Книга - Todas As Cartas De Amor São Ridículas

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Todas As Cartas De Amor São Ridículas
Diego Maenza


Eloísa, uma senhora idosa que na sua juventude foi brutalmente abusada sexualmente por três homens mascarados, recorda, no último dia da sua vida, a história cruel que a marcou. Ela a conta a uma das enfermeiras do sanatório onde está a morrer, enquanto lhe permite ver um pequeno caderno espiral que contém todas as cartas que trocou com Abelardo na sua juventude, o único amor da sua vida.

Maenza reflete sobre os aspetos psicológicos, éticos e filosóficos em torno ao amor ocidental e tece um discurso sensível e inteligente no qual o tempo, os ritos amorosos e a presença erótica são sutilmente abordados. Inclui uma visão singular da escrita e uma Teoria dos afetos muito particular e simbólica que utiliza na sua análise a metafísica das cores, os zodíacos, as sensações provenientes dos sentidos, o imaginário das feras alquimistas, os elementos clássicos e os arcanos do Tarô.

Numa época em que as relações acontecem com o vertiginoso da modernidade e os amores líquidos abundam (como diz Bauman), ”Todas as cartas de amor são ridículas”, reivindica esse ritual laico de correspondências amorosas, cada vez mais em decadência, e faz uma apologia a essa lentidão que Kundera reclama para os romances. ”Todas as cartas de amor são ridículas” é construído como uma narrativa paródica de romances, mas é ao mesmo tempo uma dissertação moderna sobre o amor combinada com uma história de afeto e um fim trágico que levanta questões sobre temas tabu como o abuso, a objetificação da mulher e a violência contemporânea.







Todas as cartas de amor são ridículas



Diego Maenza

Traduzido por Simone Bezelin










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www.diegomaenza.com


© Diego Maenza, 2020

© Tektime, 2020

© Simone Bezelin tradução, 2020

Título original: Todas las cartas de amor son ridículas

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Todas as cartas de amor são ridículas



Diego Maenza

Traduzido por Simone Bezelin




PRÓLOGO (#u576732f6-8b0b-504a-a3e5-b27234049f08)

CAPÍTULO UM (#u584913ff-ee93-5816-9431-4bd5cbfc3d73)

CAPÍTULO DOIS (#u6c3baea4-f0a6-50df-aa69-4441213539ac)

CAPÍTULO TRÊS (#ue6b7ebf4-52c7-5f07-a2ad-c79d0c44dc73)

CAPÍTULO QUATRO (#u5d068947-ddc7-57c3-9dca-716ac5864195)

CAPÍTULO CINCO (#u0fdeecff-9f3a-550c-932f-a6f1cf67a796)

CAPÍTULO SEIS (#u8163b330-128a-5be9-9d6a-fcfc7616618c)

CAPÍTULO SETE (#u1bde9899-4d3b-5941-b70a-80c648605372)

CAPÍTULO OITO (#u400f5fc7-f590-5525-8433-c011b103a1f1)

CAPÍTULO NOVE (#u1c1c24bf-dec9-549b-b18e-5ada3449c9bd)

CAPÍTULO DEZ (#u7abb7117-341d-501e-a320-e8e069ac5208)

CAPÍTULO ONZE (#u29b9b043-a0cb-59bb-8ab8-c01db5f77630)

CAPÍTULO DOZE (#u644767b0-6555-5c0c-994c-f662e4a32e20)

CAPÍTULO TREZE (#u4dfae40e-420b-5148-a0c9-28a385e2c06f)

CAPÍTULO CATORZE (#u2049e747-b499-576a-bc33-a9df9d6a0b9f)

CAPÍTULO QUINZE (#u627c092e-d99b-5ba3-9751-a955aa28d84e)

CAPÍTULO DEZASSEIS (#u23a748ce-d396-5114-bc5c-cf3bc3b57534)

CAPÍTULO DEZASSETE (#ufb4c1a74-63c1-5a11-8b83-82406d846e7b)

CAPÍTULO DEZOITO (#u7e41574e-b372-540d-b60b-8bfe715b5f6b)

CAPÍTULO DEZANOVE (#u7cafad17-d1f6-5cce-9c7b-a70287c77bb7)

CAPÍTULO VINTE (#u17bbcfc7-f15e-5e35-bf0f-3ccf48e24352)

CAPÍTULO VINTE E UM (#u6f34498c-c328-5a5c-9236-8d1475e324c3)

EXALTAÇÃO (#u32473852-4e93-5af5-a0e7-7a0b1f3041c8)

EPÍLOGO (#u64b2f09e-6df8-5fb2-8d4e-8982e12cf960)






PRÓLOGO


Abelardo olha para o céu. Sorri, satisfeito, como não acontecia há dias, há semanas. As nuvens concentram-se num cinzento nebuloso, pressagiadoras. As suas pernas, nervosas e excitadas, levam-no pelo caminho, mas a sua mente está a imaginar o encontro iminente com Eloísa, o amor da sua vida Debaixo do seu braço direito leva o manuscrito, espremendo-o como se o protegesse, antecipadamente, da tempestade que se aproxima. Sente a brisa a roçar o seu rosto, a despentear a sua proeminente cabeleira, a acariciar os seus pómulos. Abelardo olha para o chão. Observa o lixo que se move com o movimento do vento. Os seus pés descem à estrada, despreocupados, assim como o seu instinto sonhador, como os seus olhos inquietos que se perdem novamente nas formas da celagem. É por isso que não repara no carro que atravessa rapidamente a avenida, é por isso que não escuta até ao último e inútil momento a buzina desesperada do condutor, igualmente descuidado. O metal do veículo impacta no corpo de Abelardo. A sua pele se rompe, a sua carne é lacerada, os seus ossos são destroçados, a sua estrutura golpeada é projetada a vários metros na mesma direção que a brisa. Alguns respingos do seu sangue são confundidos, misturados, integrados, com o capô avermelhado do carro. A cabeça do rapaz colide com o pavimento e causa o traumatismo. A chuva começar a cair, muito suavemente. O viandante mais despreocupado, cuja natureza humana inquisitiva própria do ser humano, nele, estará mais concentrada em verificar os detalhes circunstanciais do que em dirigir a sua atenção para o centro do incidente (talvez com a intenção de tirar proveito material da situação trágica), será a única pessoa que notará as quatro palavras que encabeçam o manuscrito que acabou indo parar perto de um esgoto, aquelas quatro palavras que já começam a ser diluídas por toda a página devido à insípida garoa, e que constituem o título da obra que Abelardo, o jovem ferido, anseia por publicar: Teoria dos afetos.






