Книга - A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)

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A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)
Francisco Abreu




Jorge de Abreu

A Revolução Portugueza: O 5 de Outubro (Lisboa 1910)





Falando aos leitores


De todos os relatos que vieram á tona da imprensa portugueza sobre episodios do movimento que implantou a Republica no nosso paiz, conclue-se nitidamente esta coisa curiosa: raros foram os pontos do programma revolucionario que se cumpriram á risca. No emtanto, o movimento triumphou. As longas horas de espectativa dolorosa, que uns passaram a desafiar a morte e outros a contas com a torturante ignorancia da verdade, desfecharam na manhã de 5 de outubro em delirante estralejar da victoria – alcançada simultaneamente pelo esforço heroico de meia duzia de patriotas e a inacção de centenares de descrentes. O movimento triumphou apesar de tudo: da ausencia, no momento supremo, de elementos de coordenação revolucionaria, do desanimo que bem cedo invadiu quasi a totalidade dos dirigentes da campanha, da falta sensivel de armamento destinado aos carbonários e outros civis.

Na madrugada de 4 de outubro, á hora em que um troço de populares e de soldados arrastava pela Rotunda o enthusiasmo dos primeiros momentos de combate bem succedido, ainda n'uma casa dos lados da Sé duas creaturas devotadissimas fabricavam bombas que um emissario da Revolução d'ahi a pouco devia ir buscar. Mas o emissario não appareceu e um dos «fabricantes» sahiu á rua a inteirar-se da situação. Cahiu logo nas garras da policia… E como este, muitos outros incidentes occorreram na madrugada celebre, mais proprios, sem duvida, a embaraçar a eclosão do triumpho do que a facilital-a.

É que se do lado dos revolucionarios havia quem supportasse, com fé inquebrantavel, todos os obstaculos – e não poucos – que surgiram ante o seu designio, do lado do inimigo a convicção da perda irreparavel da monarchia enraizara-se profundamente, abalando, com diminutas excepções, as consciencias as mais empedernidas. Parece que, mal soaram no silencio tragico da noite os primeiros tiros de canhão, a maioria das creaturas, ás quaes incumbia a missão de luctar pelo regimen extincto, teve a visão clara da inutilidade do seu esforço[1 - Em 1891, por occasião da revolta do Porto, não succedeu assim. «Para o paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens officiaes» – dissemol-o no 31 de Janeiro. – «Todos á porfia accorriam á regia morada». Quasi vinte annos depois, no instante do perigo, fugiam d'ella…].

A influencia moral desprendida do acto revolucionario, já em precipitado desenrolar, ajudou muito a conquista da liberdade. A presença da artilharia no campo revoltoso, a immediata adhesão do «Adamastor» e do «S. Rafael» ao movimento, o bombardeamento do paço, a fuga do rei e a derrota das baterias de Queluz contribuiram innegavelmente, e em larga escala, para assegurar a victoria da Republica; mas, a par d'esses factores, não é licito esquecer a molleza, a inercia dos que constituiam o inimigo, uma e outra derivadas d'um scepticismo que a monarchia, sem dar por isso, inspirava desde muito aos proprios que a serviam.

É cedo, porém, para entrarmos na enumeração e apreciação d'esses factores. O nosso proposito, narrando o que vae lêr-se, é fixar, com o melhor methodo possivel, os pormenores da sacudidela feliz que destruiu a monarchia portugueza, as «étapes» do verdadeiro sonho durante o qual se desmoronou a dynastia dos Braganças. É um pouco a historia da organisação revolucionaria seguida logicamente do relatorio da batalha de 4 e 5 de outubro. Aqui e ali resaltarão diversas notas confiadas por authenticos conspiradores ao signatario d'estas linhas e que, se não modificam a impressão geral do quadro da revolta que os leitores conhecem, emprestam-lhe, comtudo, «nuances» absolutamente ineditas que é justo e necessario pôr em lettra redonda.

A historia da organisação revolucionaria – sabemol-o perfeitamente – escreveram-na tres homens durante o periodo febril da sua preparação. Um d'elles, Miguel Bombarda, destruiu, pouco antes de morrer, o capitulo mais interessante, o que delineava, em traços symbolicos, todo o plano de ataque ás instituições monarchicas. Liam-se n'esse capitulo a força imponente dos elementos revolucionarios e a sua distribuição pelos pontos vulneraveis; era o balanço, lucidissimo para os iniciados e inintelligivel para os profanos, do grande exercito democratico que se aprestara a investir contra a realeza. Miguel Bombarda destruiu-o receioso de que viesse a cahir, apoz a sua morte, em poder do inimigo.

O outro capitulo escreveu-o João Chagas ao sabor da opportunidade, em minusculos pedaços de papel, nas margens livres de cartas e telegramas e até em bilhetes de visita. Era o resumo fidelissimo das assembleias revolucionarias que antecederam o movimento, as «actas» das reuniões secretas de militares, o registo palpitante das adhesões que dia a dia faziam engrossar a legião republicana. Esse capitulo não foi destruido. Atravessou o periodo mais acceso da lucta escondido n'um chapéu feminino – o chapeu da esposa do illustre pamphletario – e só reviu a luz do dia quando o governo provisorio já tinha iniciado a sua obra de reorganisação politica.

Ainda outro capitulo – o da implantação da Republica, lista dos actos, das determinações que deviam succeder immediatamente á consagração solemne do triumpho. Esse esteve, por instantes, condemnado a desapparecer nas profundezas d'um syphão, transitou depois de algibeira para algibeira e por fim encontrou refugio seguro na redacção d'um jornal, a «Lucta»… a dois passos da policia.

Qualquer d'esses capitulos, publicado isoladamente despertaria um real interesse e daria margem não só a variadissimos commentarios como a uma legitima exclamação de não menos legitimo espanto. Mas a nossa pretensão é mais modesta. Na leitura do que vae seguir-se, encontrar-se-hão simplesmente os elementos aproveitaveis á formação d'um quarto capitulo, meramente subsidiario, não traçado por espirito de revolucionario – que o não fomos – mas annotado por quem, durante o periodo de incerteza, limitou a sua acção pessoal a tomar apontamentos, a ouvir informações, a apreciar incidentes, a defrontar muita decisão, muita coragem, e, sobretudo muito medo, muito pavor. De mistura com isto, repetimos, apparecerão os depoimentos dos revolucionarios authenticos, dos que jogaram a vida n'uma cartada de exito.



    J. DE A.




CAPITULO I

Da perspicacia dos espiões ao serviço do antigo regimen


A policia, que o defunto juizo de instrucção criminal empregava especialmente na espionagem dos chamados agitadores da opinião, recebeu um bello dia do final do reinado de D. Carlos o encargo de averiguar o que projectava de sensacional o partido republicano, que uma denuncia affirmava mover-se activamente n'uma conspiração surda, mas tremenda. Os bufos puzeram-se immediatamente em campo e, dentro de curto prazo, davam ao chefe conta pormenorisada da sua missão. O relatorio d'essa espionagem, que pretendia, se não estamos em erro, elucidar policialmente o trama revolucionario do 28 de janeiro, é a documentação mais perfeita sobre a incapacidade dos que essa mesma espionagem exerceram. Um dos bufos diz pouco mais ou menos isto:



Na noite de… ás… horas, vi entrar na casa n.º… da rua de… um individuo magro, trigueiro, nariz comprido e de oculos, que se me constou ser empregado d'um judeu lá para os lados de… Sahiu da mesma casa ás… horas e tambem se me constou que assistiu com mais vinte e tantos individuos a uma reunião secreta.


Evidentemente, no relatorio do espião, faltam os dados essenciaes. É uma cousa vaga, que nenhum chefe de policia podia acceitar de boa fé para d'ella concluir que o revolucionario assim visado era um dos mais solicitos republicanos de Alcantara. Mas servia ao momento para justificar a verba ministerial applicada a esta e outras diligencias e tudo conjugado, tudo espremido em volta d'outra informação policial que descrevia um passeio de propaganda nocturna dado pelo sr. dr. Antonio José de Almeida ás proximidades d'um cemiterio – onde conferenciara com soldados e marinheiros – deu em resultado o supremo dirigente da espionagem enveredar pelo caminho da phantasia, já que a verdade lhe não era nitidamente facultada pelos vãos esforços dos seus subordinados.

Houve um momento em que a Parreirinha – ou a Bastilha, como quizerem – suou em bica para achar o fio do complot. Pensou-se mesmo em peitar uma creatura que se adivinhava intimamente ligada ao movimento revolucionario e obter d'ella, com a promessa deslumbrante de farta recompensa, as informações que os bufos não conseguiam arranjar. Apertou-se a rede da espionagem, principalmente sobre o rasto e os menores gestos dos drs. Antonio José de Almeida e Affonso Costa e João Chagas. Certa noite, o ex-ministro do interior, dirigindo-se para um ponto da estrada da circumvalação onde projectava encontrar-se com elementos republicanos, foi seguido por um bufo que tinha jurado aos seus deuses obter, custasse o que custasse, a revelação completa d'essa conferencia secreta. Trabalho inutil. A meio da viagem, o bufo perdeu a pista do illustre caudilho da democracia e só logrou reavistal-o quando elle já regressava, tranquilo e risonho, ao seu consultorio medico. Pouco bastou para a Bastilha mandar enforcar o espião inhabil…

Em meio do seu desespero e da sua ignorancia, a policia teve um sobresalto pavoroso. Outra denuncia, d'esta vez bem recheiada de pormenores, assignalava ao juizo de instrucção criminal a organisação d'um complot, cujo objectivo era não só a eliminação do dictador João Franco, que se propunha á viva força consolidar e engrandecer o poder real, mas o de derruir, n'um golpe de audacia, as instituições monarchicas. Dizia-se que n'esta altura da conspiração os republicanos não contavam simplesmente com o apoio e a collaboração dos dissidentes, que, tendo começado por lançar a semente da revolta politica no cavaco animado d'uma pastelaria da Avenida, já tratavam a serio d'uma mudança de regimen. Dizia-se tambem que os chefes em evidencia, os organisadores do movimento revolucionario – Antonio José de Almeida, Affonso Costa e João Chagas – tinham procurado o auxilio d'uma parte dos libertarios, homens de acção energica, dispondo de meios de combate essenciaes á dispersão, no momento propicio, das forças defensoras da monarchia e que essa fracção do partido anarchista portuguez promettera aos republicanos uma parcella consideravel do seu esforço.

A bomba, o engenho destruidor, que é o pezadelo do que se convencionou denominar uma sociedade regularmente constituida, passou então a ser a sombra espectral das regiões policiaes. Descobrir a fabrica do explosivo, desvendar o recanto solitario onde, dia a dia, homens sem medo, sem hesitações, debruçados carinhosamente sobre pedaços de metal, apparentemente insignificantes, jogavam a vida com um desprezo titanico, era o sonho dourado do Cyro – o Cyro, que se gabava de conhecer todos os anarchistas militantes – e d'uma longa theoria de famintos, que espionavam para terem que comer.

