava de um modo estavel o dominio de Roma na Hispania Ulterior, e antegostava a entrada triumphal na Cidade eterna, ladeado de despojos riquissimos e prisioneiros. O sol erguia-se, e Vetilio, estranhando a demora, entendeu tirar partido do caso inopinado, que justificaria todas as atrocidades que ordenasse contra as tropas que na vespera lhe tinham mandado pedir paz á custa da liberdade. Ordenou logo o formar o exercito consular em acies, ao qual passou a senha irrevogavel:

– Sem tréguas, nem quartel.

O exercito romano começou a mover-se e a avançar, e a pouco tempo de marcha Vetilio viu negrejar fronteiros e estendidos um esquadrão de Cavalleiros lusitanos, dispostos em ordem de batalha, e firmes sobre o terreno como se esperassem o assalto. O Consul olhou desdenhoso para o inimigo; não passariam de mil os Cavalleiros, que permaneciam impavidos, como a vedar-lhe o horisonte.

– Sem chefes! para que lhes serve a resistencia? A victoria é minha.

E em seguida Vetilio deu ordem para que seguissem sempre para a frente as quatro Legiões do exercito consular, abrindo caminho a Cavalleria, começando a batalha por uma carga contra a linha fronteira dos lusitanos.

Viriatho, montado em um cavallo branco, deixou approximar até bem perto a Cavalleria romana, que vinha á desfilada; e a um signal dado a linha cerrada dos seus mil companheiros dividiu-se em duas, debandando cada fragmento para seu lado, com uma rapidez de quem sabe trilhar por combros e ribanceiras. Notou Vetilio o facto com surpreza, vendo desapparecer escoteiramente os dois troços dos mil Cavalleiros, como se dispersam os bandos de estorninhos ou de pardaes, cada qual como melhor e mais ligeiramente podia. Não teve tempo para reconhecer se aquillo seria covardia ou estrategia, por que pela fuga repentina dos Cavalleiros descobriu diante de si uma extensa e larga planura arrelvada, de uma verdura avelludada, e além no extremo d'ella o exercito lusitano fazendo evoluções para dispôr-se em ordem de batalha. Pareceu a Vetilio, que os mil Cavalleiros lhe fechavam o horisonte, para não serem bem conhecidas as forças lusitanas, ou para lhes dar tempo a escolherem um local em que melhor se defendessem; e sem pensar em dar caça aos fugitivos, deixou a Cavalleria seguir no seu impeto, e apoz ella as cohortes das Legiões, que em carreira vertiginosa avançaram por sobre a verde planura, com o fito em esmagar por uma valente carga a infanteria lusa.

As tropas que seguiam mais atraz dos triarios, os rorarios, os accensi, os ferentarios, estacaram horrorisadas, quando viram pela planura verde e extensa enterrarem-se os Cavalleiros, desapparecendo debaixo d'elles os cavallos, outros sumindo-se completamente, e os manipulos dos hastatos chafurdarem nos lodos que esguichavam do tapete da relva formosissima! Caso nunca apontado nos annaes militares de Roma. Ninguem conhecia um tão extraordinario phenomeno de terreno. A planura fôra feita pelas neves do inverno, enchendo os medonhos barrocaes; a superficie lisa era revestida pelas relvas espontaneas do gervum, cujas raizes entrelaçando-se resistentemente formavam uma crosta que simulava um solo que tremia, e sobre a qual podia passar sem perigo de romper-se um viandante. Foi isso o que enganou Vetilio: por que alguns guerrilheiros lusitanos corriam sobre certos pontos da patameira. Viriatho, conhecedor de todos aquelles accidentes do territorio, calculára bem, e fôra melhor coadjuvado. Uma grande parte do exercito romano estava annullada ou perdida, atolada nas terras moles, e nos barrancos occultos debaixo da capa traiçoeira da verdura do gervum. A temerosa desgraça que ameaçara as tribus insurrectas, invertera-se agora tornando irremediavel a derrota das Legiões consulares.

O exercito lusitano, proseguindo no cumprimento do plano estrategico de Viriatho, dirigiu-se para Tribola. Pelo menos toda a Cavalleria ligeira dos romanos ficou atolada nas lamas, e com ella a infanteria composta de besteiros ibericos, germanos, gregos e asiaticos; e mesmo alguns Centurios e Tribunos do commando das Legiões. Uma tremenda desgraça, impossivel de prever, e por ser caso unico e excepcional, tanto mais inevitavel até para um homem experimentado e cauto como Vetilio.