CAPÍTULO UM


Falar dela (eu sempre o disse e mantenho-o) é falar da criatura menos comum. O que poderia eu dizer dela que não pareça um cliché, uma frase fácil ou uma banalidade? O problema não é a falta de relatos para os contar, o complicado é o oposto, porque na realidade há tantos portentos que eu poderia comentar sobre a sua vida que o tema é que não encontro qual dará início a esta história. E eu tenho de ir com calma. Detalhar a sua vida será um processo interessante, mas pode ser um deslize imperdoável da minha parte errar por um momento. Talvez algum outro interlocutor mais eloquente seja a pessoa apropriada para captar a sua essência com precisão e objetividade; no entanto, a minha pretensão é muito mais ambiciosa: preciso de, neste processo, revelar o que ela significou para mim. Onde se pode encontrar a fonte mais cristalina da verdade, se não for nela? Para os seus lábios a mentira é proibida e isto confere-lhe o poder de fazer comigo o que ela desejar. A sua luta para ser mulher criou o animal mais utópico que traz uma idolatria desesperada perante a vida. Ela gosta de amar... Ela gosta de me amar. Entrar em detalhes do seu ser seria profaná-la. Por acaso os fiéis tentaram descrever os seus deuses? Mas eu tenho de correr o risco, mesmo que isso signifique não sair ileso da minha tentativa. O seu carácter puro e imponente, os seios altivos que desenham curvas no ar, a voz de melodia doce e contagiante, o olhar maroto a beliscar-me em carícias indeléveis, a sua inteligência prática e espírito generoso, o andar invisível das suas ancas a chocar-se com o vento com o seu jeito peculiar de caminhar, o seu senso de humor, o sorriso fácil a desenhar o seu perfil picaresco. Isso e mais é ela. O protótipo da mulher perfeita. Um ser fictício transformado em realidade. O seu nome é Eloísa.



O meu nome é Eloísa e já não sou jovem. Não após tudo o que aconteceu. Inclusive com o passar dos anos e apesar da jovialidade das minhas células, encontrei-me consumida por uma velhice espiritual que conservei até hoje e que nunca abandonou as minhas veias. Às vezes o corpo é o reflexo da alma e noutras ocasiões a sua tortura. Porque nascemos num tempo e num espaço em que a beleza é sinónimo de infelicidade, mesmo que insistam em dizer o contrário.

Eu era magra e bela, elegante e frágil como a gazela que mostra o seu charme sem perceber que hienas esfomeadas e lobos esganados escondem-se nas sombras.

Hoje, ao contar-te isto, jovem amiga, posso até saber o que cada um deles pensava na altura do incidente. O primeiro, o gordo, tinha reparado nas minhas pernas finas e morenas, que se mostraram apetitosas para a sua voracidade insaciável. O segundo, o mais robusto, notou os meus seios nascentes, pequenos botões que se sobressaiam da minha blusa e que instigavam o homem a mordê-los durante todo o trabalho. E o terceiro, o jovenzinho, teve o seu apetite despertado pela vistosa luminosidade das minhas nádegas, bem torneadas e firmes, resultado da aeróbica e das danças contemporâneas. Eram todos uns imundos.




CARTA UM



Desenho-te, como se delineasse sob a suave espessura da chuva um rosto imaginário e perfeito cujas covinhas precisas baloiçam paralelamente sobre as bochechas. Faço-te sorrir, fazendo com que as tuas dores adormeçam e as obrigações habituais que manejam o teu rosto como marionetistas do teu destino. Faço-te viver o tão sonhado desejo implantado na parte mais profunda do teu ser.

Começar uma carta de amor é tão difícil como começar uma história que não contenha algum elemento deficiente que possa revelar a plena satisfação do escritor face a sua obra. Complacência que, no meu entender, diga-se de passagem, nunca estará plena, tal como não o estará nesta carta de amor.

As vezes transcrever sentimentos torna-se uma dificuldade quase intransponível. Versátil é a tarefa do escultor que deve fazer brotar do duro mármore o nariz fino e os belos testículos do modelo. Heroica é a tarefa do pintor que, misturando os seus vernizes, na tela consegue a perfeição de uma mandíbula perfeita, marcando seios pequenos que contrastam com o esplendor de uma vulva maquilhada de pelos. Não menos árduo e complexo, para não dizer impossível, é o trabalho do poeta que, sobre a sua plataforma de lucidez, deve levar ao inatingível o que é palpável com conforto, e, num caso paradoxalmente análogo, deixar evidentes as graças que seriam inacessíveis sem a sua intervenção.

