Книга - Justiça Executada

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Justiça Executada
Saša Robnik


Três contos, três destinos sinistros, três execuções de justiça.

Podem os mortos implorar pelo perdão de sua culpa e desejar vingança contra seus malfeitores? Podem os vivos buscar vingança no pós-vida? As respostas são oferecidas em eventos aparentemente diferentes, conectados pela rede de fúria fria, culpa insuportável e remorso sem limites.







Saša Robnik

Justiça executada

traduzido por Leonardo Oliveira Pestana De Aguiar



copyright @ Saša Robnik, 2021









Poço K -14, Azra


Eu pago a conta, visto meu casaco e saio do lugar dos preguiçosos e condenados. Suas vozes persistem enquanto eu caminho pela noite ao longo da calçada molhada. A luz de néon do pub se mistura com meus passos no concreto.

A noite é perfeita como o sorriso de uma criança recém-nascida. Eu inalo tanto quanto meus pulmões podem aguentar e é reconfortante que o ar escuro expulse os venenos que permearam meu corpo no bar, mas eu sabia e ainda sei: não há veneno maior do que o arrependimento e a culpa que me assombram. O álcool não é uma cura, apenas um paliativo para a agonia que desolava o ser interior e ainda assim, o álcool te faz esquecer por um momento se você não está sozinho e se estiver, só intensifica o veneno a cada gole.

Quando destranco a porta e acendo a luz, o corredor me cumprimenta com seu vazio e sua lâmpada nua, cuja luz torna tudo estranho. Pendurando o casaco e tirando os sapatos, hesito, sabendo que está lá, à espreita, muitas vezes no quarto, às vezes na cozinha, raramente no banheiro, mas quase sempre na sala de estar.

Lá está ele, com seu casaco verde, calça branca e boné na cabeça, parado em um canto, de frente para a parede. Sempre virado para a parede, nunca vi seu rosto. Às vezes eu quero, mas simplesmente não consigo fazer com que ele se vire e não tenho coragem de tocá-lo. O medo do desconhecido é mais forte do que minha vontade.

Seu nome é conhecido por mim, Deus é testemunha de que implorei cem vezes a ele que me olhasse nos olhos, mas todas as vezes acabou sendo em vão.

Eu me sento no sofá e ligo a televisão. As imagens na tela e a voz do locutor fogem da minha consciência. A luz da tela ilumina a sala de estar onde estou sentado incapaz de fazer qualquer coisa, enquanto minha memória salta de como era para como poderia ter sido. Um destino doentio se tornou minha culpa. E dele. Nossa.

Há muito tempo deixei de notar o cheiro ao redor dele, o cheiro forte e pungente de carvão e poeira, típico de todo mineiro, agora enche minhas narinas e traz lembranças. Eu as rejeito, elas são indesejadas. Os comerciais se alternam na tela e o cansaço me domina. Mal posso esperar para adormecer, o sono traz alívio e esquecimento que desaparecem em um piscar de olhos, entre a escuridão e o despertar. E quando meus cílios se fecham e o sono me envolve, ouço-o chorar. Soluçando e chorando. É assim que ele se despede de mim todas as noites.

O despertador me acorda. Devagar e sem pressa, eu me preparo para o trabalho, mesmo assim eu nunca me atraso. O cheiro de café e o sol entrando pelas cortinas entreabertas me trazem um novo dia. Ele desapareceu daquele canto, provavelmente está no corredor. Desligo o fogão, pego minha xícara, volto para o sofá e estico o pescoço. Lá está ele, começando a sussurrar contra a parede, rápido e ininteligível. Acendo um cigarro e aumento o volume. Dizem que vai ser um bom dia, sem neve.