Pela retaguarda do exercito consular reappareceram os mil Cavalleiros, soldurios de Viriatho, que tinham jurado acompanhal-o sempre em todos os transes, e que entendiam as suas ordens pelos silvos de uma buzina, como se usava na deambulação da Mésta. Viriatho reconheceu pela obesidade o Consul Caio Vetilio, e elle mesmo por sua mão o arrancou dos lamaçaes em que tinha preso o cavallo:

– Não me serves para escravo; és velho e pançudo. Ninguem dará por ti um sestercio.

E tocando-lhe com a foice roçadoira no hombro, continuou Viriatho:

– Não te matarei, sem que te defendas.

Vetilio fitou attonito aquelle homem magro e enxuto de carnes, e vendo que tudo para si estava acabado, atirou com a sua espada ao chão, renunciando como caricata a qualquer tentativa de defeza. Um dos soldurios de Viriatho atravessou o Consul com um dardo de lado a lado; mas em Roma referia-se que Vetilio morrera sim, mas ás mãos do proprio Viriatho.

O exercito consular, reconhecendo-se sem chefe, abandonou o campo e tratou de pôr-se a salvo. Em marchas forçadas, os seis mil legionarios que escaparam dirigiram-se para uma cidade do litoral chamada Carpesso, na região da Tartessida. O Questor pretorial tratou de organisar-lhe a defeza, fazendo em roda da cidade fóssos e trincheiras da terra revolvida, com receio do assalto do destemido cabecilha lusitano ás arcas do thesouro, ás bagagens, auxiliares e cavallos de remonta, que por irem no couce do exercito não se encravaram na patameira.




X


Depois d'este feito, em que o exercito lusitano se viu salvo pela astucia e coragem de Viriatho, a confiança no seu commando centuplicou-lhe as forças, seguro de que elle o conduzirá á victoria, e só elle saberá sustentar a independencia da Lusitania. Uma cousa veiu acordar o resurgimento do acabrunhado povo, o impeto que suscitava esta incomparavel victoria da astucia sobre a força bruta.

Quando Vetilio foi agarrado por Viriatho, os lictores que acompanhavam o Consul com os feixes de varas peculiares da dignidade curul, entregaram-as ao vencedor, como uma transferencia do poder supremo. O Cabecilha mandou desamarrar os feixes de varas, e distribuiu-as pelos seus soldurios, aos de maior confiança d'entre os mil Cavalleiros que se lhe devotaram:

– Cada um de vós, irá por todos os Castros, Citanias e Herminios, cravar no chão a vára do lictor, que eu entrego na fé celtiberica. Essa vara é o symbolo da guerra accesa e contínua; onde ella se hasteia chama os povos ás armas, e exige soccorro aos que combatem. Tal é o poder da antiga tradição da nossa raça. E se a lança fincada no chão podia mais do que um grito de guerra, a vara do lictor arrancada ao poder do Consul romano hade alevantar todas as nossas tribus unindo-as n'uma só vontade, para repellirem o invasor do seu territorio.

Cem soldurios partiram logo com as varas distribuidas dos feixes dos lictores, e fôram craval-as nos herminios e montes povoados, como um annuncio da inesperada victoria, e de que a guerra contra os Romanos seria agora incessante. Foi assim a noticia levada muito longe, e de longe vieram novos trôços e viveres, para reforçarem e abastecerem os guerreiros lusitanos.

Ditalcon, um dos tres companheiros que andam junto a Viriatho, lembrou ao Cabecilha um sacrificio de cavallos e prisioneiros ao deus Neton. Viriatho com a sensatez, que era uma das suas forças, volveu-lhe seccamente:

– Não ha tempo a perder; nem um inimigo como o romano se combate com festanças.

Ditalcon calou-se ao repellão do espirito pratico do chefe.




XI


Em Roma tratava-se de organisar á pressa uma nova expedição á Lusitania, para castigar os barbaros que assim annullavam o prestigio das suas armas. Já apontavam como general o destemido Caio Plancio. Recrutou-se á pressa Cavalleiros e infantes, dos mais válidos e experimentados das campanhas na Africa.

No emtanto reina um vago terror; em Carpesso está fechado o resto do exercito destroçado de Vetilio. Se o Questor pretorial terá sabido manter o commando, e salval-o da audacia de Viriatho! Nada se sabe em Roma.