Encontro-me com esta parede neste momento, não como pintor, escultor ou poeta, porque a tanto as minhas faculdades não chegam. Atinjo esta parede não como artista, mas como ser humano. A minha alma (é assim que eu chamo todas as minhas escassas qualidades, não pense além disso) orgulha-se de pertencer ao lado que exalta a condição de ser humano acima de qualquer artifício do mundo, por mais sublime que seja. Antes de mais nada somos humanos e, como humano, expresso-me.

Às vezes pergunto-me para que me canso escrevendo. A resposta não pode ser simples. Para denunciar os males que concernem à sociedade? Não, definitivamente. Para descartar problemas pessoais, transformando a literatura na grande masturbação psicológica? Tampouco. Para atingir a fama e a riqueza, ou para rejuvenescer a forma como usamos a língua (não o órgão, mas o sistema de comunicação verbal)? Menos ainda. E deixe-me explicar: O meu modelo de atitude a seguir é o Escritor Sombra. Só penso em escrever e o resto não importa.

Talvez as respostas sejam menos pragmáticas do que geralmente se acredita. Trato de responder: escrevo para perceber da melhor maneira o que me rodeia. Talvez a resposta seja a mesma que dou a mim mesmo cada vez que me inquiro porquê frequento a leitura: para me tornar mais humano.

Torno-me mais humano ao escrever-te cartas de amor? O amor cresce pelo facto de que escreva uma carta? O amor pode crescer como crescem os bebés, os sapos ou os rios? Ou será que quando te escrevo uma carta, pouco a pouco, estou a desprender (como se fosse um fractal infinito) as peças que compõem o amor inteiro e desta forma, pouco a pouco, vais ficando sem o meu amor? O amor diminui como um homem idoso ou como um carne assada ou um fruto podre? Talvez a única resposta válida seja esta: Escrever suscita-me dúvidas, indecisões, da mesma maneira que se tento descrever o cheiro marcante dos seus cabelos torna-se tão confuso para mim, opaco face ao que a minha cabeça me profere. Ou da mesma forma que o teu rosto se torna neste instante a palavra que me escapa, ou como o elogio aos teus olhos que me escorrega pela garganta abaixo com a perplexidade de alguém que está extasiado e já não tem prazer para histórias ou poemas.

Não, tampouco é isso. Não sei. Não tenho a certeza.



Teu, Abelardo.


AFETO



O afeto nasce do pâncreas e é diluído pela nossa corrente sanguínea até voltar ao hipotálamo. É de cor laranja, que simboliza a felicidade e a procura de bem-estar. Manifesta-se em infrassom e com um aroma floral. Na simbologia universal, é representado pela Lua. Nas cartas de Tarô identifico-a com A Força, que oferece controlo e segurança. No zodíaco ocidental personifico-a com o signo Virgo, ligado à espiritualidade, à ordem e à inteligência. No zodíaco chinês encontro-o em O Coelho, repleto de cautela, ternura e harmonia. O afeto é líquido e vai em direção ao Norte montado num Unicórnio, pois é virginal.






CAPÍTULO DOIS


Como acontece habitualmente no processo de acoplamento da raça humana, as nossas vidas foram ligadas por uma arbitrariedade do destino. Ela, aos quinze anos e no esplendor das menstruações; eu, aos catorze e nos delírios da masturbação. Como pretexto foi suficiente um encontro casual, uma feira de aldeia e cinco das amigas mais escandalosas para iniciar a nossa relação.

Ela era a rapariga mais bonita do liceu e eu era um aspirante a galã que começou a abandonar os estudos por causa da nova filosofia do amor.

Para mim, o início da nossa relação foi suave. Para ela não tanto. A motivação para a sua abordagem foi motivada pelo desejo de ter um affair não comigo, mas com alguém próximo de mim. O irónico (e porque não dizer romântico) é que no decorrer do processo ela acabou apaixonando-se por mim. Conquistei-a ou conquistamo-nos um ao outro.

Talvez pretenda explicar os factos recorrendo a complicadas abstrações, o que um parvo atrever-se-ia a especificar nalgumas palavras. Mas friso que o meu objetivo tem mais ambição.

A sua alegria transbordante perante a minha constante batalha com a melancolia; o seu carisma e a sua inteligência refletidos nos contornos dos seus olhos pensativos e vívidos cada vez que me aproximava dela com uma ideia ou cada ocasião em que ela procurava as evasivas nos confins da imaginação para desculpar os nossos encontros furtivos dos seus pais, perante as minhas pretensões filosóficas; a sua mania de dançar face a minha mania de escrever. Tudo o tornava injustificável, porém caro leitor, cara leitora, vocês compreenderão que, para nós, foi a relação mais intensa que as pessoas no mundo mantiveram e espero poder passar-lhes essa impressão de forma adequada.



A noite caiu de surpresa no final daquele verão. Eu tinha saído da aula de dança que um jovem e belo instrutor europeu tinha começado a ensinar na aldeia e que se realizava em horário vespertino nas instalações do liceu onde eu estudava. Lembro-me daquele dia em que tínhamos ensaiado uma dança turca que, após o acontecimento, nunca mais dançaria. A mãe de uma das minhas colegas de turma ofereceu-me boleia para casa no seu carro. Não aceitei. Queria caminhar e esclarecer certas ideias da juventude.

Tomei a viela mais longa que contorna as árvores de teca e envolve a estrada em penumbras. As estrelas apareciam sem timidez e uma grande lua fazia brilhar as pedras circundantes como mágicos pirilampos estáticos .