Após algumas tentativas, o motor se força a sair da hibernação gelada. Com uma enorme pressão no pedal, ele consegue. Eu o deixo parado e saio para raspar o gelo do para-brisa. Enquanto meus dedos se contraem com o frio, meu olhar vai para a janela do quarto andar, e me parece que posso ver sua silhueta, iluminada pelo sol de inverno, e tenho certeza que ele está me observando, escondido atrás da cortina cinza.

Saio do carro e encontro meus aprendizes, meninos recém-saídos da escola. Eles estão tomando café e conversando sobre o Ano Novo. Ouvi dizer que eles têm planos com algumas garotas, rindo jovens e felizes.

Depois de me cumprimentar educadamente, eles me servem uma xícara de café com uma expressão curiosa em seus rostos. Eu aceno com a cabeça e mando Goran para o escritório. Ele volta com uma garrafa de licor e copos, serve a todos e brindamos o novo ano.

- Outra? - Eles são todos bons meninos, balançam a cabeça e começam a falar sobre trabalho, então eu distribuo as tarefas. Ivica vai fazer uma vistoria no VW Golf, o dono está impaciente, ele tem que dirigir até Belgrado. O Peugeot, que está no macaco desde a noite passada, é atribuído a Goran. Ele tem que trocar os pedais do freio e os cabos do freio de mão. O Fiat eu mesmo assumirei, assim que Boris remover a cabeça do motor. Ele vai trabalhar sozinho, mas eu o supervisiono. É um trabalho preciso, ele deve montar a correia de transmissão e posicioná-la corretamente para que não escorregue e quebre as válvulas.

Finalmente Stojan chega. Não estou bravo com ele por estar atrasado, o rapaz mora bem longe da oficina. Sem uma palavra, começam a trabalhar nas tarefas. Como dito, são bons meninos.

As canções populares do rádio enchem a oficina. Os meninos gostam de ouvir música enquanto trabalham, não há do que reclamar. Às vezes eu não ouço o telefone no escritório, mas não há como tudo ser perfeito. Eu lhes dou esta pequena alegria que acompanha a juventude e não tenho direito de tirá-la deles.

Da mesma forma que foi tirada de mim.

- Bom dia, patrão! - Uma voz desconhecida ecoa pela oficina. Eu me viro e deixo Boris terminar o trabalho sozinho, minha supervisão não é mais necessária, a tampa da válvula pode ser colocada por ele.

Eu cumprimento o recém-chegado e dou uma olhada rápida nele. Cigano, jovem. Os ciganos são bons clientes, apreciam um bom trabalho e sempre deixam gorjeta. Atrás dele eu vejo um Fiat antigo que chocalha irregularmente no ponto morto e me pergunto como o carro ainda consegue andar.

O carro me encara de forma ameaçadora com seu farol duplo, provocando uma inundação de memórias que me levaram aos bares, entre pessoas e bebidas, procurando uma fuga. Meu coração bate mais rapidamente enquanto eu me aproximo. Isto não pode ser, isto simplesmente não pode ser, grita cada poro do meu ser. Como se o próprio diabo tivesse levado este veículo à oficina, apreciado a cena e me tivesse advertido de que não há como esquecer.

As laterais estão podres, a pintura embotada e as bordas corroídas. O para-lama dianteiro e o parachoque foram substituídos. Uma carroçaria torta e danificada contava histórias de falta de atenção e manutenção porca. Tomei nota de tudo isso inconscientemente, os anos como mecânico me guiaram sistematicamente mas também trouxeram memórias. Como se de longe, o cigano fala com uma voz suplicante sobre o motor de arranque, sobre empurrar o carro, sobre miséria e a véspera do Ano Novo. Sua voz se perde na enxurrada de raiva, memórias e arrependimentos.

Abro a porta e examino o interior. Os mesmos estofados estão nos assentos, intocados todos esses anos. Um grande arranhão no painel, uma bola branca com pontos pretos na marcha, e um adesivo da Smurfette sob o rádio.

O adesivo que eu tinha colocado há muito tempo.