É certo que o Questor pretorial procedeu com tino, exigindo dos povos alliados de Roma a contribuição de homens de armas, para reforçar o exercito romano e fazer frente ao cabecilha. Conhecia os odios instinctivos que havia entre os Iberos e os Lusitanos, e aproveitando essa antinomia, mandou emissarios ás cidades celtibericas dos Tittos e dos Bellos, para que, pelo dever da alliança, lhe enviassem um reforço de cinco mil homens, e sem perda de tempo. O caso urgia-o, porque Viriatho, obedecendo ao inveterado odio, que tornava irreconciliaveis as duas raças, em vez de pôr assedio a Carpesso, estendeu-se em correrias pela região da Carpetania, habitada pelos mais poderosos e ricos dos povos celtibericos.

Toda essa região fertilisada pelas nascentes do Tagus e do Anas estava já em poder do Caudilho lusitano; e quasi sem combate occupou a cidade de Toletum, a opulenta capital, em que assentou o seu quartel e governo. A cidade, reconhecendo o heroismo com que evitára o morticinio dos seus habitantes e a rapina da soldadesca, celebrou festas publicas, de jogos gymnicos, danças e cantares.

Prolongavam-se os festejos na cidade, quando vieram dizer a Viriatho, que não longe passavam tropas, vindas dos lados do Ebro, que se dirigiam para o sul da Betica. O general comprehendeu logo:

– Do lado do Ebro? É gente que vem das faldas do monte Idobeda. São celtiberos, alliados dos Romanos.

Deu ordem a Tantalo que fôsse fazer um reconhecimento; e no entretanto organisou as suas forças para ir-lhes ao encontro.

Eram effectivamente soldurios e ambactes das povoações celtibericas dos Tittos e dos Bellos; fôram reconhecidos pelos seus trajos, de safões ou anaxyrides, e apertados com cintos, que prendiam em volta do corpo os sagos, tingidos com a côr roxa com que Roma veiu a distinguir os seus escravos. Marchavam descuidados pisando as planuras da Carpetania, seguros de que transpunham um territorio amigo, do mesmo sangue celtiberico. No seu reconhecimento Tantalo não fôra visto, e por isso sabendo Viriatho que esses alliados dos Romanos pouco passariam de cinco mil combatentes, saíu-lhes ao encontro com uma presteza inaudita, surprehendendo-os em um matagal de zimbro e giestas, em que os cercou lançando o fogo em redor, e matando á espada todos os que intentavam romper o cêrco. Não escapou um só d'esses alliados de Roma; e como não houve quem levasse a Carpesso a desastrosa noticia da matança, o Questor mais angustiado se viu com a tardança dos soccorros, acreditando que os Tittos e os Bellos se teriam revoltado a favor de Viriatho.

O fogo da vastissima queimada destruira todos aquelles cadaveres; Viriatho, aproveitando a mobilisação dos seus guerrilheiros, e para se precaver contra a nova campanha que Roma estava organisando, dirigiu-se para o paiz dos Vettões, que confinavam ao sul dos povos Lusitanos, para confederal-os na defeza da sua autonomia contra o invasor estrangeiro. Comprehenderam o perigo, e celebraram o pacto de alliança defensiva. D'esse paiz montanhoso dirigiu-se para o territorio dos Vacceos, que o Durius atravessa. Já pela sua capital Pallancia, pelas cidades de Cauca, Septimanca e Rauda corria uma voz mysteriosa, em que o povo acreditava, que se levantaria um filho de Lusonia para recuperar a liberdade da terra invadida e roubada pelos Romanos. Contava-se que o maravilhoso heroe apparecia nas batalhas montado em um cavallo branco, e que a victoria era sempre sua. Viriatho convocou os homens bons das cidades, narrou-lhes a derrota do exercito do Consul Vetilio, e, como o sangue dos Lusitanos da infame traição de Galba fôra duramente vingado; contou-lhes como assentára o seu arraial em Toletum, e como anniquilára os cinco mil soldurios que os Tittos e os Bellos mandavam a Carpesso soccorrer o exercito romano, que alli se accolhera destroçado. Contava pois com a cooperação dos Vettões e dos Vacceos, para a grande empreza de repellir do sólo da Patria o sangrento e expoliador estrangeiro. Catão o antigo, e Tiberio Graccho bateram as tribus celtibericas, e Servio Galba mentiu á fé dos Lusitanos, porque na Peninsula não apparecera até então um general, que podesse dar cohesão a tantas forças dispersas.

Viriatho foi comprehendido, e jurada a alliança defensiva, marcando os Vettões e os Vacceos o prazo irrevogavel em que appresentariam as suas forças em Toletum.