Dois accidentes de trabalho, occorridos com pequeno intervallo um do outro, ergueram aos olhos coruscantes da policia uma pontinha do veu. O primeiro deu-se n'uma casa da rua de Santo Antonio á Estrella. Um operario do Arsenal de Marinha e o professor de ensino livre Bettencourt foram as victimas da explosão d'uma bomba – explosão provocada pela imprudencia do operario ao tentar soldar o apparelho ao fogo d'uma lampada. O segundo accidente alarmou a cidade na tarde d'um domingo sombrio. As campainhas dos telephones vibraram apressadamente communicando ás redacções dos jornaes a noticia do facto. Emquanto, a poucos passos, na Avenida, uma banda regimental deliciava centenares de pessoas descuidosas e a garridice feminina animava o quadro d'uns tons voluptuosos, alguns revolucionarios, encafuados n'um modesto quarto de estudante, na rua do Carrião, preparavam tranquillamente o exterminio da guarda pretoriana. De repente, um estrondo formidavel sobresaltou a visinhança. Viu-se sahir da janella d'esse compartimento acanhado e inexpressivo uma lingua de fogo e d'ahi a momentos uns transeuntes mais corajosos, um bombeiro voluntario e um policia defrontavam o espectaculo commovedor de dois cadaveres mutilados em meio d'um armazem de bombas.

O Cyro, prevenido do facto, não tardou a apparecer no local, esbofando-se por apprehender o alcance de tamanha revelação. Os nomes dos dois mortos não figuravam na sua lista de anarchistas; o do preso (Aquilino Ribeiro) que a judiciaria já fizera conduzir á esquadra proxima e que evitara, n'um gesto de gavroche, o ser apanhado pela machina photographica d'um reporter, tambem lhe não soava familiarmente ao ouvido. O caso era de embatucar… Os outros chefes ao serviço do juizo de instrucção perdiam-se egualmente em conjecturas. Adivinhavam no desastre qualquer coisa de muito tragico e de muito ameaçador para a segurança do regimen vigente, mas não ligavam a occorrencia a outros incidentes de menor importancia, que, todos arrumados methodicamente, poderiam talvez fornecer uma indicação preciosa.

Ao cahir da noite, quando a noticia do facto se divulgou pela Baixa e pelos centros de palestra, o espanto e o terror invadiram e fizeram emmudecer muita gente. A policia ainda tentou, com um truc velho, projectar alguma luz no inesperado acontecimento. Sem perda de tempo, levou á Morgue o estudante preso no local da explosão e, collocando-o em face dos corpos esphacelados dos seus dois camaradas, forcejou por arrancar-lhe uma confissão plena. O sobrevivente do desastre sensibilisou-se, é certo, á vista dos cadaveres, mas as lagrimas que no momento derramou não lhe despegaram dos labios a denuncia apetecida. O truc não surtiu effeito.

Restava applicar á imprensa a mordaça do estylo. O dictador João Franco fel-o sem rebuço, auxiliado por alguns jornaes que, longe de reagirem contra esse costume intoleravel de consentir que o chefe do governo ditasse pelo telephone as poucas phrases em que a noticia de qualquer facto podia ser transmittida ao publico, se apressaram a recordar-lhe a existencia d'uma lei, que era feroz armadilha para insubmissos. Quer dizer: esses jornaes mettiam complacentemente, e até com certo jubilo, o pescoço na canga da oppressão. Ainda não esquecemos o dialogo telephonico travado na noite d'esse domingo melancholico entre o presidente do conselho e a redacção d'um diario de Lisboa:

– V. ex.ª consente pormenores da explosão? perguntava o jornal.

– Não tenho nada com isso, respondia o primeiro ministro de D. Carlos… os senhores bem sabem o que lhes compete fazer.

– Mas a lei de 13 de fevereiro?..

– Ah! sim, está em vigor…

– E… v. ex.ª applica-a?

– Naturalmente.

– Mas o publico precisa ser informado…

– Bem sei… mas eu nada tenho com isso… mandem ao governo civil. Vou recommendar para ali que forneçam a todos os jornaes uma nota resumida do caso.

E assim succedeu. Uma hora depois, os reporters que tinham ido ao bebedouro commum da informação officiosa regressavam com cinco linhas – cinco linhas apenas, não exageramos – em que se registava, n'uma linguagem quasi sybillina, a descoberta, por meio do desastre, do fabrico de explosivos para fins manifestamente criminosos. Uns jornaes publicaram essa nota na integra, sem resalvarem a proveniencia; outros, mais escrupulosos, precederam-na d'outras linhas que a reduziam ao seu justo valor; um unico teve a coragem de transgredir as ordens do dictador, noticiando ao mesmo passo o nome d'uma das victimas da explosão!..

O relato pormenorisado do acontecimento com as competentes gravuras (photographias dos cadaveres na Morgue, croquis do interior do quarto de estudante e a reconstituição graphica da scena commovente) foi no dia immediato exportado para o Brazil e inserto n'uma folha do Rio, afim de que se não perdesse totalmente o trabalho do noticiarista, a presteza do photographo e a habilidade do desenhador.




CAPITULO II

Um «accidente de trabalho» e uma evasão romanesca


O proprio Aquilino Ribeiro – que, diga-se de passagem, é um intellectual – descreveu mais tarde ao signatario d'estas narrativas como occorrera o desastre da rua do Carrião.

– Aquillo foi assim – contou elle. Eu nunca tinha feito bombas, apesar das minhas convicções já me terem enfileirado n'um grupo libertario. Sabia que n'essa occasião, e mercê da preparação do movimento revolucionario do 28 de janeiro, esse fabrico se alargara a diversos pontos de Lisboa e mesmo fóra de Lisboa e dava-me intimamente com diversos militantes e propagandistas da acção directa. Tinha até cooperado na organisação do ataque aos quarteis e ás forças da municipal, indo com Alfredo Costa e outros alugar quartos em varios pontos estrategicos, d'onde projectavamos dynamitar essa legião fiel ao regimen monarchico. Um bello dia o dr. Gonçalves Lopes pediu-me para levar ao meu quarto dois caixotes com bombas. Hesitei, observando-lhe que a dona da casa podia attentar no facto, mas elle desvaneceu-me todos os receios, explicando-me que necessitava absolutamente transformar o meu aposento n'um deposito eventual de explosivos.

«Combinou-se o transporte dos caixotes do consultorio do dr. Gonçalves Lopes, na rua do Ouro, para ali, mas, ou porque elle não me pormenorisasse bem como a coisa devia ser feita, ou por outro motivo de que me não recordo, o moço incumbido de os levar á rua do Carrião teve de arripiar caminho e voltou com os caixotes para o consultorio. Grande pasmo do dr. Gonçalves Lopes e, no dia seguinte, após uma breve explicação que eu e elle tivemos no Suisso, os caixotes (cada um pesando approximadamente sessenta kilos) tornaram a emprehender a viagem para o meu quarto. Desde então, passei tambem a collaborar regularmente no fabrico de explosivos.

«Vendo o dr. Gonçalves Lopes e o commerciante Belmonte, seu companheiro na manipulação dos engenhos, carregarem umas tantas bombas, aprendi facilmente a operação e no domingo do desastre em que nos reuniramos para a continuar já me comportava ao lado de ambos como um fabricante experimentado. Tinhamos carregado umas sessenta ou oitenta e faltava ultimar muitas mais. O dr. Gonçalves Lopes parou a descançar e disse-me:

« – Você agora podia incumbir-se do resto…

«Eu não respondi de prompto e, ficando assente que á noite recomeçariamos a operação, dispuzemo-nos, no emtanto, a carregar mais tres para dar por finda a tarefa da tarde. Cada um de nós pegou n'uma bomba vasia. Na minha frente estava o dr. Gonçalves Lopes e mais adeante o seu companheiro. O dr. Gonçalves Lopes, descuidando-se um pouco nas precauções que era de uso tomar em taes circumstancias, principiou a martellar com força no engenho que tinha na mão. Ainda lhe recommendei prudencia; mas elle sorriu-se, incredulo, do meu receio, e continuou o trabalho. De repente, um grande estrondo atordoou-me sensivelmente. A bomba do dr. Gonçalves Lopes explodira. Vi-o cahir esphacelado, salpicando-me de sangue e vi o commerciante Belmonte avançar para mim, soltando um grito como o d'um animal ferido de morte. Acolhi-o nos braços, mas tive que o largar logo a seguir porque já agonisava.

«Foi um instante de dolorosissima atrapalhação. Dirigi-me a outro quarto a lavar-me, porque estava negro como um carvoeiro e quando voltei ao meu aposento pensei em fugir. Mas, como? O meu chapeu parecia um crivo, o vestuario não inspirava confiança, as mãos e a cara denunciavam-me, trahiam-me… Passeei uns segundos pelo quarto sem saber o que fazer e quando percebi que gente estranha subia a escada, a inquirir do estrondo, fui estupidamente esconder-me debaixo da cama. Os primeiros minutos passei-os quieto e calado n'esse refugio d'occasião. Mas, logo que ouvi a curta distancia os commentarios da policia e as interrogações dos reporters, longe de procurar misturar-me com o meu amigo e os nossos collegas – Aquilino Ribeiro era n'esse tempo collaborador da Vanguarda– comecei a agitar-me e despertei a attenção do chefe Ferreira. Estava apanhado.

– Levaram-me para o governo civil e depois á Morgue. Assediaram-me de interrogatorios. Pouco antes, com a explosão da rua de Santo Antonio, á Estrella, tinham sido presas, por suspeitas, umas cem pessoas. Com a da rua do Carrião, apesar da extensão enorme do fabrico das bombas em Lisboa, restringi tanto o cerco da curiosidade policial, que o chefe Ferreira apenas conseguiu incommodar um pobre homem em casa de quem foi encontrado um cartão de visita com o meu nome. Depois; estive dois mezes incommunicavel, durante os quaes só me queixei d'uma coisa: da má qualidade da comida fornecida aos presos.

«Durante o periodo da incommunicabilidade procurei, naturalmente, libertar-me da prisão. Fiz para isso, com a maior paciencia, variados preparativos. Aproveitei o azeite que condimentava as minhas rações de bacalhau para amaciar os gonzos e os ferrolhos do carcere. Com o miolo de pão fiz prodigios de habilidade e de disfarce. Em summa, quando me levantaram a incommunicabilidade já tinha quasi tudo organisado para a evasão.