O destino quis que da penumbra surgissem os três violadores. O homem encorpado abordou-me com a máscara de um arcanjo. Ele não proferiu palavras e não as preferiria durante aquela noite angustiante, mas ficou no meio do caminho e abriu os seus braços em horizontal como sinal para que eu parasse e então percebi que ele era o líder do grupo. As outras duas silhuetas surgiram. Um mancebo magro e não tão alto, com corpo de adolescente usava uma máscara de caveira. Ele disse Não podes passar, e o som da sua voz confirmou a sua juventude. O indivíduo alto e robusto usava uma máscara de um bode. A sua voz era grossa como o seu estômago e também vociferou ao indicar-me que não gritasse.

O meu corpo sentiu a palidez própria do pavor. Os meus pensamentos ficaram paralisados, igualmente o meu corpo. Arrepiei-me quando senti o contato forçado daquelas três bestas. Foi como se aquele bode gordo fosse um bruxo e a sua ameaça fosse um feitiço, porque por muito que eu tentasse, não conseguia gritar.


CARTA DOIS



Na manhã em que acordei com a inesperada revelação que indicava que estava verdadeiramente apaixonada por ti, vi-me surpreendida. Se calhar não tenho a imagem precisa e não consigo descrever a sensação exata, mas na minha memória ressurge quase nitidamente, como um déjà vu à espera de ser capturado. Naquela altura era apenas uma amiga para ti, uma companheira circunstancial a que recorrerias nos teus momentos de monotonia como a distração mais apropriada para qualquer adolescente.

A outra manhã reveladora, quando sofri a tua epifania, foi quando me deste aquele beijo inocente. Quando cheguei a casa prostrei-me na rede e enquanto o vento curto do baloiço roçava-me o rosto feliz, a lembrança do teu toque provocava-me sensações quase epiléticas, em sacudidelas interiores como insetos a agitarem o meu peito ou como vermes doces a remexerem-se nas minhas entranhas.

As manhãs... Talvez sejam premonitórias, ou algo parecido com sinais. As manhãs no liceu não eram agradáveis se não te encontrasse no recreio, mesmo que fosse apenas para que da tua boca saísse um ou outro murmúrio, porque eu devia (como to disse alguma vez) tirar pouco a pouco as palavras de ti, uma metáfora realmente apropriada para definir a tua realidade quando eras um rapaz pálido e calado. O importante era perceber as nossas figuras sentadas na berma da calçada, com as minhas pernas juntas e as minhas mãos no meu colo, e captar os meus arrepios que interagiam com o ritmo dos teus movimentos, como dois estranhos magnetos que querendo atrair um ao outro se roçavam num baloiço de tensão. Naqueles dias comecei a apaixonar-me por ti, pelas tuas longas pausas de silêncio, pelo teu olhar projetado no horizonte em busca de ideias e que me incitaram a explorar o enigma da tua prudência.

Foi uma manhã que me esperaste sob aquela chuva torrencial. Insististe em ir ao encontro, não percebendo que o mais prático era evitar o dilúvio e adiá-lo até à saída do arco-íris. Eram as manhãs que nos reuniam no parque da aldeia, no canto que batizámos com um nome extravagante e que usaríamos como secreto em ocasiões posteriores, sempre tendo presente que cada casal o tinha alcunhado com um nome que se adequava à sua relação. Foi uma manhã em que roçaste os meus seios com o despudor das tuas hormonas. Foi uma manhã (quero sonhar assim) quando acariciaste as minhas nádegas sobre o tecido de uma calça de ganga demasiado odiosa.

Foi uma manhã quando fizemos amor pela primeira vez, apesar de que o nosso amor já estava feito muito antes disso. Talvez porque naquela altura só contávamos com esses espaços nas primeiras horas do dia, quando o amanhecer estava a despontar e acordávamos ansiosos de que chegasse o momento do encontro. E depois viriam as tardes, que pode que não fossem tão premonitórias, mas muito especiais, de facto. Quando se aproximava o meio-dia e eu alegremente preparava-me para os encontros na cidade.

O nosso amor ia amadurecendo, e com ele nós, estas vidas tristes e arrependidas por causa da distância, mas felizes porque apesar de tudo nos sentíamos próximos.

Lembro-me do tempo em que não tínhamos telefone e trocávamos mensagens graças a um caderno de apontamentos e a um cúmplice momentâneo. E depois de toda esta feliz recordação, lembro-me das nossas situações contemporâneas, estas que estamos a construir e a destruir. Um russo fala que até os grandes reformadores da sociedade foram criminosos, porque ao promulgar novas leis, aboliram as antigas que eram mantidas como sagradas. É por isso que digo que para continuar a construir temos de demolir algumas coisas, exorcizar as nossas falhas, praticar uma purificação na nossa relação de modo a não a deixar morrer.

Talvez eu não consiga perceber-te totalmente, é muito provável. Mas continuo aqui, a tentar dizer-te que quero interpretar os códigos das tuas angústias e que tomemos um caminho de mãos dadas. Talvez não uma solução radical e imediata, mas uma solução que sirva para ajustar o equilíbrio desta relação que está a cambalear como um castelo de cartas no assento de uma locomotiva a todo o vapor.

Esta carta é um símbolo do meu compromisso. Sinto-me desconcertada porque sei que exigi muito de ti e na tua circunstância, não foste capaz de satisfazer os meus caprichos, não porque não o desejavas, mas sim porque a natureza da tua tristeza absorveu-te e não pude advertir-te senão até agora, quando amanhece o dia após esta madrugada de angústia.

Talvez as manhãs sim sejam premonitórias. Porque justamente agora chega-me a imagem dum futuro hipotético, com o teu corpo cálido descansando junto ao meu num abraço matinal, num despertar cheio de sonho, quando o orvalho tenha destilado o suor sobre as ervas próximas e o primeiro crepúsculo do dia evidencie o calor que não será do sol, mas sim do nosso despertar.



Tua hoje, amanhã e sempre.