XII


Lembrado da sua vida de pastor, quando na deambulação dos gados do sul para o norte, fugindo ás calmas, Viriatho dirigia a Mésta e sabia os recessos onde defendel-os, occorreu-lhe á memoria um campo entrincheirado em uma extensa planicie em que corre o rio Pavia, formado de terra recalcada, resistente e quasi petrificada. Quantas vezes n'esse asylo formado pelas gerações passadas, ahi estiveram seguros milhares de rebanhos e manadas, quando algum perigo se arreceiava! O Cabecilha quiz vêr outra vez esse vasto recinto de fortes muros de adobe, considerando que na lucta em que se achava empenhada a sorte da Lusitania, por ventura lhe seria necessario conhecer os seus recursos estrategicos.

Conhecedor de todas as verêdas e atalhos, facil lhe foi encurtar distancias, e em poucos dias de jornada, elle e os taes companheiros chegaram ao valle do Pavia, fechado na sua vastidão por pinheiraes cerrados de um verde escuro que contrastava com a claridade do horisonte. De longe ainda avistaram a vasta chã, contornada pelas muralhas de terra em fórma de um poligno octogonal irregular, e uma altura de setenta e cinco palmos nos seus muros e aterros. Eram outo muros, tendo para mais de cento e quarenta palmos de espessura, fechando um circuito de mais de trez a quatro mil passos; um largo fôsso o circumvallava exteriormente.

Ao avançar para a grande muralha d'aquella fortaleza de terra, Viriatho parecia cada vez mais pensativo; um plano estrategico lhe fulgurou na mente:

– Ah! que se eu conseguisse encurralar no Poço da Cava um general romano com os seus Legionarios todos. Eu lhe converteria o reducto defensivo em ratoeira!

E descendo das alturas da Esculca por um declive suave, entrou Viriatho na grandiosa Cava, que era como um enorme circo, dez vezes maior que o de Roma. Ahi, no angulo das duas faces do quadrante noroéste via-se um pequeno charco de agua nascente, que se tornava em uma lagoa com as aguas das invernias. Os gados e pastores alli bebiam e se banhavam, pelas fortes calmas; era uma vantagem inapreciavel, sempre aproveitada pelos homens da Mésta. Cabia uma cidade dentro d'essas muralhas.

Viriatho esteve considerando por longo tempo este fundo do valle, regado por duas ribeiras, abrigado por montes e collinas de um pendor brando.

– Quantas vezes do cimo da Esculca vigiei, olhando para longe, na defeza dos rebanhos. Como esta Cava, conheço uma outra da mesma configuração aonde me accolhi muitas vezes. Não está aqui ninguem que me tenha acompanhado na transhumação dos gados e recolhido na Cava da Beira, quem vem de Belmonte ao Fundão, por entre essas serras dos Herminios e da Gardunha! Nada fica a dever a esta; mas como refugio desesperado nada ha que eguale a Cava da Beira, um circumvallo inexpugnavel! Póde-se ahi dormir no chão, tendo as estrellas do céo por cobertor; lá o somno é mais agradavel que sobre as fôfas lãs da Salacia.

Contando com a presteza das armas romanas, Viriatho regressou a Toletum para passar revista ao exercito engrandecido pelos contingentes dos novos alliados, e marchar em seguida para a Carpetania; era para ahi que lhe convinha attrahir o general romano.




XIII


As varas consulares espalhadas por todas as tribus, gentes e federações da Hispania Ulterior, annunciando a victoria sobre Caio Vetilio, e a necessidade de sustentar a guerra contra os Romanos, produziram um effeito surprehendente em todos os espiritos, sobretudo nos Chefes das Behetrias, ou Cidades confederadas, que até alli se tinham conservado indifferentes nos seus castellos roqueiros, sem confiança no levantamento do povo, por falta de um commandante prestigioso. E comquanto esses chefes das varias Contrebias se entregavam á caça do javali ou do urso, em luctas de mutuas rivalidades, ou se banqueteavam opulentamente, os Pretores romanos iam estendendo a rêde das estradas militares, conquistando ou destruindo Cidades, e firmando o seu poder inabalavel. As varas dos lictores espetadas por todos os montes e pequenos herminios, acordaram o sentimento vivo da independencia nacional.