«Uns amigos prometteram-me auxilio. Era necessario arranjar um automovel para me receber á sahida da esquadra do Caminho Novo e transportar-me a logar seguro. Creio, porém, que os donos de dois d'esses vehiculos, aos quaes os meus amigos se dirigiram, os não puderam dispensar e uma bella noite, quando consegui fugir do carcere, encontrei-me na rua, só, exposto a uma chuva torrencial que me transformava n'um pintainho. Uma vez transposto o muro do Posto de Desinfecção, contiguo á esquadra e tendo-me deixado escorregar por uma guarita onde uns operarios guardavam a ferramenta, atrevi-me a passar deante da sentinella da esquadra, como se fôra um simples transeunte que recolhia a casa a deshoras.

«Fui á Estephania á procura d'um conhecido. Bati. Ninguem me respondeu. Ou melhor, ninguem me abriu a porta. No trajecto, até lá, sempre debaixo de agua, encontrei uma carruagem particular, vazia, mas o cocheiro, quando lhe fallei em transportar-me, olhou-me de soslaio e respondeu com uma evasiva. Que admira! A barba hirsuta dava-me certamente um aspecto horrivel. Tinha sobre o casaco uma blusa com bolsos collados a miolo de pão… As botas e as calças destilavam immensa lama… Da Estephania dirigi-me á Praça da Figueira. Deram as oito da manhã e calculei que a essa hora a policia, sabendo da minha fuga, já andasse pressurosa no encalço do evadido. Na Praça comprei um molho de hortaliça e tratei de occultar o rosto o mais possivel. Fui a casa do Alfredo Costa, á rua dos Retrozeiros. Dormia ainda. Fui a outra casa. A pessoa que a habitava aconselhou-me o esconderijo n'outro ponto. Não acceitei o conselho e encafuei-me na taberna do João do Grão, na travessa da Palha.

«Ahi reparei as forças perdidas com essa noitada de anciedade, de cançaço e de chuva, comendo meia desfeita e tomando um litro de vinho. Momentos depois, apparecia-me então o Alfredo Costa e eu entrava para uma casa da maior confiança, conservando-me em Lisboa, escondido da policia, durante dois mezes…»

Preso um dos fabricantes de bombas, a policia volveu os olhos para todos os amigos de Aquilino Ribeiro, calculando ser-lhe relativamente facil capturar, acto continuo, o que ella appelidava os cumplices das vitimas. Um dos alvejados pela perseguição da Bastilha, o dr. Alberto Costa, tendo-se injustamente convencido de que o preso falára, abalou para Hespanha. Deu-se a fuga de outros revolucionarios, as diligencias policiaes arrastaram-se mollemente e com evidente desorientação e, apezar de que o desasocego dos conspiradores era de molde a infundir suspeitas aos menos precavidos, ainda d'esta vez a espionagem do juizo de instrucção não logrou desenrolar o fio da meada. E que admira, se no periodo de descuidosa imprevidencia em que o dr. Alberto Costa passeiava nas ruas de Lisboa com uma maleta cheia de bombas e se divertia a bailar, sobre uma cama que occultava uma caixa d'esses engenhos, os Argus da Parreirinha nem por palpite o encaravam com desconfiança!..

O fabrico de explosivos não occupava simplesmente meia duzia de pessoas. Absorvia os cuidados de diversos grupos. Generalisara-se por uma fórma assombrosa e, dentro e fóra de Lisboa, trabalhava-se afincadamente em centenas de apparelhos destruidores. Cada dia que passava sobre as arranhadelas da dictadura via surgir para a lucta novos combatentes e novas dedicações. Então, não era só o partido republicano que protestava contra o existente; os seus clamores de revolta echoavam na consciencia de muitos monarchicos; a legião dos que, na primeira hora de enganadora miragem, tinham acolhído o governo João Franco como o advento de um Messias, esboroava-se a olhos vistos. A atmosphera em volta do throno carregava-se progressivamente de indignação, de odio, de intranquillidade e, a não ser D. Carlos, que nunca se sensibilisára com a agitação da massa popular, e o ministerio franquista, que suppunha governar a contento do paiz, todos os outros elementos argamassados pelos favores do regimen sentiam, palpavam, futuravam, com maior ou menor largueza de vistas, a derrocada imminente.

A preparação do 28 de Janeiro proseguia com alma, com actividade febril. A compra de armamento e a sua introdução em Lisboa, atravez das barreiras fiscaes, haviam tomado tal incremento que os proprios organisadores do movimento se admiravam da cegueira da policia. As reuniões secretas succediam-se vertiginosamente. Havia como que a ancia de chegar ao fim da jornada revolucionaria, fazendo d'um só folego a corrida heroica para o triumpho ou para a derrota.




CAPITULO III

Os republicanos e os dissidentes organisam o 28 de Janeiro


Quem, a dentro do partido democratico, teve a iniciativa da projectada revolta? Não é facil responder, porque ella estava desde muito no animo dos mais fogosos caudilhos d'esse partido. Entretanto, podemos conjecturar que, sabendo João Chagas dos trabalhos revolucionarios que alguns dos seus companheiros de lucta já tinham annos antes encetado, procurasse aproveital-os, realisando ao mesmo tempo a approximação dos republicanos e dos dissidentes, que a dictadura franquista hostilmente arredara do contacto do rei Carlos. Os primeiros passos para o movimento foram dados em casa do visconde da Ribeira Brava, de todos os amigos do sr. Alpoim o que então se mostrava mais inclinado a abandonar a monarchia. Conta elle o seguinte:

«Quando se tinham malogrado todos os esforços dos partidos para subjugar o despotismo do rei e de João Franco fui procurado pelo infeliz Alberto Costa, que me propoz tomar eu a iniciativa da revolta. Hesitei, objectando que para isso me faltavam os elementos populares, que estavam todos no partido republicano, e que sósinho nada poderia fazer.

« – E se você se entendesse com o João Chagas? – retorquiu Alberto Costa.

« – N'esse caso estou certo de que fariamos alguma coisa de importante.

«Ficou logo aprazado um encontro com João Chagas, que se efetuou n'esse mesmo dia, a dez de julho (1907) se não me engano, á meia noite, junto do coreto da Avenida. Ahi assentámos nas linhas geraes do movimento revolucionario, resolvendo-se nomear um comité organisador. A primeira reunião effectuou-se no dia seguinte, em minha casa, comparecendo a ella Affonso Costa, Alexandre Braga, Egas Moniz, França Borges, Mascarenhas Inglez, Marinha de Campos e Alpoim, tendo-se depois d'isso realisado ainda uma entrevista entre José d'Alpoim e Antonio José d'Almeida.»

Na mesma reunião e em posteriores conferencias escolheram-se, para a execução do plano revolucionario, dois comités: o civil composto pelos srs. Bernardino Machado e Antonio José de Almeida, membros do Directorio, e mais João Chagas, Affonso Costa e Augusto José da Cunha; o militar formado por Candido dos Reis, José de Freitas Ribeiro, José Carlos da Maia, Xavier Barreto, Sá Cardoso e Alvaro Pope. O primeiro cuidado d'estes comités foi o de aggregar os elementos que andavam dispersos mas que se conservavam fieis á causa da democracia os que restavam da mallograda revolta de 31 de Janeiro e se tinham preparado para o movimento de 1896, que mal chegara a esboçar-se.

Houve divergencia entre os mais evidentes dos revolucionarios por causa do plano a executar. Uma minoria, radicalissima na maneira de proceder, não contrariava o projecto, delineado ao de leve, de se atacar o paço das Necessidades e forçar o rei Carlos a um embarque consecutivo para o estrangeiro. Os restantes queriam simplesmente limitar a revolta á eliminação da monarchia com o menor dispendio de violencia. Por fim, triumphou a parte moderada dos organisadores do movimento e deliberou-se, em ultima analyse, fazer explodir a Revolução durante a ausencia do monarcha em Cascaes, mesmo para que a sua estada em Lisboa não influisse de qualquer modo na attitude que muitos dos officiaes, de politica indefinida, por certo, adoptariam. Por outro lado, alguns dos revolucionarios receiavam que um acto violento dirigido contra D. Carlos creasse, no extrangeiro, difficuldades á futura Republica. Assentou-se, portanto, em definitivo, que o movimento rebentaria quando o rei estivesse fóra da capital. A Revolução, uma vez triumphante, prenderia em Cascaes o soberano e a familia, e obrigal-os-hia a sahirem do paiz.

Mas, os trabalhos dos conspiradores alongaram-se mais do que seria licito calcular, e, como a familia real regressasse, no entanto, a Lisboa, houve precisão de concertar outro plano, que comprehendia, novamente o assalto ao palacio das Necessidades. N'esta altura do complot, um dos officiaes que os revolucionarios suppunham inteiramente do seu lado commetteu uma traição e o plano soffreu grandes modificações, recomeçando-se, n'outras bases, os trabalhos indispensaveis á sua realisação pratica. Appareceram ainda difficuldades de diversa natureza, contrariando fortemente a propaganda nos quarteis e o aliciamento de elementos civis, e a situação só melhorou quando a familia real partiu para Villa Viçosa, «simplificando bastante o programma pela suppressão d'um dos seus numeros mais difficeis e delicados…»

O plano da campanha, urdido por um official do estado-maior, passou então a ser cuidadosamente preparado. A cidade foi dividida em diversos sectores, comprehendendo cada um d'elles os pontos a atacar, isto é, os pontos d'onde se calculava que surgiria, no momento supremo, a defesa do regimen combalido. Cada quartel da municipal e de cavallaria era cercado de uma verdadeira rede de dynamitistas que, conjugando a sua acção com outros grupos de populares armados, procurariam impedir a sahida, para a lucta, das forças declaradamente monarchicas. As esquadras de policia tambem deviam soffrer o ataque dos populares; os officiaes de marinha e outros elementos revolucionarios tomariam conta do D. Carlos e do quartel de Alcantara; a carreira de tiro em Pedrouços e todos os pontos onde era relativamente facil encontrar armamento seriam egualmente visados pela acção dos revoltosos.

Para o assalto aos quarteis das forças que constituiam propriamente a guarnição de Lisboa, João Chagas organisára vários grupos de 30 a 60 homens de todas as classes – medicos, agronomos, engenheiros, advogados, empregados do commercio, etc. – grupos que se distinguiam uns dos outros por um emblema representando uma flor: – uma rodela de cartão aguarelado que o revolucionario pendurava no forro do casaco e que só seria visivel quando elle o abrisse perante um companheiro ou um chefe. Temos deante de nós varias d'essas rodelas e uma nota escripta a lapis pelo punho de João Chagas, que descrimina assim a formação das forças:



Malmequer, 60 homens.

Rosa, 30.

Violeta, 40.

Cravo, 60.

Saudade, 20.

Crysanthemo, 40.

Papoula, 30.


