Книга - Ubirajara: Lenda Tupi

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Ubirajara: Lenda Tupi
José de Alencar




José Alencar

Ubirajara: Lenda Tupi





I

O CAÇADOR


Pela marjem do grande rio caminha Jaguarê, o joven caçador.

O arco pende-lhe ao hombro, esquecido e inutil. As flechas dormem no coldre da uiraçaba.

Os veados saltam das moitas de ubaia e vêm retouçar na grama, zombando do caçador.

Jaguarê não vê o timido campeiro; seus olhos buscam um inimigo capaz de rezistir-lhe ao braço robusto.

O rujido do jaguar abala a floresta; mas o caçador tambem despreza o jaguar, que já cançou de vencer.

Elle chama-se Jaguarê, o mais feroz jaguar da floresta; os outros fojem espavoridos quando de lonje o presentem.

Não é esse o inimigo que procura, porém outro mais terrivel, para vencel-o em combate de morte e ganhar nome de guerra.

Jaguarê chegou á idade em que o mancebo troca a fama do caçador pela gloria do guerreiro.

Para ser aclamado guerreiro por sua nação é precizo que o joven caçador conquiste esse titulo por uma grande façanha.

Por isso deixou a taba dos seus e a prezença de Jandira, a virjem formoza que lhe guarda o seio de espoza.

Mas o sol tres vezes guiou o passo rapido do caçador através das campinas, e tres vezes como agora deitou-se além nas montanhas da Aratuba, sem mostrar-lhe um inimigo digno de seu valor.

A sombra vai decendo da serra pelo vale e a tristeza cae da fronte sobre a face de Jaguarê.

O joven caçador empunha a lança de duas pontas, feita da roxa craúba, mais rija que o ferro.

Nenhum guerreiro brandiu jámais essa arma terrivel, que sua mão primeiro fabricou.

Lá estaca o joven caçador no meio da campina. Volvendo ao céu o olhar torvo e iracundo, solta ainda uma vez seu grito de guerra.

O bramido rolou pela amplidão da mata e foi morrer lonje nas cavernas da montanha.

Respondeu o ronco da sucurí na madre do rio e o urro do tigre escondido na furna; mas outro grito de guerra não acudiu ao dezafio do caçador.

Jaguarê arremessou a lança, que vibrou nos ares e foi cravar-se além no grosso tronco da emburana.

A copa frondoza ramalhou, como as palmas do coqueiro ao sopro do vento, e o tronco gemeu até á raiz.

O caçador repouza á sombra de sua lança.

Salta uma corça da mata e veloz atravessa a campina.

Mais veloz a persegue gentil caçadora com a seta embebida no arco flexivel.

Ergue-se Jaguarê.

Seu olhar ardente voou, sofrego de encontrar o inimigo que lhe tardava.

Avistando uma mulher, a alegria do mancebo apagou-se no rosto sombrio.

Pela faxa côr de ouro, tecida das penas do tucano, Jaguarê conheceu que era uma filha da valente nação dos Tocantins, senhora do grande rio, cujas marjens elle pizava.

A liga vermelha que cinjia a perna esbelta da estranjeira dizia que nenhum guerreiro jámais possuira a virjem formoza.

A corça veiu cair aos pés de Jaguarê, atravessada pela flecha certeira da joven caçadora que a seguia de perto.

A virjem reconheceu o cocar da nação que na ultima lua chegára aos campos do Taari e da qual os pajés tinham dado noticia.

– Guerreiro araguaia, pois vejo pela pena vermelha de teu cocar que pertences a essa nação valente; se pizas os campos dos Tocantins como hospede, bem vindo sejas; mas se vens como inimigo, foje, para que tua mãi não chore a morte de seu filho e tenha quem a proteja na velhice.

– Virjem dos Tocantins, Jaguarê já soltou seu grito de guerra. Elle piza os campos de teus pais como senhor. Tu és sua prizioneira. Não que vencer a corça timida seja gloria para o caçador; mas tu chamarás o inimigo que elle espera.

– Se o veado te der a sua lijeireza, joven guerreiro, elle não te servirá senão para ver o rasto de meu pé antes que o vento o apague.

A linda caçadora desferiu a corrida pela imensa campina. Após ella se arremessou Jaguarê, que muitas vezes vencera o tapir.