Nuvens escuras começam a girar na frente dos meus olhos e o sangue ferve em meus ouvidos. Respiro fundo e me viro para o cigano enquanto ele ainda fala:

- ... É difícil, meu amigo, não podemos mais empurrar o carro, eu te imploro, não importa qual seja o preço...

- Não - o grito sai espontaneamente, eu não quero olhar para ele ou o carro, me causa muita dor.

Ele me encara assustado.

- Tire esse carro daqui, agora! Eu não trabalho com latas velhas! - Eu grito e dou as costas para ele. Os meninos estão parados na entrada da oficina com ferramentas nas mãos, surpreendidos pela minha repugnância.

Então eu corro para o escritório, em direção à garrafa. Atrás de mim, o cigano xinga, entra no carro e vai embora.

O hábito de beber de manhã. O trabalho me ocupa, fico perto das pessoas e não preciso disso. Agora, eu preciso.

Enfurecido, abro uma gaveta da mesa oleosa, encontro uma foto desbotada debaixo de uma pilha de arquivos e olho para o rosto de um jovem soldado, com menos de 19 anos.

Em sua cabeça, um Titovka, o boné com a estrela comunista, e ao fundo os vagões de um trem. Seus olhos são sérios, e negros, suas bochechas fundas.

Meu pai. Uma foto tirada antes de eu nascer.

Memórias da primeira infância chegavam a mim:

Papai chega do trabalho. Estamos sentados em um cobertor no jardim de nossa modesta e pequena casa, minha irmã mais nova e eu, brincando. Ele vem através do portão; o sorriso largo em seu rosto nos convida a correr para ele. Ele a levanta, acima de sua cabeça, e ela ri gritando alegremente. Eu abraço a perna dele, mas não consigo alcançar o cinto da roupa preta de mineiro. O fedor da mina exalava dele. Ele brinca com a gente, corremos pelo jardim fazendo barulhos engraçados. Mamãe aparece na varanda e nos chama para jantar.

A porta do escritório se abre. Goran entra e se pergunta se eles poderiam ir para casa mais cedo para se preparar para a festa de Ano Novo. Concordo e coloco mais licor no copo. Os caras aparecem, trocam de roupa e me desejam felicidades. Posso dizer que estão me olhando estranhamente, mas é uma bênção que eles não possam sentir os terrores que me assombram, os terrores que vieram em uma véspera de Ano Novo há muito tempo.

Na hora seguinte termino o trabalho, limpo a oficina e saúdo os proprietários dos carros. Eles pagam as contas, me desejam felicidades, e me deixam para receber o Ano Novo. O último veículo sai da oficina e finalmente estou sozinho.

Quando troco de roupa, a sala se enche com o cheiro de carvão e poeira.

Pensei que estava me acostumando, mas sempre em casa, nunca fora. Desde que saí do orfanato há três décadas com um diploma no bolso e o endereço da oficina onde eu trabalharia, era sempre na casa.

Eu me viro lentamente e vejo suas costas. Com a cabeça inclinada, ele fica parado contra a parede, de frente para um cartaz de uma Ferrari vermelha.

- O que está fazendo aqui? Nenhuma resposta. Em todos esses anos nunca houve uma.

Minha mente corre solta, eu sirvo o terceiro copo e acendo um cigarro. Ele começa a estalar os dedos, e o som ecoa ao redor do escritório. De vez em quando ele faz uma pausa e limpa os olhos. Ou as lágrimas. A tentação de tocá-lo é muito forte, eu nunca ousei, mas agora as circunstâncias mudaram.

Minha mão se aproxima do ombro do casaco verde, e eu paro. Ele levanta abruptamente a cabeça e o estalar de dedos para.

Desesperado, saio rapidamente do escritório, tranco a oficina, entro no meu carro e vou embora com os pneus cantando.