CAPÍTULO TRÊS


A nossa história começou no liceu. Uma rapariga exaltada gritava a sua reclamação contra o reitor com uma voz trovejante. Agraciada era Eloísa. Magra, com a sua cintura de porcelana e rosto angelical, o seu coque atrás e o seu carisma a transbordar de energia juvenil. À medida que nos fomos conhecendo, pouco a pouco, uma proximidade disfarçada de amizade aproximou-nos. O momento mais importante dos recessos era poder vê-la e cumprimentá-la com o olhar. As minha manhãs eram dedicas a ela. Gradualmente as minhas ilusões titubeavam; às vezes, exaltado, não cabia em mim, porque me escolhia para falar do seu recreio; outras vezes triste, porque gastava o seu tempo na azáfama do seu grupo de amigos.

Uma manhã, depois de sair da escola e de ter participado nalguns jogos de uma feira que tinha sido montada na aldeia, fui por uma viela, que não era tão habitual nos meus trajetos, com a intenção de me ir para casa. Ouvi alguns gritos que vinham de atrás. Ao longe, uma malta de raparigas com uniformes desarrumados agitava as mãos para me aproximasse delas. Um parque, enegrecido de gravilha, ofereceu-nos o seu piso como o único lugar para sentar. Os comentários cheios de frivolidade (dos quais eu era alheio) daquelas ninfetas impediam-me de participar da conversa. Sobressaí pelo meu silêncio e voltaram-me o olhar. Diz-lhe, disse-me uma rapariga com sardas olhando para Eloísa. O nervoso tomou-me conta. Lembrei-me que há uma semana tinha acordado com a clarividência de estar apaixonado. Tentei refazer um discurso amoroso que tinha revisto alguns dias antes, mas as palavras voaram para uma dimensão impossível de atravessar. Ri com resguardo. Foi aí que escutei a expressão: Digam-se. A amiga mais chegada da Eloísa foi quem expressou isto, o que me estimulou a falar. Olhei-a. Ela estava sentada com as pernas cruzadas na posição de lótus.

Não tinha passado nem um minuto para que um curto beijo (curto no corpo, mas substancial no interior) se fizesse presente sob o amparo dos olhares expectantes das raparigas. O grito juvenil das companheiras que tinham ficado suspensas diante da minha declaração de amor ressoou em ritmo, misteriosamente unânime, como se preparado com antecedência, revelando a consumação do ritual ao tocar a sua boca com a minha e finalmente extinguindo a virgindade labial da sua querida amiga.



Alguma vez fui virgem. Sempre pensei que o primeiro homem a quem eu daria a minha pureza seria ele. Esse sentimento de coceguinhas surgia-me cada vez que acabava de ler as suas cartas de amor, inteligentes, apaixonadas e ridículas, como todas as cartas de amor devem ser. Afinal, tínhamos um relacionamento de alguns anos.

Mas afastei-me do assunto, minha cara amiga, e uma vez que insistes em conhecer a minha história, vou continuar a tentar concluir o meu relato.

Se há uma coisa que não foi apagada da minha memória, mais do que o registo visual, é o cheiro dos seus corpos. Se alguma vez me pedissem para identificar algum deles pela natureza da sua construção, tenho a certeza de que erraria mais na minha exploração do que se o fizesse pelos seus cheiros.

O homem silencioso, a quem preferi chamar mudo ao longo dos anos, tinha um cheiro particular a óleo de máquina, como se o seu trabalho fosse lubrificar as engrenagens de mecanismos complicados durante todo o dia. O bojudo cheirava a cebola rança, um fedor que emanava das suas axilas que se intensificava à medida que as gotas de suor da sua testa caíam sobre o meu rosto. O jovem cheirava a canela, mas por vezes deixava na atmosfera uma fragrância nauseante de frutos do mar macerados.

As investidas do verme gordo eram as mais atrozes. Ter o peso da sua corpulência áspera e repulsiva foi o menor de todos em comparação com senti-lo dentro de mim.


CARTA TRÊS



Sofre mais quem espera pela carícia do seu amor, ou a tristeza de não ter ninguém por quem esperar?

A Poetisa



Um francês afirmou que as cartas de amor são escritas começando sem saber o que vai ser dito e terminam sem saber o que foi dito.

Sempre que te escrevo, tento fazê-lo com uma ideia fixa que desenvolvo gradualmente. Isto não é algo que eu tenha inventado, mas extrapolei-o a partir de uma teoria do conto, segundo a qual as três primeiras linhas são quase tão importantes como as três últimas. Entendi esta fórmula como a definição de escrita, em qualquer área.

Mas vamos ao que interessa. Uma filósofa africana mergulhou no tema do amor, e na sua obra intitulada "Profundidade das Artes Amorosas" ilustra-nos mostrando o lado passivo do desejo que atinge o seu clímax quando satisfeito e a sua natureza diligente como fonte de atividade. Condensou-a numa frase poderosa: O amor é a insatisfação infinita. Não há verdade mais incontestável.

Esta é a tese que desenvolve ao longo do seu trabalho, às vezes um pouco hiperbólica, é verdade, mas nunca sem encanto. A parte interessante é aquela frase. O desejo, de acordo com a pensadora, culmina quando é satisfeito. Queremos algo e quando o conseguimos, é o fim da história.

Mas quando o desejo está ligado ao amor, é diferente: Há a possibilidade de que o desejo possa levar ao amor; o amado, desejamos irrefutavelmente, acrescenta a filósofa.

Hoje quero que sintas que através das minhas palavras posso acariciar-te, e não com os toques prosaicos que as delícias do pudor nos oferecem, mas sim com estas carícias indeléveis.