Mas a virjem dos Tocantins corria como a nandú no dezerto, e o caçador conheceu que seu braço nunca a poderia alcançar.

Travou do arco e o brandiu. A seta obedeceu-lhe, pregando no tronco do assaí a faxa que flutuava ao sopro do vento.

– A filha dos Tocantins tem no pé as azas do beija-flôr; mas a seta de Jaguarê vôa como o gavião. Não te assustes, virjem das florestas; tua formozura venceu o impeto de meu braço e apagou a cólera no coração feroz do caçador. Feliz o guerreiro que te possuir.

– Eu sou Arací, a estrela do dia, filha de Itaquê, pai da grande nação Tocantim. Cem dos melhores guerreiros o servem em sua cabana para merecer que elle o escolha por filho. O mais forte e valente me terá por espoza. Vem comigo, guerreiro araguaia; excede aos outros no trabalho e na constancia, e tu romperás a liga de Arací na proxima lua do amor.

– Não, filha do sol; Jaguarê não deixou a taba de seus pais, onde Jandira lhe guarda o seio de espoza, para ser escravo da virjem. Elle vem combater e ganhar um nome de guerra que encha de orgulho a sua nação. Torna á taba dos Tocantins e dize aos cem guerreiros cativos de teu amor, que Jaguarê, o mais destemido dos caçadores araguaias, os dezafia ao combate.

– Arací vai, pois assim o queres. Se fores vencido, ella guardará tua lembrança, pois nunca seus olhos viram mais belo caçador. Se fores vencedor, será uma alegria para a virjem do sol pertencer ao mais valente dos guerreiros.

A virjem disse e dezapareceu na selva. Os olhos de Jaguarê seguiram o passo lijeiro da formoza caçadora, como o guachimim que rasteja a zabelê.

Quando ella dezapareceu, o joven caçador recostou-se ao tronco da emburana e esperou.

Do outro lado da campina assoma um guerreiro.

Tem na cabeça o canitar das plumas de tucano, e no punho do tacape uma franja das mesmas penas.

É um guerreiro tocantim. De lonje avistou Jaguarê e reconheceu o penacho vermelho dos araguaias.

As duas nações não estão em guerra; mas sem quebra da fé póde um guerreiro cansado do longo repouzo oferecer a outro guerreiro combate leal.

Quando o tocantim armou o arco, Jaguarê já tinha brandido o seu e disparado no ar uma seta, mensajeira do dezafio.

Respondeu o guerreiro disparando tambem uma flecha no ar, para dizer que aceitava o combate.

Então os dois campeões caminharam um para o outro com o passo grave e pararam frente a frente.

– Eu sou Jaguarê, filho de Camacan, chefe da valente nação dos araguaias, que vem de lonje em busca da terra de seus pais. Minha fama corre as tabas e tu já deves conhecer o maior caçador das florestas. Mas Jaguarê despreza a fama de caçador; elle quer um nome de guerra, que diga ás nações a força de seu braço e faça tremer aos mais bravos. Se tua nação te aclamou forte entre os fortes, prepara-te para morrer; se não, passa teu caminho, guerreiro vil, para que o sangue do fraco não manche o tacape virjem de Jaguarê.

– O caraiba guiou teu passo ao encontro de Pojucan, o matador de gente, guerreiro chefe da terrivel nação tocantim, que enche de terror as outras nações. Ha tres luas, desde que fujiram espavoridos os barbaros Tapuias, que Pojucan não combate; e seu tacape tem fome do inimigo. Tu não és digno dos golpes de um guerreiro chefe; mas Pojucan se compadece de tua mocidade e consente em combater comtigo. Terás a gloria de ser morto pelo mais valente guerreiro tocantim. Os cantores de meus feitos lembrarão teu nome; e todos os mancebos de tua nação invejarão tua sorte.

– Jaguarê agradece a Tupan que te fez um grande guerreiro e o chefe mais feroz da terrivel nação tocantim, Pojucan, matador de gente. A tua morte será a primeira façanha do caçador araguaia e lhe dará um nome de guerra que se torne o espanto dos seus e o terror das outras nações.

Os dois campeões recuaram passo a passo até que se acharam a um tiro de arco.