Por vinte minutos estou preso em um engarrafamento. Um acidente no cruzamento, posso ver claramente as luzes azuis girando no crepúsculo emergente. Eu acendo outro cigarro, abro a janela no meio do caminho e amaldiçoo os motoristas bêbados que enchem a cara em seus escritórios e depois pegam no volante.

Na calçada está uma mãe com dois filhos. Os dois estão carregando presentes e balões com expressões sérias em seus rostos. Eles devem estar pensando freneticamente sobre o que está nas caixas de presente que receberam no jardim de infância. Eu sorrio com suas expressões faciais e volto ao passado.

Os amigos do papai estão sentados no jardim. Mamãe serve um lanche e o papai está se servindo de cerveja. Nós, as crianças, jogamos futebol, somos o suficiente para dois times.

Papai sorri com orgulho. Na frente da casa está um Fiat novinho brilhando ao sol de outono, e papai está servindo seus amigos da mina. Eles brindam, desejam boa sorte e que o carro possa servi-lo bem. Conforme o tempo passa, o papo em torno da mesa fica sério, como se nuvens de chumbo cercassem a mesa, enchendo os olhos de seus amigos. Já não brindam, nem riem, seus rostos ficam duros como as rochas nas minas. Somente o cheiro da poeira de carvão permanece inalterado em nosso jardim.

A bola cai na mesa e derruba um copo de vidro. A cerveja cai na toalha de mesa e escorre sob os pratos. Meu coração bate forte em meu peito e meu estômago embrulha. Silenciosamente, eu observo meu pai pegar a bola; seus olhos estão me chamando.

Relutante, eu vou até ele, pronto para levar um tapa na cara. O cabelo na minha nuca se arrepia com a expectativa do tapa, mas ele não vem.

Distraidamente, ele me dá a bola; eu fico confuso e não me movo quando a conversa chega ao meu ouvido:

- Estou dizendo, o próprio diabo anda por Azra.

- Nusret, não seja idiota. O que deu em você?

- Ele está certo, eu estava cavando lá ontem. Este é um negócio perigoso.

- Você é louco, como o poço pode ser mau? Branko, você trabalhou lá, o que você tem a dizer?

- Você sabe exatamente o que aconteceu comigo.

- Balela!

As crianças me pedem para continuar o jogo e quando me movo em direção a elas, ouço meu pai começar a falar:

- Eu não sei o que dizer, eu fui designado para lá, eu tenho escrito, poço K-14, chamado Azra, por dezembro todo e eu não me sinto bem quanto a isso. Mas, vamos brindar, para o inferno com essas histórias!

Uma buzina impaciente berra do veículo atrás de mim. Deixo as memórias e coloco o carro em marcha, dirigindo pela cidade decorada e respirando o ambiente animado. Todo mundo está correndo para algum lugar, com seus sorrisos e sacolas cheias. Eu paro em frente a um supermercado; pura sorte eu encontrar uma vaga de estacionamento livre.

O calor e a música suave no supermercado não me fazem relaxar, me pergunto pela milésima vez se o mal do poço de Azra, longe da Sérvia, causou o terror que marcou minha vida e tirou tudo com que me importava? Ou eram apenas histórias de mineiros tolos? Em vão, tento entender o que não pode ser entendido. Ele está lá esperando por mim, ele saiu do apartamento pela primeira vez. Não estou louco, tenho certeza disso, assim como tenho certeza que amanhã é um novo dia.

Concluo que o súbito aparecimento do nosso velho carro desencadeou esses pensamentos.

E o forçou a sair do apartamento.

O celular toca. É ela, tenho certeza.

- Venha hoje a noite. É véspera de Ano Novo.

Quero estar com ela, tenho negligenciado ela ultimamente, e fico surpreso que ela esteja ligando.

- Eu não vou ser uma boa companhia, não esta noite - Eu respondo, escolhendo as compras no carrinho. Não esqueço a bebida.

- Eu entendo, mas ainda assim, venha. É hora de esquecer as memórias feias, pelo amor de Deus, tantos anos se passaram!