Assim como os bardos imortalizam as suas amadas, este humilde praticante desejaria poder glorificar o teu ser com canções que saciem a tua sede de juventude e com poemas que te embalem às tardes. Declarar-te o quanto estou apaixonado por ti, deusa virginal, onipotente, dona do meu amor, do meu amor a escrava, como as escravas bem-aventuradas do Antigo Testamento, com uma candura de cosmos como Prosérpina, rainha infernal, ou alguma deusa pagã. És musa da poesia. Tu: mil mulheres em uma. Mil deusas em uma. A Minha Pandora, minha Eva, m Maria Madalena tão purificada entre os beijos de Jesus.

Tu, que tão bem sabes como dominar o meu espírito, és, a minha dona. E estás presente em cada momento. Porque a tua lembrança afável cura-me da melancolia: das tuas palavras sussurradas ao vento e do teu rosto iluminando o espaço que poderia estar vazio, a não ser porque adoras este louco que vive apenas para ti.

O teu ser é para mim mais hipnótico do que um conto fantástico, tão envolto em mistérios como uma história de suspense, mas ao mesmo tempo tão real e profundo como um romance de realismo puro. E não se trata de uma contradição, porque às vezes és tão precisa e contraditória para mim.

Com uma visão que vai para além do quotidiano, tento chegar a ti e entrar nas profundezas do teu amor. E posso ver através dos teus olhos (que são recetáculos infinitos de clarividência, como seria uma bola de cristal para uma velha mulher versada em cristalomancia, mas tão delicados e puros como o oráculo de Delfos), posso ver, dizia, através dos teus olhos, essa profundidade de mulher madura, essa força indomável que carregas nas profundezas e faz-me pensar na força de um deus. Às vezes, pareces-me muito divina para ser de descendência terrena. As tuas predecessoras só podem ser as mesmas que as de Ariadne, casta divina de deusas.

E, entretanto, tenho apenas um minotauro escuro que gira e gira no labirinto circular do meu cérebro, à espera de que um Teseu (amor divino que me professas) rompa com o seu fio esta brutal solidão.

É por isso que me pergunto, juntamente com a poetisa: sofre mais quem espera pela carícia do seu amor, ou a tristeza de não ter ninguém por quem esperar? Embora a resposta seja óbvia, a dor, quando é produto da espera pelo amor, não é amarga, e aparece a minha promessa de que mesmo que te tenha por perto, nunca deixarei de te escrever cartas de amor. Porque me amas e porque eu te amo, porque te espero, e porque tu também me esperas, mas sobretudo porque o nosso amor será sempre uma insatisfação infinita.



Teu, onde for.


GRATIDÃO



A gratidão deriva das mãos, e parte dela dos nossos braços para o nervo espinhal. É de cor violeta, o que personifica a moderação e o pensamento. É oferecido com um sabor doce e com um perfume amadeirado. A sua figura simbólica é a Madeira e será sempre esculpida neste material. Nas cartas de Tarô moldo-a com O Enforcado, que pende de um ramo de uma árvore e exemplifica a entrega e o sacrifício. No zodíaco ocidental, personifico-a com o signo Capricórnio, matriz de toda a generosidade. No zodíaco chinês revelo-a em O Javali, que nunca guarda ressentimento e tem espírito altruísta. A gratidão é Condensada e vai para o oeste atrás de um Lobo que se alimenta do velho e elogia o novo.






CAPÍTULO QUATRO


Passaram nove dias para que a minha humanidade entrasse pelo límpido portão da sua casa na sua festa de 15 anos. Cheguei cedo, com o meu presente cheio de inocência (na altura a minha mãe trabalhava como costureira e o presente que lhe trouxe era um corte de um tecido barato) e com um sorriso que camuflava o nervosismo. Meia hora depois me encontrava sentado na sala principal a planear uma maneira de não sair para dançar. No fundo, na antessala, as vozes inflamadas de oradores especializados intensificavam-se na mesma proporção em que o vigor da música fazia o mesmo. Certamente estavam os seus pais, familiares e pessoas próximas, pessoas dos cenáculos sabatinos, todos a desfrutar dos prazeres da convivência do momento (ou pelo menos era assim que eu imaginava, uma vez que não estava suficientemente curioso para observar quem eram e aventuro-me a dizer que mesmo que o tivesse feito, provavelmente não teria reconhecido nenhum deles). Rodeavam-me, na sua maioria, os seus colegas do liceu. A minha incapacidade de interagir surgia a cada momento e eu não sabia como responder ao momento: o animal de caverna enfrentava pela primeira vez o mundo selvagem das feras sociais.

Chegou o momento da dança. As minhas pernas cambaleavam e imploravam pelo alívio do descanso e não porque estavam cansadas, mas porque se envergonhavam da sua rudeza. Ela era a profissional e segurava as minhas mãos como se me quisesse ensinar, num instante, as danças que talvez eu não aprenda numa vida inteira. Não me lembro se dancei com mais ninguém. É muito provável que não. Retirei-me com a antecipação imposta pelo relógio e quando saí da festa deu-me um beijo de despedida na bochecha. A sobremesa, não alcançada pela minha pressa, apareceu umas horas mais tarde no meu alpendre. Os seus delicados braços estendendo-me o pratinho descartável foram mais um passo no sentido da paixão.



Embora o gordo fosse o mais robusto, o mudo era o mais forte. Apertaram-me por dentro e por fora enquanto silenciavam o meu desespero, cobrindo a minha boca que gemia de desconsolo e desamparo, e as minhas lágrimas caíam no chão.

O jovem era o mais impetuoso e ao contrário do que se poderia pensar, não mostrou qualquer hesitação e atacou-me com a mesma predisposição que os mais velhos.