Total, 280 assaltantes para os quarteis das forças da guarnição. Cada grupo tinha previamente conhecimento do regimento onde, no momento opportuno, devia operar: isto com o fim de conhecer, tambem antecipadamente, o quartel onde prestaria a sua coadjuvação. Os melhores d'esses grupos eram os dirigidos pelo dr. Carlos Amaro, Sá Pereira, Saul Simões Serio e Paulino de Freitas. Estavam armados de revolvers e pistolas automaticas com cincoenta cargas cada.

Note-se incidentalmente que, n'essa época de preparação revolucionaria, a propaganda entre militares conquistara talvez mais adeptos do que annos depois, para o movimento que implantou a Republica. O numero de officiaes adherentes era, sem duvida, maior. A dictadura franquista despertára mais odios e sêde de liberdade do que a inacção, quasi absoluta, do gabinete Teixeira de Sousa. A teia revolucionaria era, innegavelmente, mais complicada. Comtudo, apesar das precauções tomadas e da adhesão de elementos prestigiosos, a opinião auctorisada não agourava bem do emprehendimento, exactamente por lhe parecer que havia demasiada somma de creaturas na posse do grande segredo. É certo que na constituição dos grupos de populares houvera o cuidado de erguer como que uns compartimentos estanques, para impedir que, uma vez um d'elles invadido pela onda da traição, os restantes se afundassem no mesmo pelago. Mas não o é menos que a distribuição de armamento de toda a especie fôra feita com excessiva antecipação – o que já não succedeu para o movimento de 5 de outubro – e o corpo dirigente da organisação revolucionaria admittia, pelas suas variadissimas ligações, uma maior interferencia de indicações e de alvitres, nem sempre proprios a favorecer o triumpho.

A acção dos dissidentes na preparação do 28 de janeiro não ha duvida que foi larga e abundante em peripecias. Os dissidentes e aquelles dos seus amigos que entraram na revolta deram-lhe um apoio material efficaz. O sr. Alpoim, quer em sua casa, ou na famosa pastelaria da Avenida – conhecida como um baluarte dos monarchicos revoltados – ou ainda na casa do visconde da Ribeira Brava, prodigalisava-se em insistente propaganda contra o regimen, a dictadura Franco e até contra a existencia do monarcha dos adeantamentos. Para o sr. Alpoim, como de resto para toda a gente que ousava falar com franqueza, a franqueza permittida pelo dictador, a suppressão de D. Carlos seria o golpe decisivo n'uma situação como, então, se supportava, de intoleravel arbitrio, de rancor, perseguição e delação ignobil. Não quer isto dizer que o chefe da dissidencia progressísta aconselhasse a morte do rei como um dos principaes numeros do programma dos revoltosos… Mas, encarando-a como a solução do problema a liquidar, traduzia as aspirações de muitos patriotas.

O sr. Alpoim, tendo palpitado o monarcha, convencera-se de que elle ligara indissoluvelmente o seu destino ao destino politico do dictador. O governo João Franco deslumbrara o espirito do rei Carlos, mostrando-se-lhe como o unico capaz de confeccionar, para o livro do seu reinado, uma pagina de certo relevo historico. O dictador era o ideal para um soberano que, vivendo até então pouco menos que alheiado da politica interna, resolvera d'um momento para o outro, assim como quem acorda d'um sonho, interessar-se assiduamente pela mesma politica. Eliminado o dictador, D. Carlos, se quizesse proseguir no seu proposito de modificar o regimen da successão ministerial, teria fatalmente que chamar ao poder o estadista ou estadistas que combatiam fortemente o rotativismo.

Não é desasisado suppôr que só com esta esperança é que o sr. Alpoim não adheriu desde logo á Republica. Veiu para a Revolução para trabalhar e trabalhou. Mas, no fundo do seu pensar, talvez se convencesse de que o movimento daria apenas em resultado o apeiar o governo João Franco do pedestal que o monarcha lhe erguera nas columnas do Temps. De resto, o sr. Alpoim confessou isso mesmo mais tarde n'estas linhas que recortamos do seu antigo órgão na imprensa:

«O chefe dissidente, e outros seus correligionarios – não a dissidencia progressista como partido – resolveram então collaborar com os republicanos no intuito de aniquilar o regimen dictatorial que assoberbava o paiz. Vinha a Republica? Tudo era preferivel, tudo, fosse o que fosse, á continuação d'este estado de coisas que era um opprobrio nacional.»

Decidido a trabalhar, tomou contacto com os chefes republicanos e avistou-se com os elementos sem rotulo partidario que apoiavam o movimento. Contribuiu immenso, e mais os seus amigos, para a compra de armamento – e d'ahi o espalhar-se um boato insubsistente a que em breve nos referiremos. A sua interferencia na collecta de fundos para o cofre revolucionario exerceu-se com devotamento digno de registo. Os seus amigos auxiliaram bastante a introducção do armamento em Lisboa e a larga distribuição que d'elle se fez por diversos pontos estrategicos. E se no dia primitivamente marcado para a explosão da revolta não a iniciou com um arranco heroico sobre o ninho da realeza, é porque lhe ponderaram a conveniencia de collaborar antes n'outro episodio não menos importante. Por si, satisfazendo apenas o seu desejo ardente, o sr. Alpoim teria defrontado, com as armas na mão, o monarcha provocador.

Dias antes do 28 de janeiro, Affonso Costa e João Chagas tentaram filial-o no partido republicano. N'uma reunião em casa do visconde da Ribeira Brava, a que tambem assistiu o dissidente Egas Moniz, fizeram-lhe vêr que a hostilidade do paço contra o grupo politico da sua chefia era invencivel e que, marchando elle para a Revolução, de mãos dadas com os republicanos, forçoso se lhe tornava ingressar abertamente na democracia. O sr. Alpoim, ás repetidas e persuasivas instancias que lhe dirigiram n'esse sentido, respondeu:

«Que, sendo chefe d'um grupo politico, que tão dedicada e lealmente o havia acompanhado sempre e onde havia um grande numero de individuos com idéas adversas á Republica, não podia, sem praticar uma deslealdade, abandonar esses amigos; que á causa da Revolução dava a sua pessoa; o seu filho e o seu dinheiro. Estava prompto no momento da lucta a occupar o ponto mais perigoso que lhe fosse distribuido; que nada queria, nem pedia, como recompensa, á Republica, mas que não alterava a sua situação politica.»

A seguir, perguntou ao visconde da Ribeira Brava o que tencionava fazer.

– Eu, meu caro Alpoim – retorquiu-lhe o visconde – já não volto para traz.

O inicio dos preparativos para o 28 de janeiro data de julho de 1907. Um mez depois, Machado dos Santos, que collaborava com os officiaes de marinha Serejo Junior e Soares Andréa n'um acanhado projecto de acção anti-monarchica, foi abordado por Marinha de Campos e Mascarenhas Inglez, que o convidaram a tomar parte no grande movimento organisado pelos republicanos e os dissidentes. A principio desconfiado, Machado dos Santos não tardou a acceder e em setembro, n'uma reunião effectuada no escriptorio de Alexandre Braga, foi apresentado a João Chagas e Candido dos Reis, que com aquelle illustre causidico, Serejo Junior, Marinha de Campos e Alberto Costa, discutiam então a necessidade de chamar o exército em auxilio da conjura. No relatorio que o triumphador da Rotunda publicou em 1911 encontram-se estas passagens que pormenorisam essa reunião:

«Pad-Zé queria ir com 50 homens atacar a cidadela de Cascaes; Marinha de Campos desejava sósinho agarrar a monarchia pelo pescoço e apertar-lhe os gorgomilos. Candido dos Reis com a sua evangelica paciencia deitava agua na fervura, aconselhava paternalmente a moderação e João Chagas, contando os insuccessos de anteriores tentativas revolucionarias, de que havia sido alma, dizia, com a auctoridade da sua experiencia, que sem o exercito nada se devia tentar. «Mas o exercito é nosso!» disse eu ingenuamente á illustre assembleia. Os sorrisos que obtive em resposta convenceram-me do contrario.

«Chagas, o eterno sacrificado das revoluções frustradas, Chagas que, melhor do que eu, melhor do que Candido dos Reis, conhecia os nossos navios de guerra, por n'elles ter sido hospedado pela monarchia, Chagas disse-me que não tivesse illusões, que era necessario trabalhar e trabalhar muito para que alguma coisa se fizesse, e alvitrou uma immediata convocação dos officiaes do exercito, para se saber se estavam dispostos a sahir comnosco para a rua. Candido dos Reis encarregou-se de os reunir e essa reunião ficou assente que se effectuaria tres dias depois, para se conseguir que ella fosse bastante concorrida afim de lhes dar uma impressão de força, que, reunidos em pequeno numero, os officiaes não podiam ter.

«Chamando de parte o almirante, perguntei-lhe se os officiaes da marinha com que contava estavam em commissão de embarque ou no quartel; respondeu-me que poucos, muito poucos, estavam n'essa situação e que d'um momento para o outro podiam ser transferidos e postos na condição de nada nos poderem valer. Perguntei-lhe então se concordava na organisação de fortes nucleos de marinheiros nas differentes unidades, afim de podermos empregar os nossos officiaes no caso do governo os deslocar das situações que tinham.

«Respondeu-me que isso seria optimo, mas que não via quem se quizesse encarregar d'essa organisação, que achava perigosa para a pessoa que a tentasse e que podia expôr o movimento a ser delatado pelo primeiro tagarella de camisola de alcaxa que aparecesse. Disse-me egualmente que via inconvenientes pelo lado da disciplina, porque se o movimento não lograsse exito havia de ser difficil mantêl-a a bordo e para a conseguir muitos teriam que soffrer; comtudo concordava em que sem os fortes nucleos de marinheiros nos diversos navios nunca a Revolução se poderia levar a cabo.

«Ficou assente entre os dois que eu me incumbiria d'isso, declarando ao almirante que me parecia que nenhum movimento os marinheiros deveriam fazer sem a presença d'um official, limitando-se elles a passarem a receber as ordens do official ou officiaes que fossem a bordo ou ao quartel a uma hora combinada…»

D'ahi a dias, Machado dos Santos encetou a tarefa de alliciamento e, dedicando-se especialmente aos frequentadores do bairro de Alcantara, conseguiu juntar oitenta marinheiros, devotadissimos, que, por seu turno se abalançaram, á conquista de novos camaradas, attrahindo-os cuidadosamente á conjura.