Em silêncio, eu ouço a respiração dela. Ela sabe que eu tenho dúvidas e que é inútil tentar me convencer. Ela me faz lutar a batalha entre desejo e coragem. Uma batalha perdida.

- Não, querida, não posso, sinto muito.

- Eu sabia, mas tinha que tentar. Você vem almoçar amanhã?

- Com certeza. Te desejo tudo de bom. Te amo.

Então eu desligo, vou ao caixa e me indago sobre a persistência dela. Ela está sozinha com o filho, e eu não quero estar perto de crianças. Não hoje à noite. Acho que isso se chama amor. Amor cego, negócios femininos.

À noite eu evito o bar. Uma risada bêbada vinda de dentro me impede de entrar, mas eu não quero ir para casa por causa de algo que me espera lá, e por causa do que ocasiona esse algo.

No entanto, vou direto para casa. Por um momento eu penso nos meninos. Eles devem estar se vestindo e se preparando para a festa. Despreocupados e felizes, longe da escuridão que emana de Azra. Se houvesse um centro coletivo para desejos do Ano Novo, eu lhes enviaria um intitulado "Urgente": Que o poço K-14 de Azra desmorone até o fim dos tempos, com todos os vivos e mortos dentro dele.

Quando entro no apartamento e guardo as compras, me preparo para o banho. Em um instante, o banheiro se enche de vapor. Eu me esfrego vigorosamente, o fedor do óleo mecânico está em todos os poros da minha pele. O fedor do trabalho duro. Como o do meu pai.

Ele está ao lado da máquina de lavar, de costas. Devido ao vapor, não consigo ver o que ele está fazendo com as mãos, e através da água não consigo ouvir se ele está sussurrando. Ele sempre sussurra, nunca fala em voz alta.

Na cozinha, eu sirvo uma dose para me fazer companhia enquanto preparo o jantar. A televisão ilumina a sala onde eu nunca acendo as luzes. Eu me sinto mais confortável no escuro e ele também, eu acho. Ele se esconde nas sombras, então não posso vê-lo, mesmo quando ele tenta chamar minha atenção.

Enquanto eu corto a carne com uma faca grande e afiada, um momento de descuido é o suficiente para fazer meu dedo sangrar. Eu xingo e coloco o dedo sob a água fria da torneira. Um filete de sangue fica preso à faca.

Não houve água naquela noite para lavar o sangue. A poça de sangue estava na cozinha, e na poça estavam eles. Todos eles. Eu balanço minha cabeça para dissipar esses pensamentos, coloco um curativo em volta do meu dedo, sirvo outra dose e volto a cortar a carne. Cada corte me lembra das feridas que vi e, perturbado, causei.

Azra. Mau. Ele.

Termino minha bebida e sirvo outra.

Nunca estive no poço, apesar dos inúmeros apelos que fiz ao meu pai. Ele previu o segredo da Azra e por isso não me levou lá, agora sei disso. Os mineiros também podiam sentir isso e eu queria dar uma olhada no poço depois da visita deles e da curta conversa à mesa.

E agora eu bebo da garrafa.

Maldito Fiat. De tantas oficinas na Sérvia, ele escolheu minha garagem. Azra o trouxe para me lembrar. Depois de mais um gole, coloco a carne no forno e levo a travessa de volta para o quarto. A televisão transmite o programa de ano novo, como naquele dia. Cerimonial e pomposo.

Em vez de apresentadores de TV cafonas e cantoras tradicionais seminuas, vejo os amigos de papai à mesa, mamãe na cozinha e minha irmãzinha no balanço. Em outros canais, as mesmas imagens de minhas memórias se misturam com os programas de ano novo. Me levanto e olho a carne, ela não vai ficar pronta por um tempo. Eu quero comer, ficar bêbado, deitar e mergulhar no esquecimento. Antes da meia noite.