Certamente que alguma alma assustada viu a atrocidade. Tenho a certeza disso, porque à distância notei uma luz, algum veículo que focou o ataque e depois fugiu. Pode pensar, cara amiga, que foi uma alucinação própria do meu desespero, como aqueles refúgios de água imaginados pelos peregrinos do deserto na aridez do seu exílio. Poderia ter sido uma visão ou uma memória inventada pela minha memória envelhecida, mas tenho a certeza que não foi. Foi real, tão real com a besta de três cabeças que possuía o meu corpo naquela noite.




CARTA QUATRO



Os meios de comunicação social de hoje aproximam cada vez mais as pessoas. As telecomunicações de imagem e áudio podem ser obtidas somente tocando um botão. A Rede é um meio que cortou as distâncias. Se um pintor antigo tivesse observado tal prodígio, certamente teria pensado que se tratava de alguma alquimia poderosa. Se tivesse sido alguma santa da Idade Média que o tivesse contemplado, teria, sem dúvida, acreditado que se tratava de um artifício do maligno.

A tecnologia depende do tempo, e avança com ele. Desde que o primeiro hominídeo gravou a primeira pintura rupestre nalguma caverna esquecida, até este preciso momento, nalgum lugar do mundo, a menos experiente das impúberes tecla alguma mensagem de texto no seu telefone, a intenção de nos comunicar não mudou. Somente os meios mudaram.

Quando o humano foi capaz de formar uma linguagem articulada (tanto oral como escrita), o seu desejo de expressão foi reforçado. Um dos meios mais utilizados de todos os tempos foi a carta.

As cartas de escritoras, políticos e oradores romanos ainda são estudadas pelo seu valor literário, e as das antigas gregas pelo seu valor filosófico.

As Sagradas Escrituras estão cheias destas manifestações. Os Santos basearam a sua teologia atual em epístolas. E o grande livro contém as epístolas aos Colossenses, aos Filipenses, aos Gálatas, aos Hebreus, aos Romanos, assim como as dirigidas aos Coríntios e aos Tessalonicenses, onde os apóstolos continuaram a propagar as suas ideias.

Sabe-se que Anastasia Dross, uma filósofa latino-americana de renome, escreveu, para além de romances, ensaios, poemas e peças de teatro, mais de vinte mil cartas. Em média, Dross deve ter escrito uma carta por dia.

Noutro extremo está Alessandra Zimbardo, uma filósofa italiana que morreu no mesmo ano que Dross, para quem escrever uma carta era um processo penoso e um verdadeiro tormento. Zimbardo confessou nas suas memórias: não posso redigir nenhuma carta, de importância variável, que não me exija horas de frustração.

As cartas foram tomadas como um poderoso recurso literário.

Um escritor francês, autor do seu famoso romance Cartas Persas, consegue, através de epístolas emitidas por duas personagens, fazer uma forte crítica à sociedade do seu tempo. Neste trabalho, não foram salvas nem a respeitada sociedade burguesa, nem as instituições políticas e religiosas e nem mesmo a literatura do seu tempo.

Um dos casos que mais me impressionou há alguns anos foi a obra de uma autora islandesa intitulada As tribulações da jovem estudante Dögg, que trata sobre uma jovem apaixonada que dirige os escritos dos seus infortúnios a uma amiga quando não pode declarar-se a um rapaz, desespero que acaba em suicídio. Este romance parece ter tido uma grande influência sobre a juventude, raparigas exaltadas que quando terminaram de ler a obra desataram uma vaga de suicídios. Isto levou-me a lê-la. Uma enciclopédia narra-nos: As tribulações da jovem estudante Dögg foi imitada pelas jovens mulheres não só no vestiário, mas também no seu trágico fim: diz-se que causou mais suicídios do que as palavras contidas nas suas páginas.

Quando a li, acabou a magia. Compreendi que era um romance do seu tempo e que em circunstância alguma poderia influenciar os dias de hoje.

As cartas cumpriram um propósito: o de expressar as situações, ideias, sentimentos, pensamentos, de quem as escreve. A tecnologia dá-nos agora cartas eletrónicas, que vêm fazer esse trabalho de uma forma muito mais acelerada. As mensagens de texto foram outro meio de encurtar a distância. O predecessor inquestionável da mensagem de texto do telemóvel é o telégrafo.

Apesar do lado positivo, também gostaria de levantar alguma objeção. Embora estas tecnologias polidas encurtem espaço e tempo, sofrem do defeito do efémero, enquanto uma verdadeira carta imortaliza o instante.

Esta é uma boa razão para considerar o valor de uma carta (no sentido tradicional) como insubstituível numa manifestação e exaltação do vínculo que formamos em torno do nosso amor. É por isso que eu gosto nos escrevamos. Porque acredito que as cartas (aquelas que têm sido escritas desde o tempo das antigas filósofas gregas) contêm um grau de permanência e significado muito maior do que qualquer outro meio.

Talvez ainda haja pessoas que sentem falta, em imaginações românticas, daquelas esperas de respostas que demoravam dias ou semanas a chegar. Que imaginem como seria escrever uma carta expressando tudo o que sente ou se conhece, como fizeram as nossas boas filósofas. Embora seja provável que nos tempos atuais haja pessoas totalmente excecionais que pensam que o uso exclusivo das cartas tradicionais é a melhor forma de comunicação. Por outro lado, cada época tem as suas opções e as pessoas adaptam-se aos seus recursos.