CAPITULO IV

A policia descobre um dos fios do «complot»


Emquanto a preparação do combate proseguia sem desfallecimentos por parte dos republicanos, dos dissidentes e d'uma fracção dos libertarios, a policia, reforçada com uma nova remonta de espiões, espreitava anciosa a agitação que percebia na sombra. De vez em quando, julgava apanhar uma nesga de luz e ficava amarrada por instantes a um rasto sem valor. Para não perder de todo o tempo e o feitio, vigiava impertinentemente as creaturas em evidencia no partido republicano, sem seleccionar de entre ellas as que conservavam realmente n'essa occasião estreitas ligações com os revolucionarios. Marchava ás apalpadelas. Embasbacava ante o menor grupo de transeuntes pacificos. Percorria os cafés, disfarçada em padres, mestras, mendigos e moços de esquina, escutava ás portas, farejava o ambiente e esquecia-se exactamente de topar com um dos muitos caixotes de bombas que, em pleno dia, e ás costas de gallegos, se entrecruzavam nas ruas de Lisboa.

Alcantara, os Loyos e até o Chiado, estavam minados de explosivos. No Bairro Alto havia depositos d'armas que despertariam a inveja d'um arsenal. Conspirava-se por todos os cantos, segredavam-se instrucções, as reuniões secretas de officiaes tornavam-se mais frequentes, as lojas dos armeiros esvasiavam-se como por encanto. Nada faltava para o bom exito. De tudo se cuidara, até dos serviços de ambulancia e manutenção. As offertas affluiam de todos os lados. (Um benemerito poz á disposição dos conspiradores uma carroça cheia de chouriços).

A febre revolucionaria não diminuia. Approximava-se a data solemne. Alguns dias mais e sobre Lisboa cahiria durante horas uma verdadeira chuva de fogo…

É n'esse momento critico da organisação da revolta que a policia tem um alegrão. Apanha, quasi sem dar por isso, um rasto de certa importancia e desata a exploral-o com uma furia indescriptivel. Effectuam-se as primeiras prisões de elementos revolucionarios conhecidos, tentando-se assim fazer abortar, pela clausura dos chefes, o movimento projectado. Contemos pormenorisadamente como isso se deu.

Alfredo Leal fôra incumbido de adquirir armamento para os 280 assaltantes dos quarteis, missão de que se desempenhou rebuscando as casas de penhores, armeiros, etc. Como as ordens da policia eram apertadas, fez essas compras pretextando umas encommendas da provincia para confecção de panoplias e, ainda com o intuito de não despertar desconfianças, munia-se sempre de dois recibos, um com desconto e outro sem desconto, que era o destinado ao freguez. O dinheiro para esse armamento forneceram-no, além do Directorio, José Relvas, que contribuiu com uma importante quantia, o africanista João Baptista de Macedo e outros individuos dedicados á boa causa.

Não tardou, portanto, que os armazens Leal, da Rua de Santo Antão, ficassem transformados em arsenal, onde Alvaro Pope, João Chagas e José Freitas Ribeiro analysaram detidamente o material destinado á revolta. Esses armazens já tinham ao tempo uma fama revolucionaria, porque desde muito eram o rendez-vous dos insubmissos. Os conspiradores conheciam as suas salas pelas salas dos passos perdidos… Para o movimento de 28 de Janeiro tambem serviram quasi diariamente ás reuniões de officiaes do exercito de mar; para lá enviou o dr. Alberto Costa duas caixas de bombas que mais tarde sahiram, a pau e corda, dos armazens para o consultorio do dr. Gonçalves Lopes; ali se reuniram diversos cabos e praças da guarda municipal aquartelada proximo das Necessidades, que faziam então causa commum com os revoltosos, e os sete grupos de 40, 60 e 30 homens destinados ao assalto aos quarteis. A essas reuniões assistiam sempre João Chagas, Alvaro Pope e Alfredo Leal. O proprietario dos armazens chegou a mandar fazer caixas de embarque e n'esse estabelecimento se encaixotaram as armas dos grupos populares, que sahiram para o seu destino levando esta marca: Telmo Bandeira, S. Thomé. E a policia, sempre ás aranhas…

Como descobriu ella, afinal, o tal fio da conspiração a que atraz alludimos? D'este modo: ao chefe d'um dos grupos populares, Victor de Sousa, aggregou-se mais um combatente, um policia, seu compadre e amigo, de serviço, ao que parece, á porta do dictador. Iniciou-o no mysterio, indicando, ao mostrar-lhe as armas já em sua casa na rua Luz Soriano, que João Chagas e Alfredo Leal eram os incumbidos especialmente d'essa distribuição de alta responsabilidade. Na madrugada seguinte era preso Victor de Sousa. Alfredo Leal tinha ainda nos armazens grande quantidade de armamento por entregar. Apesar do segredo em que a policia envolveu aquella captura, Affonso Costa e João Chagas souberam-na a tempo e pelo telephone avisaram o proprietario dos armazens para que puzesse a salvo as armas restantes. Após o aviso, o visconde da Ribeira Brava correu á rua de Santo Antão. Os armazens estavam cercados pela policia. Era urgente proceder com habilidade e frustrar os designios do juizo de instrucção.

Os armazens teem uma portinha que deita para as escadinhas de S. Luiz em frente da entrada do Coliseu dos Recreios. A sahida das armas devia ser feita por essa portinha, caso a policia não houvesse dado por ella… como não deu. As armas foram enroladas, em tapetes e, constituindo tres fardos, Alfredo Leal, seu filho José Saragga Leal e um criado de confiança, transportaram-nas á calçada de Sant'Anna, onde o visconde da Ribeira Brava as esperava mettido n'um coupé, para as ir occultar provisoriamente na sua casa, em plena Avenida da Liberdade. O material da revolta salvou-se, mas na madrugada seguinte Alfredo Leal era preso no Dafundo. João Chagas, que na vespera jantara com elle na Charcuterie Française, cahira em poder da policia ao sahir d'esse estabelecimento da rua Nova do Carmo. Escusado será dizer que as buscas emprehendidas nos armazens da rua de Santo Antão não deram o mais insignificante resultado. No emtanto, o dictador fazia espalhar pouco depois que a policia tinha ali encontrado armas e bombas em abundancia…

N'esta altura da narrativa cabe referir que muitos dos individuos, tanto da classe civil como da classe militar, implicados na conspiração, só foram sobejamente conhecidos do publico quando, insistindo na conjura, se misturaram á organisação da revolta de 4 e 5 de outubro. Outros houve, em compensação, que, vendo mallogrados os esforços applicados ao 28 de janeiro, abandonaram definitivamente os trabalhos revolucionarios e foram surprehendidos pela proclamação da Republica n'um alheiamento completo da agitação politica.

O almirante Candido dos Reis, cuja acção no complot de 4 e 5 de outubro teve uma evidencia excepcional, garantindo, além de tudo o mais, pela sua figura de destaque, a adhesão de diversos officiaes do exercito de mar e terra, no 28 de janeiro sobresahiu por uma forma inolvidavel. Sob as suas ordens é que devia dar-se então o assalto ao S. Gabriel e ao quartel dos marinheiros; com elle conferenciaram muitas vezes o sr. Alpoim e outros elementos da revolta; para elle estava naturalmente destinado um papel preponderante, muito embora da sua acção individual não dependesse, como de facto não dependia, pôr em andamento, com determinado signal e no momento dado, o complicado mechanismo da revolução; com elle estavam promptos a exercer acção decisiva alguns officiaes dos quaes ninguem suspeitava e que á quasi totalidade dos monarchicos pareciam indifferentes ou pelo menos indecisos.

Assim, a policia, prendendo alguns dos vultos do partido republicano que, a bem dizer, não occultavam as suas démarches revolucionarias, deixava exactamente fóra da rêde de perseguições uma boa somma de executores d'esse plano maduramente combinado e que, uma vez resolvido o ataque formal ás instituições monarchicas, eram capazes de, readquirindo certa autonomia, lançar fogo ao rastilho previamente preparado. É voz corrente que o movimento do 28 de janeiro esteve para explodir antes d'essa data e que n'aquelle mesmo dia soffreu de hora para hora diversos adiamentos. Pois não andará longe da verdade quem affirmar tambem que, se as prisões effectuadas na segunda quinzena de janeiro embaraçaram fortemente a eclosão do movimento, só uma intervenção muito especial é que impediu que, apesar de tamanho contratempo, a tentativa de revolta se esboçasse com uma nitidez assombrosa.

Por mais do que uma vez, quando nos dirigentes da conspiração lavrava, não diremos desanimo, mas comprehensivel reluctancia em impellir para o campo de batalha a grande massa organisada dos revoltosos, houve necessidade de refreiar com energia os impetos generosos de creaturas ardentes, illuminadas, que não consentiam um minuto de reflexão sobre a opportunidade da explosão revolucionaria. Essas creaturas tudo sacrificavam ao desejo irreprimivel de combater a monarchia. E uma d'ellas, ponderando-se-lhe um dia que, estando presos em quarteis da municipal elementos de valor não só no partido republicano como na organização do movimento, a menor agitação extemporanea, a menor revolta imprudente, provocariam, sem duvida, a sua condemnação á morte, uma d'ellas, repetimos, depois de pesar o argumento, replicou sem commover-se:

– Que importa!.. São mais tres ou quatro cadaveres!..

Mas, retomemos o fio da narrativa. Presos e incommunicaveis dois dos chefes da revolta, acompanhados d'outros individuos de menores responsabilidades na empresa, não occorreu, como seria logico, uma paragem na sua organisação. A idéa predominante, n'essa occasião, não foi a de sustar os preparativos revolucionarios. Foi exactamente a opposta: foi a de se dar pressa ao rebentar da bomba, porque todos ou quasi todos se convenciam de que o dictador não perdoava aos inimigos das instituições monarchicas. Para mais, n'essa altura do complot, o governo João Franco, ainda que não possuisse na sua mão todos os fios do trama revolucionario, sabia muito bem, por informações d'uma relativa precisão de pormenores, que o movimento não era limitado a uma simples insurreição de quartel nem a uma manifestação armada de meia duzia de visionarios.

O governo João Franco sabia perfeitamente que na conjura entravam tropa e a classe civil, que, se a primeira estava armada, a segunda não sahiria á rua desprevenida e que a monarchia vivia sobre a ameaça constante da fornalha republicana, para a qual a dictadura deitara o melhor do seu combustivel.

Mas se o governo João Franco sabia tudo isto que o levava a acautelar-se o melhor possivel contra a probabilidade de gravissimos acontecimentos, ignorava, por outro lado, a fé que dominava o povo alliciado para a revolta. O governo João Franco não fazia caso nenhum d'esse povo, calculando erradamente que a massa soberana e anonyma só se moveria tendo á frente os seus grandes idolos partidarios. Ignorava absolutamente a importancia e a valentia d'essa massa e de quanto ella é capaz, lançada decididamente no caminho da reacção ao despotismo. O povo sem Antonio José, João Chagas, etc. – pensava o dictador – não se atreve a protestar com as armas na mão. Uma vez presos esses homens, os revolucionarios civis absteem-se da lucta e ficam só em campo os militares, que uma serie de medidas urgentes e rigorosas recolhe egualmente á inacção e ao silencio. Assim pensava o governo João Franco alguns dias antes do 28 de janeiro e assim tinha pensado o juiz de instrucção criminal, na parte referente a fabricantes de bombas, quando a explosão da rua do Carrião lhe entrou pela porta dentro e desauctorisou, por completo, a famosa lista negra do Cyro. Um e outro viviam redondamente enganados.