Então soltaram o grito de guerra e se arremessaram um contra outro brandindo o tacape.

Os tacapes toparam no ar e os dois guerreiros rodaram como as torrentes impetuozas no remoinho da Itaoca.

Dez vezes as clavas bateram, e dez vezes volveram para bater de novo.

Os animais que passavam na floresta fujiram espavoridos, como se a borrasca ribombasse no céu.

Ainda uma vez encontraram-se os dois tacapes e voaram em lascas pelos ares.

– O ubiratan é forte; mas ha outro ubiratan que lhe reziste. Como o braço de Pojucan é que não ha outro braço. Já viste, joven caçador, o veado nas garras da giboia? Assim vais morrer.

– Se tu fosses a cascavel que sómente sabe morder, Jaguarê te esmagaria a cabeça com o pé e seguiria o seu caminho. Mas tu és a giboia feroz; e Jaguarê gosta de estrangular a giboia. Não morrerás pelo pé, mas pela mão do caçador. Lança teu bote, guerreiro tocantim.

Pojucan estendeu os braços e estreitou os rins de Jaguarê, que por sua vez cinjiu os lombos do guerreiro.

Cada um dos campeões pôz na luta todas as suas forças, bastantes para arrancar o tronco mais robusto da mata.

Ambos, porém, ficaram imoveis. Eram dois jatobás que naceram juntos e entrelaçaram os galhos ligando-se no mesmo tronco.

Nada os desprende; nada os abala. O tufão passa bramindo sem ajital-os; e elles permanecem quedos pelo volver dos tempos.

Um pajé que passou na orla da mata viu os lutadores e esconjurou-os, pensando que eram as almas de dois guerreiros prezos no abraço da morte.

Já a sombra se desdobrava pelo vale fóra e o sol despedia-se dos cimos dos montes, sem que os campeões se movessem.

Por fim afrouxaram os braços e cada lutador recuou para contemplar seu adversario. Nenhum mostrava no rosto sombra de fadiga.

Conheceram que podiam lutar corpo a corpo, a noite inteira, sem que um prostrasse o outro.

– Tu és igual na valentia e na força ao guerreiro chefe da nação tocantim. Mas Pojucan não consente que haja na terra quem rezista a seu braço. É precizo que tu morras, Jaguarê, para que elle seja o primeiro dos guerreiros que o sol alumia.

– Pojucan, matador de gente, guerreiro feroz da nação tocantim, Jaguarê deixou-te viver até este momento para saber se tu eras digno de dar-lhe um nome de guerra. Agora que te conhece como o primeiro dos guerreiros que existiram até este momento, elle quer que tua derrota seja a sua primeira façanha.

Disse, e, arrancando do tronco da emburana a lança de duas pontas, caminhou outra vez para Pojucan.

– Esta arma que tu vês é a lança de duas pontas. Jaguarê fabricou-a do rijo galho da craúba, endurecido pelo fogo. Sua mão foi a primeira que a arremessou e teu corpo é o primeiro cujo sangue ella vai beber. Empunha a lança de duas pontas, guerreiro chefe, e ataca Jaguarê para receberes a morte dos valentes.

Pojucan repeliu a lança que o joven caçador lhe aprezentára.

– Jámais no combate um guerreiro tocantim atacará seu adversario dezarmado; nem Pojucan preciza da lança. Ataca tu, Jaguarê, que não tens confiança em teu braço; o de Pojucan basta para te prostrar.

– O orgulho te cega, guerreiro chefe. A lança conhece Jaguarê que a inventou e lhe obedece como o arpão á corda do pescador. Aperta-a bem em tua mão robusta e Jaguarê estará duas vezes mais armado do que tu, que não sabes manejal-a.

O chefe tocantim cruzou os braços.

– Toma a lança, Pojucan, se não queres que te chame covarde; pois tu sabes que Jaguarê não te matará dezarmado, mas te abandonará como indigno de combater com o filho do maior guerreiro araguaia, o grande Camacan.

O chefe tocantim arrojou-se contra Jaguarê que lhe travou dos pulsos e outra vez os dois campeões ficaram imoveis.

A noite veiu achal-os na mesma pozição. Tres vezes cessaram a luta, e de novo a travaram. Mas afinal se convenceram que nenhum derrubaria o outro.