As tribus lusitanas tinham estabelecido as suas cidades, villares e casaes em volta de diversas montanhas, que eram como o centro da área de defeza, e o refugio nos assaltos da guerra inimiga. Essas montanhas eram cercadas de muralhas formadas por grandiosos blocos graniticos, e escavadas em fundos subterraneos, em que se depositavam cereaes e comestiveis, e com cisternas para guardar as aguas pluviaes, tendo além d'isso um escadorio interior e reservado que dava escapula a grande distancia, em geral á beira de um rio, para o caso de ser tomada a fortaleza. Alli é que residia o presidente ou chefe das tribus que viviam em volta do Castro; e pela contagem de todas as familias formavam uma população de mais de dez mil individuos. Era a esse conjuncto, que se dava o nome de Contrebia; os seus chefes ou regedores, eram designados como regulos e duces pelos romanos, que comparavam estes agrupamentos lusitanos com as phraetrias gregas. Como não havia ordem de successão n'este poder presidencial, resultavam conflictos e rixas, que se mantinham por odios de familias, e até de tribus que se hostilisavam, aproveitando do enfraquecimento d'estas dissidencias o invasor romano.

Agora parecia, que uma intelligencia da missão dos Castellãos se revelára subitamente com o conhecimento da derrota de Vetilio; e as tribus, suscitadas pela vista das varas dos lictores, reclamavam que sahissem da inacção; que prestassem o seu apoio ao extraordinario Cabecilha, o vingador da matança de Galba. Constava que Viriatho, depois da sua victoria se recolhera á cidade de Toletum, preparando-se para novo combate ao Pretor que em breve chegaria de Roma com aguerrido exercito; resolveram todos esses chefes dirigirem-se a Toletum, levando ao pescoço os seus colares de ouro, como a insignia do poder senhorial; os seus braceletes, e lanças de prata com que presidiam aos sacrificios, e ao tribunal em que arbitravam sentenças sobre a vida e bens dos seus clientes ou ambactes. Partiram de todos os principaes cantões da Lusitania esses chefes acompanhados dos seus soldurios, ou guarda-costas valentões, para conhecerem Viriatho e lhe fallarem deliberadamente sobre a defeza e independencia do Territorio patrio.

Quando chegaram a Toletum, ainda Viriatho estava ausente, em uma exploração do territorio em que uma grandiosa Cava se prestava a imprevistos planos estrategicos, a que em futuro proximo teria de recorrer. Mas esses optimates cantonaes fôram encontrar na cidade a que se accolhera o exercito um grupo de homens, a que davam o nome honorifico de Anciãos, EN, e cuja palavra era inspirada e eloquente, por isso nas velhas linguas britonicas se exprimia por D-eirim. O povo, pelo costume antigo, chamava Endre a cada um d'esses homens, a quem acatavam como depositarios de um maravilhoso poder espiritual. E de facto os Endres eram propriamente os Antigos das tribus, os que conservavam a norma e sentido moral ou historico dos costumes; não formavam um corpo sacerdotal, nem mantinham a estabilidade de qualquer dogma theologico, mas possuiam um saber do passado, que os tornava oraculos vivos, conselheiros em todos os momentos arriscados, e conciliadores nas luctas intestinas e separatistas das varias tribus. Os Endres eram queridos do povo; despidos de toda a hypocrisia de classe e de odios doutrinarios dos sacerdocios, mofavam com o seu bom senso dos ritos e dogmas dos Druidas das Gallias, que elles desprezavam como macaqueadores das normas cultuaes da religião oriental dos Mobeds de Mithra, que se propagava pela Europa. O caracter e ascendente moral dos Endres estabelecia-se espontaneamente, quando o povo reconhecia em um Ancião das tribus o bom conselho, o saber pratico da vida, e o conhecimento das Tradições do passado; era então considerado como unico e como inspirado. Apontavam-se na Lusitania numerosos Endres, venerandos pela sua edade e saber: uns conservavam de memoria as Runas, ou propriamente as tradições locaes e da raça, e tendo na mão o ramo da Azinheira coberto de l'andras, presidiam ao sorteio annual das terras, evitando prudencialmente todos os conflictos; outros sabiam as Sagas, ou narrativas históricas, as Aravengas, que recitavam nos banquetes dos regedores cantonaes e nas festas consagradas a perpetuar successos memoraveis das tribus; outros conheciam as Sentenças da moral gnomica, Singvan, os aphorismos ou dictados, que exercem justa auctoridade nas resoluções da vida, porque condensam em breves phrases, ás vezes em um só verso, a experiencia de seculos; outros interpretavam o sentido dos velhos Symbolos, resolviam os mais intrincados Enigmas, e penetravam a materia numerica dos Quadrados magicos. D'entre todos esses Endres





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