CAPITULO V

Marca-se a revolta para as 4 da tarde do dia 28


A prisão do dr. Antonio José de Almeida contribuiu bastante para que a febre revolucionaria augmentasse de modo consideravel. O dr. Affonso Costa, que, absorvido pelo processo Djalme, andava um tanto afastado da preparação da conjura, voltou a ella ainda com mais ardor. Os conspiradores passaram a reunir-se n'uma casa da rua do Desterro, pertencente ao sr. Luiz Grandella, fez-se nova acquisição de armamento (parte d'elle fornecida pelos dissidentes) ultimaram-se as disposições de ataque e de conquista e a data de 28 passou a ser mais anciosamente esperada do que as que a tinham precedido na agenda dos revoltosos. O comité dirigente dos trabalhos era então composto de Affonso Costa, visconde da Ribeira Brava, Alvaro Pope, Marinha de Campos, Ernesto Pope e Arthur Cohen. Á casa da rua do Desterro foram dezenas e dezenas de pessoas receber armamento, instrucções, etc. A senha de entrada era Jasmim.

Não é facil, por variadas razões, reproduzir, na actualidade e na integra, o plano do movimento. Já decorreram sobre elle alguns annos e estamos certos de que n'esse projecto muita coisa havia que, a ser cumprida rigorosamente, resultaria em fraco beneficio para o exito do complot. Na revolta de 4 e 5 de outubro cremos mesmo que se emendou a mão em varios pontos considerados essenciaes no plano do 28 de janeiro. A experiencia ainda é, afinal, a grande mestra da vida.

Mas se não podemos dar muitos pormenores sobre o projecto da revolta, da qual derivou logicamente o regicídio, é-nos licito, no emtanto, fixar aquellas das suas bases que são do conhecimento da maioria dos implicados na conspiração. Em primeiro logar, o exercito de terra e mar só se sublevaria depois de vêr feitos certos signaes que lhe communicariam a prisão do dictador João Franco. Quer dizer: a grande orchestra do complot não devia principiar o concerto sem que a batuta do regente se movesse a romper a marcha…

A prisão do dictador devia ser levada a effeito por um grupo civil entre as 4 e as 6 da tarde, quando elle, sahindo de casa, no alto da Avenida, se dirigisse para o Terreiro do Paço. Preso, conduzil-o-hiam para bordo d'um vapor de pesca, o Dinorah, d'onde o transportariam depois para qualquer navio de guerra revoltado. Entretanto, Machado dos Santos e Serejo Junior assaltariam o corpo de marinheiros; Soares Andréa tomaría o Arsenal de Marinha, auxiliado pela respectiva guarda e um grupo civil; Candido dos Reis iria a bordo do S. Gabriel, onde o 1.º tenente Branco Martins teria á sua disposição grande parte da guarnição do navio e muitos milhares de cartuchos; o visconde da Ribeira Brava, com um grupo civil bem municiado, occuparia o Arco da Rua Augusta e todas as platibandas dos ministerios que dominam as ruas da Prata, Augusta e Ouro e embocaduras das ruas da Alfandega e Arsenal.

No ataque aos navios de guerra entraria, por conveniencia dos marinheiros revolucionarios, o 2.º tenente de marinha Bernardo Alpoim, que fizera n'alguns d'elles activa propaganda contra a dictadura franquista. A sahida das forças da municipal aquarteladas no Carmo estava cortada por uma rede de dynamitistas installados no Sacramento (no Club dos Caçadores), na calçada do Duque, etc. A propria egreja do Sacramento, onde os revolucionarios entrariam usando d'uma chave falsa, serviria tambem a impedir que os janizaros do antigo regimen viessem cá para fóra espingardear o povo. Proximo dos outros quarteis da municipal e das esquadras de policia havia analogas disposições de ataque.

Os dissidentes tinham um logar marcado em especial: o elevador da Bibliotheca. Aqui reunidos desde o começo da tarde, logo que pelo largo do Pelourinho passasse um automovel conduzindo o dr. Affonso Costa, deviam correr, armados, para a camara municipal, apossar-se d'ella juntamente com aquelle estadista e outros individuos que o acompanhariam e uma vez no edificio, proclamariam um governo provisorio. Essa passagem do automovel conjugava-se com um signal dado no Tejo, que indicaria a execução immediata d'outras manobras revolucionarias. Outro grupo apossar-se-hia dos telegraphos e da rede telephonica. Em summa, mal que fosse dada ordem para o rebentar do movimento, Lisboa vêr-se-hia litteralmente enleiada n'um combate renhido, a menos que os defensores da monarchia resolvessem momentaneamente não resistir aos revoltosos.

A prisão do dictador obstaria a que elle, sahindo da sua casa de residencia, conseguisse communicar com os elementos militares de que dispunha ou com qualquer dos seus collegas no gabinete. João Franco, para que a sua acção não entorpecesse o que fôra planeado, devia soffrer, acto continuo ao inicio da revolta, uma immobilisação rigorosa. Não é facil asseverar até onde iria essa immobilisação, caso ella se tivesse produzido; mas a verdade é que no espirito de todos havia a noção clara de que o menor passo dado pelo dictador fóra das vistas dos revolucionarios transtornaria, sem duvida, o exito da causa.

Na noite de 26 de janeiro era enorme a affluencia de conspiradores á casa da rua do Desterro. De repente chega um aviso de que o edificio estava cercado pela policia. Fecham-se todas as portas e Affonso Costa, tomando a direcção da defeza, resolve resistir aos assaltantes, exclamando no auge do enthusiasmo:

– Vamos a isto!.. Será o inicio da Revolução!

Dentro de breves instantes verificou-se que o aviso não tinha fundamento. Mas tornava-se necessario proceder com cautela e marcar definitivamente a hora para o rebentar da revolta no dia 28. Escolheu-se as 4 da tarde por ter a vantagem de coincidir com o maior transito das ruas de Lisboa e a menor vigilancia nos quarteis da guarnição.

Na noite de 27, os conspiradores receberam na casa da rua do Desterro uma carta anonyma, prevenindo-os de que se não abandonassem immediatamente o edificio seriam denunciados á policia. A carta era, evidentemente, d'um visinho medroso… Affonso Costa manda alugar outra casa na rua de S. Julião, n.º 32 e, vestindo a farda de Marinha de Campos, percorre varias ruas da cidade e entra em diversos portaes, sem que a policia dê por tal…

«Essa noite (a de 27) – revelou-o mais tarde o visconde da Ribeira Brava – foi tremenda de sensações! Alvaro e Ernesto Pope e Arthur Cohen desenvolveram uma actividade inexcedivel. Os automoveis giravam constantemente, percorrendo os postos, levando ordens e dando a ultima demão nos preparativos do movimento. Essa noite, eu e Affonso Costa passamol-a sem dormir, sentados os dois a uma meza, escrevendo em pedaços de papel determinações que eram enviadas a todos os que dirigiam grupos de combate, e ao mesmo tempo dando indicações para o fornecimento de armas, que se encontravam-no deposito principal. Sobre a madrugada estavamos gelados. Entre essas ordens ha uma interessante para a historia da Revolução. É a que enviámos a José d'Alpoim, concebida nos seguintes termos:



«O sr. José d'Alpoim, com os seus amigos, irá postar-se no elevador da Bibliotheca, para d'ali, na companhia de Affonso Costa e do povo assaltarem a Camara Municipal e ahi proclamarem a Republica. Pelo «comité» revolucionario, Affonso Costa e Ribeira Brava».


Approximava-se o momento decisivo.




CAPITULO VI

A «ratoeira» do elevador da Bibliotheca insuccesso do «complot»


Todo o dia 28, desde as primeiras horas da manhã, foi passado n'uma anciedade enorme indescriptivel. Os republicanos e os dissidentes, ainda então á solta, sabiam perfeitamente que a policia os não desfitava e que era uma questão de minutos, talvez, a perda da sua liberdade.

Proximo das 11 horas da manhã, o sr. Alpoim, que estava no centro da dissidencia progressista, recebeu a ordem revolucionaria n'outro logar transcripta, e ás 2 da tarde foi para o elevador da Bibliotheca com os srs. João Pinto dos Santos, Egas Moniz, Cassiano Neves, Batalha de Freitas e outros mais. Encafuaram-se todos n'um cubiculo, tendo á porta uma vedeta que se revesava regularmente. Das 2 ás 4, nada occorreu ali de anormal. Ás 4, os dissidentes, já então acrescidos de Marinha de Campos e Alvaro Pope, esperaram que o chefe da grande orchestra movesse a batuta. N'outros pontos de Lisboa, a scena era quasi identica. Estava tudo a postos. Faltava apenas o signal combinado…

Ao cahir da tarde, como se espalhasse o boato de que o movimento tinha de soffrer novo adiamento de horas, Marinha de Campos, Alvaro Pope e o visconde de Pedralva foram de automovel percorrer os quarteis, transportando ao mesmo tempo armas e munições. Pouco depois, entrou no elevador o tenente-coronel Amancio de Alpoim e communicou aos conjurados que a revolta gorara e que era conveniente que abandonassem o edificio, pois a policia já lhes andava no encalço.

Debandaram. Mas d'ahi a uma hora voltaram novamente a reunir-se na casa do tenente Furtado, contigua ao elevador. Isso de nada serviu, porque Alvaro Pope, que ali appareceu já noite fechada, tinha informações identicas ás do tenente coronel Amancio de Alpoim. O movimento fôra mal succedido, as tropas tinham sido postas de prevenção, as guardas dos edificios publicos haviam sido reforçadas e o comité revolucionario ordenara definitivamente a retirada das forças mobilisadas. O dr. Egas Moniz, sabendo que o sr. Affonso Costa e o visconde da Ribeira Brava tinham entrado no elevador, foi ao seu encontro. N'esse mesmo instante, a policia principiava a cercar a casa do tenente Furtado. Era evidente que se preparava para capturar o sr. Alpoim e os seus amigos, como d'ahi a pouco capturou os srs. Affonso Costa, dr. Egas Moniz e visconde da Ribeira Brava. Impunha-se a fuga.