Então Pojucan disse:

– Guerreiro araguaia, é precizo acabar o combate. A terra não chega para dois guerreiros como nós. Finca no chão a lança e caminhemos até á marjem do rio. Aquelle que primeiro chegar, será o senhor da lança e da vida do outro.

Assim fizeram os dois campeões. Chegados á marjem do rio, dispararam a corrida. Ao mesmo tempo a mão de ambos tocou a haste da lança; mas Jaguarê, arremessado pelo impeto da desfilada, não pôde arrancar a arma que ficou na mão de Pojucan.

O guerreiro chefe enrista desdenhozamente a lança e caminha para Jaguarê. Não vai como o guerreiro que marcha ao combate, mas como o matador que se prepara para imolar a vitima.

– Guerreiro chefe, Jaguarê não te quer matar como a serpente que ataca o descuidado caçador. Dez vezes já, se quizesse, elle te houvera ferido com tua propria mão.

– Abandona a gloria do guerreiro, que não é para ti, nhengaíba. Pojucan te concederá a vida, e te levará cativo á taba dos tocantins para que tu cantes as suas façanhas na festa dos guerreiros.

– Cativo serás tu, mas não para cantar os feitos dos guerreiros. Tu servirás na taba dos araguaias para ajudar as velhas a varrer a oca.

Arremessou-se Pojucan avante e desfechou o golpe; mas a lança rodára e foi o chefe tocantim quem recebeu no peito a ponta farpada.

Quando o corpo robusto de Pojucan tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê de um salto calcou a mão direita sobre o hombro esquerdo do vencido e brandindo a arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:

– Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro invencivel que tem por arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucan, e proclama o primeiro dos guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes delle.

– Se meu valor, que serviu para aumentar a tua fama, merece de ti uma graça, não deixes que Pojucan sofra mais um instante a vergonha de sua derrota.

– Não, chefe tocantim. Tu me acompanharás á taba dos araguaias para narrar meu valor. A fama de Jaguarê preciza de um prizioneiro como o grande Pojucan na festa da vitoria.

– Tu és cruel, guerreiro da lança; mas fica certo que, se tua arma traiçoeira me feriu o peito, o suplicio não vencerá a constancia do varão tocantim que sabe afrontar as iras de Tupan e desprezar a vingança dos araguaias.




II

O GUERREIRO


Retumba a festa na taba dos araguaias.

As fogueiras circulam a vasta ocara e derramam no seio da noite escura as chamas da alegria.

Toda a tarde o trocano reboou chamando os guerreiros das outras tabas á grande taba do chefe.

Era a festa guerreira de Jaguarê, filho de Camacan, o maior chefe dos araguaias.

No fundo da ocara prezide o conselho dos anciãos, que decide da paz ou da guerra, e governa a valente nação.

Os anciãos, sentados no longo giráu, contemplam taciturnos a geração de guerreiros que elles ensinaram a combater, e têm saudades da passada gloria.

Suspenso em frente delles está o grande arco da nação araguaia, ornado nas pontas das penas vermelhas da arara.

É a insignia do chefe dos guerreiros, a qual Camacan, pai de Jaguarê, conquistou na mocidade e ainda a conserva, pois ninguem ouza disputal-a.

Eil-o, o velho chefe, embaixo do arco, que sua mão tantas vezes brandiu na guerra. Em pé, arrimado ao invencivel tacape, elle dirije a festa.

De um e outro lado da vasta ocara, está a multidão dos guerreiros, colocados por sua ordem; primeiro os chefes das tabas; depois os varões; por ultimo os moços guerreiros.

Vêm depois os jovens caçadores que já deixaram a oca materna e estão impacientes de ganhar por suas proezas a honra de serem admitidos entre os guerreiros.

Mas para isso têm de passar pelas provas, e sua juventude não lhes consente ainda a robustez, que tamanho esforço demanda.

Todos invejam a gloria de Jaguarê que hontem era o primeiro entre elles, e hoje ali está disputando a fama aos mais valentes guerreiros.

Por detraz da estacada apinham-se as mulheres, que segundo o rito patrio não podem ser admitidas nas festas guerreiras.

De lonje acompanham silenciozas com os olhos, as velhas aos filhos, as espozas aos seus guerreiros, e as virjens aos noivos.