Dos apartamentos próximos, ouço risos e música. Em todo o meu redor, e eu, como que amaldiçoado, fico sozinho com uma garrafa de licor, meus demônios e memórias horríveis daquela noite, então tomo outro gole e desfruto do líquido que alivia minha garganta e aquece minha barriga.

Uma sombra se move na minha frente. Ele.

Eu o vejo entrar no corredor com a cabeça baixa.

- Indo para onde, pai? Você viu seu Fiat hoje? - pergunto zombeteiramente.

Ele fica parado na porta. Eu tomo outro gole e continuo:

- Ainda tem o adesivo embaixo do rádio que você comprou para mim na loja da esquina.

Ele não se move e começa a mordiscar as unhas.

Os primeiros acordes soam na TV: "Love me tender", de Elvis Presley.

Mais uma vez a calamidade segue seu caminho, não pode ser coincidência, houveram muitas delas hoje. Essa música estava tocando naquela vez, naquela véspera de ano novo em que papai voltava do trabalho, do poço K-14, de Azra.

De repente, tudo fica claro para mim, talvez por causa da bebida ou talvez devido ao seu comportamento incomum, porém as nuvens de terror deixam minha alma e desaparecem para sempre.

A culpa não foi dele. Eu sabia disso o tempo todo, estava em meu subconsciente, mas eu nunca aceitei. Eu precisava de sua culpa como o ar que respiro para justificar a minha.

Elvis continua cantando, me levando de volta àquela noite.

Mamãe faz um bolo e canta junto com Elvis, minha irmã pula em volta da mesa e eu sento na sala lendo quadrinhos. Nunca gostei do Elvis e é por isso que não presto atenção à TV. O piscar das luzes na árvore de Natal que papai e eu montamos e decoramos me entedia.

De repente mamãe grita da cozinha para eu pegar uma faca grande na despensa, está na bandeja com os outros bolos. Titio adora o bolo da mamãe, ela fez especialmente para ele. Este ano, celebramos o Ano Novo juntos.

Fingi não ouvir, por causa de Elvis e sua canção nojenta, que contagiou as mulheres da casa. Meu pai sempre dizia - quem entende, filho, elas são mulheres - e ele ria, mas minha mãe franzia a testa e respondia com raiva e com palavras desagradáveis.

Mamãe chama novamente e pede a faca. Preguiçosamente, saio do sofá, caminho pelo corredor em direção à despensa, abro a porta e encontro a lata na prateleira e a faca dentro dela. A porta da frente se abre. Papai passa por mim, não me vê e deixa uma nuvem fedorenta de carvão e poeira. Eu pego a faca.

Ele não foi ao banheiro para se lavar, como sempre faz quando chega do trabalho, ao invés disso foi direto para a cozinha. Ele nem mesmo tinha os presentes prometidos com ele. Tenho certeza de que ele os deixou no Fiat. Agora a mãe vai repreendê-lo por entrar na cozinha com roupas sujas.

Eu o sigo e ouço mamãe:

- Vá se lavar, por que você está entrando assim?

O pai não responde. Ela continua:

- Você está bêbado? Pelo amor de Deus, o tio está prestes a chegar, e você...

Ela não terminou a frase. Papai agarra o cabelo dela e esmaga o crânio dela contra a mesa. Sua expressão é fria como pedra e seus olhos negros como o carvão que ele estava cavando.

Minha irmã começa a gritar. Elvis canta sobre ternura e amor.

Horrorizado, não saio da porta da cozinha e não consigo acreditar nos meus próprios olhos, como se visse a cena diante de mim em um sonho. Papai continua, a cabeça da mãe está ensanguentada, e quando ele a puxa e a esmaga, vejo que o rosto dela não está mais lá. Ele desapareceu na poça de sangue sobre a mesa. Minha irmã continua a gritar, cobrindo os olhos.