O porteiro do edificio, informado do caso, communicou ao sr. Alpoim a existencia d'uma sahida pelo lado da calçada de S. Francisco. Os dissidentes aproveitaram-na, mas com dificuldade. A portinha era estreita e o corredor que ali conduzia era lobrego e cheio de teias de aranha. Os dissidentes desceram-no, cautelosamente, quasi roçando pelos policias, que começavam então a invadir as escadas. Em baixo, novas difficuldades e sobresaltos. A fechadura não servia desde annos e foi um trabalhão para fazer girar a chave. Na calçada de S. Francisco não havia um unico policia… O sr. Alpoim e alguns dos seus amigos foram ao centro dissidente, no largo das Duas Egrejas. Ali souberam das prisões effectuadas dentro do elevador da Bibliotheca. O visconde do Ameal encaminhou-se logo para a estação do Rocio, d'onde fugiu para Villa Franca e depois para Hespanha; o visconde de Pedralva imitou-o, e o sr. Alpoim, mettendo-se n'um trem, foi para casa. Mas, calculando que ia egualmente ser preso, passou, momentos antes da policia o procurar, para a residencia do sr. Teixeira de Souza e no dia seguinte, á noite, abrigou-se no palacete do sr. Henrique de Mendonça, d'onde se escapuliu, em automovel, para o paiz visinho.

Quasi á mesma hora em que os dissidentes abandonavam a casa do tenente Furtado, o dr. José d'Abreu corria ao Club dos Caçadores a convencer os revolucionarios que ali se encontravam da inutilidade do seu esforço, visto que o dr. Affonso Costa já tinha cahido nas garras da policia. Egual prevenção era feita aos grupos capitaneados pelo engenheiro Antonio Maria da Silva, professor Ferrão e tantos outros, que só esperavam o signal combinado para luctarem com energia, coragem e decisão em prol da liberdade politica. Depois, seguiram-se: o esboço de ataque á esquadra do Rato, onde morreu um policia, a fusilaria na rua da Escola Polytechnica e na rua Alexandre Herculano, a tentativa de ataque á esquadra do Campo de Sant'Anna, os incidentes de Alcantara, etc., emfim varios episodios que mostraram claramente aos profanos boquiabertos a extensão do movimento projectado.

Porque falhara? Já o dissemos: porque, dependendo em absoluto da prisão do dictador e não tendo o grupo civil a isso compromettido levado a cabo a sua missão, todos os elementos a postos se conservavam inactivos ou procuraram escapar com presteza á desforra do governo franquista. Todos… não dizemos bem. Affonso Costa, dentro do elevador da Bibliotheca e cercado pela policia, puxou d'um revolver para resistir até á ultima. O visconde da Ribeira Brava impediu-o de o desfechar. Machado dos Santos, Serejo Junior e Helder Ribeiro pensaram, como ultimo recurso, sublevar caçadores 2 e com esse regimento e o corpo de marinheiros tentar a libertação dos chefes revolucionarios encarcerados pela dictadura. Marinha de Campos alvitrou a sublevação da fragata D. Fernando e declarou-se prompto a fazel-o sem outro auxilio de militares. Machado dos Santos tentou tambem approximar-se das baterias de Queluz, onde os revolucionarios contavam um apoio fortissimo.

E descreve elle no seu relatorio de 1912:

«N'essa tragica noite tudo fugiu! O commandante audacioso d'um regimento teria salvo o seu paiz. As portas do quartel de marinheiros estavam completamente fechadas. Só o 2 de caçadores, que fôra reforçar a guarda do paço (onde estavam officiaes nossos) o poderia ter feito. O terror era grande na cidade. Encontro-me no Rocio com Candido dos Reis, Moura Braz e Tito de Moraes, se não estou em erro; dirigimo-nos ao Club Militar; o almirante Botto e um outro cujo nome me não occorre ouviram Candido dos Reis tentar leval-os para o nosso lado. João de Freitas Ribeiro gritava que uma dictadura nos não devia impôr um rei; os almirantes e um capitão de mar e guerra que lá estava (cujo nome tambem ignoro) ficaram mudos e quedos e nós retiramo-nos, ouvindo eu dizer a um dos tenentes que comnosco se encontravam:

« – Almirantes de borra, que nem para um acto de dignidade servem!..

«Candido dos Reis (ainda não era almirante) dirigiu-se a casa do dr. Bernardino Machado, levando-me em sua companhia; lá, falsas noticias nos chegam, e, entre ellas, duas de calibre superior; infantaria 5 tinha-se revoltado e tomado o Cabeço de Bolla e o 16 tinha-se batido contra a guarda e vindo para a rua. Candido dos Reis ordena-me que vá averiguar da verdade e, n'esse momento, chorando de raiva, lembro-me de ter sido menos correcto com o dr. Bernardino Machado, o qual muito paternalmente se não melindrou com isso, dizendo talvez no seu fôro intimo que eu era um visionario e que, como tal, era muito desculpavel o meu estado de exaspero. Ambos tinhamos razão; cada um via as coisas pelo seu prisma. Elle estava informado do retrahimento dos officiaes e eu imaginava que todos, até final, tinham obrigação de honrar os seus compromissos.»

Cumprindo a ordem de Candido dos Reis, Machado dos Santos encaminhou-se para Campo de Ourique. Em volta do quartel de infantaria 16, agglomeraram se muitos populares que affirmavam que o regimento tinha sahido, levando tudo adeante de si. Machado dos Santos, incredulo, approximou-se do edificio e perguntou á sentinella quem ia a commandal-o.

– Vá para o largo – foi a resposta que obteve.

E, quasi ao mesmo tempo, a guarda do quartel fez uma descarga de fusilaría, seguida de alguns tiros espaçados que obrigaram o triumphador da Rotunda a fugir até o largo da Estrella e depois até o Rato. Aqui formava pacatamente o 16, commandado pelo respectivo coronel. Mais adeante, em frente da casa do dictador, uma companhia d'aquelle regimento fraternisava com um esquadrão da guarda municipal. Não havia que duvidar; o 16 sahira do quartel, mas para defender a monarchia.

Em resumo; apesar do insuccesso palpavel da insurreição, é justo consignar que, na noite de 28 de janeiro, muitas das creaturas n'ella implicadas quizeram desobedecer á ordem do comité revolucionario e lançar-se corajosamente na revolta. Houve momentos de amargura, em que esses homens attribuiram a responsabilidade do adiamento, sine die, da insurreição, ás hesitações d'uns companheiros. Um grupo de sargentos de artilharia chegou mesmo a propor a sedição do regimento 1 como inicio immediato do movimento. Foi necessario que a vontade persuasiva de alguns se impusesse fortemente para evitar um copioso derramamento de sangue. O desejo de combater, a raiva que a contra ordem de revolução provocara n'um grande numero de conjurados eram tamanhos que só por milagre Lisboa não acordou a 29 de janeiro de 1908 mergulhada em horrorosa chacina.

Felizmente, não succedeu assim. O dictador, tendo-se-lhe desenrolado ante a vista turva uma boa parte da machinação revolucionaria, embrenhou-se, naturalmente, n'um amontoado de providencias de occasião. Primeiro que tudo, collocou a mordaça do estylo na bocca da imprensa; ordenou uma sahida de tropas que equivalia á declaração do estado de sitio, visto que ellas é que fizeram na madrugada de 29 a policia da cidade; ordenou rusgas; remetteu para os fortes grandes levas de presos; exhibiu a cavallaria da municipal em diversos locaes para aterrar, para suffocar o menor impulso de reacção; e no dia 29 preparou-se para completar a sua obra de repressão com o famoso decreto que o ministro Teixeira de Abreu levou a Villa Viçosa á assignatura do rei Carlos.

O governo franquista, não satisfeito com o ter lançado á tôa para diversas prisões todas as creaturas que a policia encontrou nas ruas da cidade, momentos depois do ataque á esquadra do Rato, aprestava-se a expellir pela barra de Lisboa todos os politicos, todos os cidadãos que, n'uma hora de legitima revolta contra um regimen de perfeita tyrannia, tinham ousado preparar a queda logica, indispensavel, do throno dos Braganças. Á atmosphera de pavôr immenso, que creara com essas perseguições arbitrarias – o governo civil de 28 para 29 encheu-se rapidamente de populares – queria sobrepôr uma verdadeira mortalha, embrulhando no famoso decreto todas as individualidades que elle suppunha, com bom ou mau fundamento, implicadas na conspiração.

Não o conseguiu, porém. E não o conseguiu, porque, mal o decreto foi publicado no Diario do Governo e antes que o dictador iniciasse a sua applicação feroz, outra força, e extraordinaria força, com que elle nunca sonhara, impediu a consecução dos seus designios. O regicidio travou a corrida vertiginosa para a selvajaria que o gabinete João Franco desfechara, pretendendo convencer o paiz de que assim cumpria uma missão patriotica. O regicidio… sim, foi o regicidio que evitou um authentico attentado brutal, anti-politico, libertou dos ferros da prisão alguns dos organisadores da revolta de 4 e 5 de outubro e impediu que muitos dos que implantaram a Republica em Portugal gemessem até essa data gloriosa no desterro abrasador…




CAPITULO VII

O regicidio – Quem disparou primeiro: Buiça ou Costa?


Chegámos ao ponto menos esclarecido d'este periodo historico. Desde a tarde de 1 de fevereiro de 1908, em que o rei Carlos e seu filho Luiz Filippe baquearam no Terreiro do Paço sob as balas desferidas por um reduzido numero de conjurados, tem-se dito tanta coisa sobre esse acontecimento que e licito suppôr que a verdade ainda permaneça envolta em denso veu. Não temos a pretenção de proferir a ultima palavra a tal respeito; mas ouvimos mais do que uma vez a pessoas bem informadas referencias ao caso, e essas referencias auctorisam-nos a considerar o regicidio sob um aspecto muito diverso do que aquelle por que é vulgarmente conhecido.

A propria policia, apesar de haver conseguido em dado momento obter um ou dois depoimentos razoaveis, nunca tirou a limpo a veridica historia do caso. E porque? Pela razão muito simples de que, tendo orientado as suas diligencias n'um determinado sentido, d'essa orientação nunca se desviou, apezar de errada. Teimou em ver no regicidio o acto de muitos conspiradores, longamente deliberado, e d'ahi não se afastou, embora o seguimento da instrucção do processo por mais de uma vez lhe indicasse o contrario. Persistiu em ver sobre as cabeças dos regicidas uma influencia especial, uma sugestão de politicos burguezes, sem coragem para perpetrarem o acto e confiando esse encargo a creaturas exaltadas, a libertarios decididos e energicos, e afinal, por aquillo que ouvimos ás pessoas as quaes já alludimos, nada d'isso existiu senão para ser utilisado no momento opportuno como uma arma de combate nas mãos dos reaccionarios.