Exultam quando ouvem celebrar as façanhas dos seus; mas não ouzam murmurar uma palavra.

Entre ellas está Jandira, a doce virjem, cujos negros olhos não se cansam de admirar Jaguarê, seu futuro senhor.

Já lhe tarda o momento de ver aclamar guerreiro ao joven caçador, para ter a felicidade de servil-o como escrava na paz, e acompanhal-o como espoza ao combate.

No centro da ocara ergueu-se Jaguarê.

Defronte delle, Pojucan, no corpo que a ferida não abateu, mostra a grande alma, serena em face dos inimigos.

Camacan troou a inubia para ordenar silencio e o filho começou:

– Guerreiros araguaias, ouvi a minha historia de guerra.

«Depois que Jaguarê sofreu as provas do valor, partiu para conquistar um nome famozo.

«Deixando a taba, viu o falcão negro que despedia o vôo para as aguas sem fim, e Jaguarê disse:

«O falcão negro é o valente guerreiro dos ares; elle será a fama do guerreiro araguaia que atravessará as nuvens e subirá ao céu.

«Então Jaguarê marcou o vôo do falcão negro e seguiu por elle.

«O sol despediu-se e voltou; uma, duas, tres vezes. No ultimo sol Jaguarê encontrou um guerreiro da nação tocantim, senhora do grande rio.

«Guerreiros araguaias, quereis saber qual foi o campeão que Tupan enviou a Jaguarê para dar-lhe o nome de guerra?

«Elle aí está diante de vós.

«É o grande Pojucan, o feroz matador de gente, chefe da tribu mais valente da poderoza nação dos tocantins, senhores do grande rio.

«Vós que o tendes aqui prezente, vêde como é terrivel o seu aspeto, mas só eu que o pelejei conheço o seu valor no combate.

«O tacape em sua mão possante é como o tronco do ubiratan que brotou no rochedo e creceu.

«Jaguarê, que arranca da terra o cedro gigante, não o pôde arrancar de sua mão; e foi obrigado a despedaçal-o.

«Os braços de Pojucan, quando elle os estende na luta, não ha quem os vergue; são dois penedos que saem da terra.

«Seu corpo é a serra que se levanta no vale. Nenhum homem, nem mesmo Camacan, o póde abalar.

«Pojucan era o varão mais forte e o mais valente guerreiro que o sol tinha visto até áquelle momento.

«Foi este, guerreiros araguaias, o heróe que ofereceu combate ao filho de Camacan; e Jaguarê aceitou, porque logo conheceu que havia encontrado um inimigo digno de seu valor.

«Elle vos contempla, guerreiros araguaias. Se alguem duvida da palavra de Jaguarê e da força do guerreiro tocantim, chame-o a combate e saberá quem é Pojucan.»

O chefe tocantim lançou um olhar ameaçador á multidão dos guerreiros; mas nenhum ouzou aceitar o dezafio.

Pojucan alçou a mão em sinal de que dezejava falar; todos escutaram com respeito o heróe, ainda maior na desgraça.

– Guerreiros araguaias, ouvi a voz de Pojucan, vosso inimigo, que afronta as iras dos fortes e despreza a vingança dos fracos.

«Pojucan, guerreiro chefe da grande nação tocantim, jámais encontrou guerreiro que rezistisse á força de seu braço invencivel.

«Mas Tupan, cansado de ouvir celebrar em todas as festas o nome de Pojucan, como vencedor, emprestou sua força a Jaguarê, o maior guerreiro que já pizou a terra.

«Eu que senti o impeto de sua corajem, posso dizer-vos que só o sangue tocantim é capaz de gerar um guerreiro tão poderozo.

«Foi alguma virjem araguaia que vagando pela floresta encontrou Pojucan, e trouxe no seio fecundo a alma do grande guerreiro.

«Seu braço é como o corisco do céu; e a sua força como a tempestade que dece das nuvens.»

Calou-se Pojucan; e Jaguarê continuou o seu canto de guerra:

«Quando a sombra começava a decer da crista da montanha, Pojucan e Jaguarê caminharam um contra o outro.

«Toda a noite combateram. O sol nacendo veiu achal-os ainda na peleja, como os deixára; nem vencidos, nem vencedores.