Há alguns séculos começaram a ser publicadas as primeiras crónicas, que um século mais tarde foram chamadas notícias (e que hoje podem ser lidas todos os dias, precisamente nos jornais), e as pessoas tinham outro meio de as comunicar. O século XIX teve o telégrafo para unir os povos e os continentes. O século XX tem o rádio, o telefone, a televisão. Agora o século XXI tem recursos poderosos como a Web e meios de comunicação "wireless", como a tecnologia celular móvel. Os recursos que teriam sido improváveis para os nossos antepassados são, no entanto, muito possíveis e quotidianos para nós. E aqui surge o mais surpreendente e interessante. Recursos que para as nossas gerações futuras serão viáveis e comuns, para nós hoje não são mais do que ficção científica. O mais provável é que os nossos filhos e netos desfrutem da ilusão próxima de um ente querido através de hologramas. Mas estou convencida de que a ciência não vai ficar por aí, vai conceber meios que atualmente para a nossa pouca capacidade imaginativa são inconcebíveis. Meios tão impressionante que hoje os classificaríamos como belas imaginações, ou em casos mais supersticiosos os rotularíamos como maldições ou milagres. Tal como alguma santa da Idade Média achasse uma maravilha celestial ser capaz de escrever uma mensagem onde ela estivesse, e que em poucos segundos esta aparecesse escrita noutro lugar muito distante. Ou tal como um pintor antigo considerasse um prodígio poder observar uma imagem em tempo real num simples ecrã.

Em qualquer caso, és tu, quem finalmente decidirá o valor que deve ter cada carta que escrevo, porque para ti são destinadas, e para ti serão enquanto eu puder continuar a escrever.



Tua, com cartas ou sem cartas (embora eu prefira com elas).






CAPÍTULO CINCO


Os dias começaram a passar com um desejo crescente de nos sentirmos juntos. O hábito de estarmos perto tornou-se tão essencial como a necessidade de ir à casa de banho nos intervalos. E lá nos encontrávamos, falando trivialidades, sentados nos bancos mais afastados. Eram momentos sublimes, dosados por uma sensação que brincava nos nossos estômagos. O seu sorriso cativava-me e enlouquecia-me aquela gargalhada cheia de vida e entusiasmo que chamava a atenção até da pessoa mais distraída.

A coisa mais representativa nesta fase foi a minha timidez. Ela era extrovertida e faladora, e eu era tímido com palavras atravessadas na minha garganta. Ainda me impressiona o facto de que pudéssemos relacionar-nos. Eu deitava fora sentenças que eram entrecortadas e pouco inteligentes, e ela alimentava-as com uma conversa fluida e exuberante.

Com o tempo, uma velha amendoeira tornou-se uma serena cúmplice. Envolvia-nos com a sua timidez e era uma boa companheira entonando o violino do silêncio. Ela guardou em segredo os nossos beijos clandestinos que raramente nos dávamos e que eram proibidos na instituição. À saída, apegava-me à ideia de caminhar junto dela e comecei a esperá-la todos os meios-dias. Com o tempo, este ritual tornou-se uma rotina e todos os dias realizávamos uma conversa de sete quarteirões.



O liceu da minha juventude era privado e ficava a um quilómetro da aldeia principal. Para chegar ao setor, era necessário atravessar uma ponte curta de quase cinco metros que ficava suspensa sobre um dos caudais do córrego. Depois havia duas bifurcações. A primeira era o caminho mais curto que atravessava uma pequena aldeia de apenas uma centena de construções. A segunda era asfaltada e apesar de o percurso ser mais extenso na largura do seu caminho, porque contornava a aldeia em forma de letra u, atravessando a zona de bosques de teca que pertenciam à família do reitor, era o que preferia percorrer nos seus muitos momentos de solidão, sem medo do isolamento na sua caminhada, devido à falta de luminária ou casas assentadas nas suas margens. Isto, em parte, explica porque é que os meus gemidos intensos nunca tiveram uma resposta de auxílio.

Naquela noite, deitada e com o olhar perdido para o céu, pude notar, nos breves momentos em que abri os meus olhos durante diferentes ocasiões, como o vento do início do inverno movia as folhas das tecas. Alguma delas devem ter tocado o meu rosto enquanto eu observava as nuvens a juntarem-se e cobrindo a luminosidade da lua. A penumbra ficou mais intensa.





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Eloísa, uma senhora idosa que na sua juventude foi brutalmente abusada sexualmente por três homens mascarados, recorda, no último dia da sua vida, a história cruel que a marcou. Ela a conta a uma das enfermeiras do sanatório onde está a morrer, enquanto lhe permite ver um pequeno caderno espiral que contém todas as cartas que trocou com Abelardo na sua juventude, o único amor da sua vida.

Maenza reflete sobre os aspetos psicológicos, éticos e filosóficos em torno ao amor ocidental e tece um discurso sensível e inteligente no qual o tempo, os ritos amorosos e a presença erótica são sutilmente abordados. Inclui uma visão singular da escrita e uma Teoria dos afetos muito particular e simbólica que utiliza na sua análise a metafísica das cores, os zodíacos, as sensações provenientes dos sentidos, o imaginário das feras alquimistas, os elementos clássicos e os arcanos do Tarô.

Numa época em que as relações acontecem com o vertiginoso da modernidade e os amores líquidos abundam (como diz Bauman), ”Todas as cartas de amor são ridículas”, reivindica esse ritual laico de correspondências amorosas, cada vez mais em decadência, e faz uma apologia a essa lentidão que Kundera reclama para os romances. ”Todas as cartas de amor são ridículas” é construído como uma narrativa paródica de romances, mas é ao mesmo tempo uma dissertação moderna sobre o amor combinada com uma história de afeto e um fim trágico que levanta questões sobre temas tabu como o abuso, a objetificação da mulher e a violência contemporânea.

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