Comprehende-se perfeitamente que, após o insuccesso do 28 de janeiro e o conhecimento das medidas ferozes preparadas pelo dictador, a opinião soffresse immediatamente um accrescimo de odio contra esse governo que não hesitava em immolar no altar da sua vingança diversos patriotas, cujo unico crime era o de se terem eximido, ou procurado eximir-se, ás suas prepotencias. Essa exaltação da opinião devia ter-se reflectido mais fundamente nos elementos revolucionarios que para o movimento de 28 de janeiro haviam prometido o concurso d'uma acção efficaz sobre os tyrannos do paiz. Quantos d'esses revolucionarios na madrugada de 31 e no periodo de horas que decorreu até ao desembarque da familia real no Terreiro do Paço, não pensaram n'outra coisa que aliás dominava o espirito até dos mais conservadores: a necessidade de se eliminar o dictador? Quantos? Essa eliminação estendiam-na naturalmente, sem hesitações, ao monarcha dos adiantamentos, porque a verdade é que para um revolucionario que pretendia supprimir uma situação de absolutismo não bastava, de certo, fazer desapparecer o braço executor do regimen de oppressão. Tornava-se imprescindivel liquidar a personificação individual d'esse mesmo regimen. Esta é a verdade e já explica, de certo, muitos dos episodios que caracterisaram a tragedia do Terreiro do Paço.

Quem passasse n'aquelle ponto da cidade na tarde de 1 de fevereiro, momentos antes do desembarque da familia real, ainda que totalmente alheio ao que d'ahi a pouco se ia desenrolar, teria a impressão de que a atmosphera, excessivamente carregada, por força desabaria em medonha tempestade. No Terreiro do Paço havia relativamente poucos curiosos a aguardarem aquelle desembarque. Em compensação, a policia, fardada e á paisana, mobilisara-se á valentona, circulando desconfiadissima por entre a assistencia.

O momento era solemne. As creaturas que palpitavam com frequencia a opinião desde o insuccesso do 28 de janeiro, calculavam com fundamento que alguma coisa se produziria, quanto mais não fosse uma manifestação platonica de desagrado ao monarcha e ao seu primeiro ministro. Outras, pelo contrario, não acreditavam n'uma explosão do odio popular e sorriam desdenhosamente perante as menores apprehensões. Acreditavam demasiado na indolencia do povo escravisado e no falso prestigio do soberano.

A policia, repetimos, a propria policia, que conhecia sufficientemente a extensão do trama revolucionario, que afinal se não desfizera ao mallogro da projectada revolução, tambem não tinha a noção do perigo que ameaçava o throno. Esse perigo, voltamos a insistir, não derivava simplesmente de uma combinação prévia feita entre meia duzia de homens desejosos de reintegrar o paiz na normalidade. Nascera e progredira na consciencia da maioria dos revolucionarios e até dos que não commungavam nos segredos da revolta. Era uma coisa acceite em principio e se toda a grande massa de povo soffredor possuisse a energia, a decisão prompta dos poucos homens que collaboraram no regicidio, este acontecimento teria sido da responsabilidade directa, não de cinco, como se affirma, mas de cincoenta, de quinhentos, de cinco mil…

Ha um relatorio policial, elaborado tempos depois da morte de D. Carlos e de seu filho, que pretende filial-a n'uma conjura mais radical nos seus meios de acção do que a que preparou o 28 de janeiro. Fala-se ahi de varios individuos, amigos do professor Buiça e de Alfredo Costa, como implicados n'essa conjura e até quasi se assegura que o grupo decidido a executar o monarcha e o principe comprehendia duas ou tres duzias de homens, escalonados desde o Terreiro do Paço ás Necessidades para a execução d'essa sentença lavrada em conciliabulo tenebroso.

Na realidade, para a nossa phantasia de meridionaes, não se percebia que um acto de tanta repercussão mundial fosse praticado sem o apparato scenico de muitas reuniões secretas, com as indispensaveis capas de embuçados e o juramento terrivel prestado em meio d'um silencio aterrador. E a policia influenciou-se d'essa phantasia, apesar de uma das suas averiguações consignar claramente um facto que reputou verdadeiro e de grande importancia para o esclarecimento do regicidio: o cavaco animado travado entre cinco homens na madrugada de 1 de fevereiro á esquina do Café Suisso. N'esses cinco homens contavam-se o professor Buiça e Alfredo Costa. Os restantes, quem eram? Vivem ainda? A policia chegou a conhecel-os? E que projectavam n'essa madrugada celebre? Decidiam ali, em plena rua, o plano do regicidio, ou apromptavam-se para um acto bem diverso?

O sr. José de Alpoim, que se occupou do assumpto pouco depois de implantada a Republica Portugueza, procurando expurgal-o das falsidades e das invenções dos reaccionarios, que durante dois annos o exploraram sem pudor pela verdade, parece inclinar-se para esta hypothese, embora o não diga claramente:

Os cinco revolucionarios que na madrugada de 1 de fevereiro um espião policial surprehendeu em conciliabulo á esquina do Café Suisso (ou outros cinco, mas comprehendendo tambem o Buiça e o Costa) projectavam simplesmente eliminar o dictador. Subiram a Avenida com esse intuito, esperando poder executal-o á sahida da casa onde elle morava. Por qualquer circumstancia que não vale a pena mencionar, esse designio falhou. Os cinco revolucionarios desceram novamente a Avenida, dispersaram-se durante um pequeno espaço de tempo e voltaram a reunir-se no Terreiro do Paço, ainda com a intenção de desfecharem as armas de que estavam munidos sobre o primeiro ministro de D. Carlos. Essa tentativa foi, como a antecedente, mal succedida; e elles então, não vendo o dictador mas vendo chegar o rei, resolveram n'um lance impulsivo descarregar sobre a carruagem do monarcha.

Por outro lado, Alfredo Costa, vinte e quatro horas antes de consumado o regicidio, dissera a alguem que no dia immediato se abalançaria a ir para a cabeça do touro. Que quereria elle dizer com essa phrase pittoresca? Referir se-hia já n'essa altura á probabilidade do rei Carlos ser attingido pela sua Browning, ou pensava apenas no primeiro ministro que submettera á assignatura do rei o famoso decreto da morte civil de dissidentes revolucionarios e republicanos? No emtanto, ha uma coisa que o sr. Alpoim registou no artigo a que n'outro logar alludimos e que é digno de relevo n'uma narrativa em que se fale do regicidio: o acto não foi combinado antes do 28 de janeiro, pelo motivo bem simples de que a revolta devia rebentar estando a familia real em Villa Viçosa; a carabina utilisada pelo professor Buiça, comprada em casa do armeiro Heitor Ferreira por um rapaz que não era o professor, só entrou na posse d'aquelle revolucionario depois de reconhecido o mallogro do movimento em que entravam republicanos e dissidentes.

Por ultimo, se é certo que o professor Buiça se dispoz antecipadamente a morrer em prol da liberdade – prova-o o seu testamento, que a imprensa publicou – se é geralmente sabido que no seu espirito fulgurou mais do que uma vez a ideia de se exterminar o rei dos adeantamentos, idea acceite não só por Alfredo Costa mas por outros tres homens fundamente exaltados contra o regimen de absolutismo, não é menos certo que até o momento do desembarque da familia real no Terreiro do Paço esse grupo de destemidos tinha em mira liquidar o chefe do governo e, se este escapou da chacina, a um quasi milagre o deve. Com um pouco menos de sorte, o dictador teria perecido sob a fusilaria do grupo, a policia teria despertado da molleza com que vigiava a integridade do monarcha, e a tarde de 1 de fevereiro, longe de marcar uma étape formidavel de revolução, ficaria limitada á queda do gabinete João Franco, pela queda mortal da sua cabeça dirigente.

Vejamos agora outro ponto do regicidio muito discutido até pelas proprias testemunhas do acto: quem atirou primeiro sobre a carruagem real? Foi Alfredo Costa ou o professor Buiça? Tentemos esmiuçal-o.

Assim que a familia real, vinda de Villa Viçosa, desembarcou na ponte dos vapores do Sul e Sueste, o rei Carlos approximou-se do tenente-coronel Dias, que dirigia no local o serviço da policia fardada, e perguntou-lhe á queima roupa:

– Isto… como vae?

(Isto era a situação da população lisbonense, o estado da opinião publica após o famoso decreto de morte civil).

O tenente-coronel Dias hesitou um momento antes de responder, mas, quando se decidiu a fazel-o, disse peremptoriamente ao monarcha:

– Meu senhor, isto vae muito mal!..

D. Carlos encolheu os hombros n'um significativo desdem e foi falar ao primeiro ministro que, dir-se-hia, esfregava as mãos de contente pelo que a publicação do tal decreto representava de força do ministerio e de provocação altiva, ironica, de desafio insolente á ralé insubordinada. Não sabemos o teor d'essa conversa; mas é de crer que o monarcha houvesse interrogado o dictador de modo identico ao do tenente-coronel Dias, e que o dictador, emphatico, lhe tivesse respondido de modo differente do do mesmo tenente-coronel. O primeiro ministro, n'essa altura, ainda desprezava a agitação da escumalha, considerando-a incapaz de ferir o poder real, que elle procurava engrandecer.

D'ahi a instantes, a familia real sahiu da estação do Sul e Sueste e tomou logar n'uma carruagem descoberta. A multidão formava alas pouco compactas para a ver passar. Em frente das arcadas do ministerio da fazenda, um homem que até então se conservara immovel e sereno do lado da Praça do Commercio, olhou para um outro que se especára mais aquem e transmittiu-lhe um imperceptivel signal de cabeça. O segundo fez um gesto affirmativo e o primeiro, saltando para o meio da rua, desembaraçou-se do varino que tinha dependurado dos hombros e, apontando uma carabina á capota da carruagem real, desfechou-a. Esse homem, o professor Buiça, fizera tudo isso n'um relampago. O rei Carlos agonisou… Quasi ao mesmo tempo, a carruagem real era atacada de flanco pelo outro homem empunhando uma pistola Browning. Alfredo Costa, correndo por diante d'um antigo kiosque da Praça do Commercio, conseguira alcançal-a na volta para a rua do Arsenal. O principe Luiz Filippe ergueu meio corpo no vehiculo e, tambem de pistola em punho, tentou attingir o regicida. Mas feriram-n'o de morte como ao rei Carlos. A rainha Amelia, vendo a curta distancia da carruagem um terceiro individuo em attitude hostil, quiz sacudil-o, ameaçando-o com o ramo de flores que tinha na mão, mas n'esse momento o panico já era enorme e, dentro de segundos, o Terreiro do Paço transformava-se em verdadeiro campo de batalha, onde os defensores do regimen disparavam á tôa e a maioria dos populares fugia em diversas direcções, confusos, medrosos, sem atinar com a importancia do facto que acabavam de presenciar.





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notes



1


Em 1891, por occasião da revolta do Porto, não succedeu assim. «Para o paço de Belem havia desde manhã cedo enorme affluencia de personagens officiaes» – dissemol-o no 31 de Janeiro. – «Todos á porfia accorriam á regia morada». Quasi vinte annos depois, no instante do perigo, fugiam d'ella…



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