«Conheceram que eram os dois maiores guerreiros, na fortaleza do corpo, e na destreza das armas.

«Mas nenhum consentia que houvesse na terra outro guerreiro igual; pois ambos queriam ser o primeiro.

«Foi então que o chefe tocantim ganhou na corrida a lança de duas pontas, que Jaguarê havia fabricado.

«Tres vezes seu punho robusto a brandiu, e tres vezes ella escapou-lhe da mão, como a serpente das garras do gavião.

«Mais uma vez o grande guerreiro investiu com o bote armado; e a lança, escrava de Jaguarê, cravou o peito do inimigo.

«Elle caiu, o guerreiro chefe, o grande varão dos tocantins, o valente dos valentes, Pojucan, o feroz matador de gente.

«E Jaguarê brandindo a arma da vitoria bradou:

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, que venceu o primeiro guerreiro dos guerreiros de Tupan.

«Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro terrivel que tem por arma uma serpente.»

O trocano ribombou, derramando lonje pela amplidão dos vales e pelos écos das montanhas a pocema do triunfo.

Os tacapes, vibrados pela mão pujante dos guerreiros, bateram nos largos escudos retinindo.

Mas a voz possante da multidão dos guerreiros cobriu o imenso rumor clamando:

– Tu és Ubirajara, o senhor da lança, o vencedor de Pojucan, o maior guerreiro da nação tocantim.

«Os guerreiros araguaias te recebem por seu irmão nas armas e te aclamam forte entre os fortes.

«Os cantores celebrarão teu nome como os mais famozos da nação araguaia e Camacan terá a gloria de chamar-se pai de Ubirajara, como foi gloria para Jaguarê ser filho de Camacan.»

Quando parou o estrondo da festa e cessou o canto dos guerreiros, avançou Camacan, o grande chefe dos araguaias.

De um salto o ancião alcançou o arco da nação, insignia do chefe na guerra, e caminhou para Ubirajara.

O arco era de ubiratan, grosso como o braço do mais robusto guerreiro; a corda trançada de crautá tinha o corpo do dedo que a brandia.

Os mais possantes varões da nação araguaia a custo empunhavam o grande arco; mas só um tinha força para disparar a seta.

Era Camacan, o chefe dos chefes, que dirijia na guerra os guerreiros araguaias.

Assim falou o ancião:

– Ubirajara, senhor da lança, é tempo de empunhares o grande arco da nação araguaia, que deve estar na mão do mais possante. Camacan o conquistou no dia em que escolheu por espoza Jaçanan, a virjem dos olhos de fogo, em cujo seio te gerou seu primeiro sangue. Ainda hoje, apezar da velhice que lhe mirrou o corpo, nenhum guerreiro ouzaria disputar o grande arco ao velho chefe, que não sofresse logo o castigo de sua audacia. Mas Tupan ordena que o ancião se curve para a terra até dezabar como o tronco carcomido, e que o mancebo se eleve para o céu como a arvore altaneira. Camacan revive em ti; a gloria de ser o maior guerreiro crece com a gloria de ter gerado um guerreiro ainda maior do que elle.

Ubirajara tomou o arco que lhe aprezentava o pai e disse:

– Camacan, tu és o primeiro guerreiro e o maior chefe da nação araguaia. Para a gloria de Jaguarê bastava que elle se mostrasse teu filho no valor como é teu filho no sangue. Mas o grande arco da nação araguaia, Ubirajara não o recebe de ti e de nenhum outro guerreiro, pois o ha de conquistar pela sua pujança.

Disse, e arremessando no meio da ocara o grande arco, bradou:

– O guerreiro que ouze empunhar o grande arco da nação araguaia, venha disputal-o a Ubirajara.

Nenhuma voz se ergueu; nenhum campeão avançou o passo.

O trocano reboou de novo, e no meio da pocema de triunfo, a multidão dos guerreiros proclamou:

– Ubirajara, senhor da lança, tu és o mais forte dos guerreiros araguaias; empunha o arco chefe.

Então Ubirajara levantou o grande arco, e a corda zuniu como o vento na floresta.

Era a primeira seta, mensajeira do chefe, que levava ás nuvens a fama de Ubirajara.