Ele larga a mãe, que desaba como um trapo do fogão, e se vira para minha irmã. Finalmente me recomponho e pego força nas pernas, ando até ele pela cozinha e grito: "Por favor, pai, pare, por favor, pare!"

Repito isso, aparentemente inúmeras vezes, mas papai não me ouve. Ele agarra minha irmã, levanta-a sobre a cabeça e a joga no chão da cozinha com todas as suas forças.

O horror está permanentemente gravado em minha consciência.

Minha irmã está caída no chão como uma de suas bonecas. Seus olhos estão vidrados, parece que a vida saiu dela. Sangue escorre de seus ouvidos. Papai se abaixa e bate nela com o punho. Lentamente, ele levanta o braço e a golpeia novamente.

Ele está de costas para mim, sinto o peso da faca em minha mão, minhas pernas começam a se mover e eu cravo a lâmina em suas costas largas. Ele não sente a picada, continua batendo em minha irmã sem se importar comigo ou com a ferida que eu lhe causei. Eu o esfaqueio uma e outra vez, mas ele não para de agredir a garota indefesa cuja vida já havia se esvaído. Por fim, ele cai no chão de linóleo, ao lado do pequeno corpo, morto.

As mãos de titio me agarram, minha tia grita e Elvis termina sua música.

Outro grande gole da garrafa desce pela minha garganta enquanto as lágrimas escorrem pelo meu rosto. Não me lembro do rosto da minha mãe, nem do da minha irmã, mas me lembro de cada momento daquela noite enquanto Elvis cantava aquela mesma música.

Eu enxugo as lágrimas que não enxuguei em décadas. As últimas caíram enquanto eu implorava a meu pai para parar. Morar em um orfanato as afastou para sempre.

Até agora.

Ele em seu casaco verde, calça branca e boné na cabeça, está na soleira da porta, parado como uma lápide. Ele não move as mãos nem sussurra. Pela primeira vez, eu o vejo assim, imóvel. Como se ele pudesse ler meus pensamentos.

- Pai... - eu chamo.

Ele lentamente vira a cabeça para me encarar e finalmente, depois de todos esses anos, vejo seus olhos. Não estão pretos como naquela noite, mas castanhos e calorosos, como sempre foram. Olhamos um para o outro por alguns momentos, momentos que parecem tão longos quanto os anos que passei sem minha mãe, meu pai e minha irmã.

- Pai, eu te perdoo. Eu te perdoo de todo meu coração. Todos nós te perdoamos. Por favor, me perdoe também.

Lágrimas escorrem por seu rosto. Ele se aproxima de mim, abre os braços e me oferece um abraço.

Eu o abraço, sinto suas mãos e inspiro o cheiro doce. Inspiro todos os anos passados, o sorriso de minha mãe, a tagarelice da minha irmã, o nosso jardim, o balanço e a casa pobre. Todos os passeios no nosso Fiat e os anos roubados por Azra.

Sua voz, que não ouço há tantos anos, de repente enche a sala.

- Está tudo bem, meu filho. Está tudo certo, não tenho nada pelo que te perdoar.

Então ele desaparece. E com ele, o cheiro.

- Pai?

Não recebo resposta.

De repente sou preenchido de vazio e saudade, mas esses sentimentos não são nada comparados ao alívio que se abre como um poço em minha consciência, um poço no qual toda a culpa, remorso e tristeza afundam, embora eu saiba que a mina deixou cicatrizes de terror em mim e que algo ainda a assombra.

O telefone está na mesa. Eu pego e disco um número, agora não quero ficar sozinho.

- É tarde demais para mim?

Não recebo a resposta de imediato, ela fica bastante surpresa.

- Claro que não, apresse-se, estou tão feliz.

Desligo, me arrumo e procuro papai, mas não o encontro.

Ele se foi para sempre.

Mas a vida ainda existe e a felicidade também. Eu sei o que fazer.

Apesar do poço de mineração K-14, Azra.





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