Os cantores exaltaram a gloria dos dois chefes: a do velho Camacan, que trocára a arma do guerreiro pelo bordão do conselho; e a do joven Ubirajara, que na sua mocidade já se mostrava tão grande, como fôra o pai na robustez dos anos.

Pojucan teve o consolo de ouvir seu nome, repetido muitas vezes e louvado a par com o de seu vencedor.

Os cantores celebraram depois os grandes feitos da nação araguaia, desde os tempos remotos em que os projenitores deixaram a grande taba dos Tamoios, seus avós.

Quando os nhengaçáras entoaram o canto do triunfo, vieram as mulheres com vazos cheios do generozo cauim e aprezentaram as taças aos guerreiros.

Jandira suspirou; ella era virjem, e como suas companheiras, não podia aparecer na festa dos guerreiros.

Sentiu não ser já espoza, para ter o orgulho de encher de vinho espumante, por ella fabricado, a taça de seu heróe e senhor.

O guincho agoureiro da inhúma resoava na mata, quando começou a dansa guerreira que durou até perto da alvorada.




III

A NOIVA


Ao raiar da luz no céu, Jandira abriu os lindos olhos negros.

Seu canto foi o primeiro que saudou o nacer do dia e acordou em seu ninho a viuvinha.

A doce filha de Majé saltou da rêde que embalára os sonhos castos da virjem, e despediu-se della como a jaçanan que deixa a moita para habitar o ninho do amor.

A virjem tocantim acreditava ter dormido a ultima noite na cabana paterna, que essa manhã ia trocar pela cabana do espozo.

O joven caçador que a amava, Jaguarê, fôra aclamado guerreiro, e entre todos os guerreiros o chefe da nação.

Como guerreiro elle póde tomar uma espoza; e como chefe pertence-lhe a virjem de sua escolha, entre as mais formozas da taba.

Ainda que a virjem tenha um noivo, ou que o pai a destine a outro, se o chefe a dezeja, a vontade de Tupan é que lhe pertença.

Tupan assim ordena para que os grandes chefes possam gerar de seu sangue os mais belos e valentes guerreiros.

Jaguarê antes de ser aclamado chefe já a tinha escolhido, e Jandira não aceitaria outro noivo senão o joven caçador a quem amava.

Ella o espera. Logo que o sol alumie a terra, Ubirajara, o grande chefe, ha de vir buscal-a.

Então a virjem se despedirá de Majé; e irá armar na cabana de seu guerreiro e senhor a rêde da espoza.

Lijeira e contente corre a banhar-se no rio antes que chegue Ubirajara, para quem purifica seu corpo e se unje com o oleo fragrante do sassafraz.

Ella quer que o destemido guerreiro ache seu amor saborozo como o vinho que espumá na taça, e ferve nas veias.

Tornando á cabana, perfumou de beijoim a larga rêde que tecera dos fios do algodão entrelaçados com as penas do guará.

Essa rêde tinha duas vezes o tamanho de sua rêde de virjem, porque era a rêde do cazamento em que devia receber o espozo.

Depois arrumou no urú a louça que havia fabricado para o serviço do guerreiro, e que devia transportar á sua nova cabana.

Quando terminou todos os preparativos, encostou-se á porta da cabana; seus olhos impacientes chamavam Ubirajara.

Mas o guerreiro não vinha, e o sol já tinha subido além da crista da serra.

A luz do dia derramava a alegria pelos campos; e a alegria que lhe afagára os sonhos da noite fujia agora da alma de Jandira.

Então a filha de Majé partiu em busca do noivo que a esquecera.

No mais escuro da mata vaga o chefe dos araguaias.

Seus olhos fojem á luz do dia e buscam a sombra, onde encontram a imajem que traz na lembrança.

Á noite quando o guerreiro dormia em sua rêde solitaria, Arací, a linda virjem, lhe apareceu em sonho e lhe falou:

– Jaguarê, joven caçador, tu dormes descansado emquanto os guerreiros tocantins se preparam para roubar a virjem de teus amores. Ergue-te e parte, se não queres chegar tarde.

Elle erguera-se para seguil-a; mas a virjem formoza desferiu a corrida veloz através da campina e dezapareceu na floresta.

Neste ponto do sonho o guerreiro acordára.

Uma estrela brilhante listrava o céu, como uma lagrima de fogo, e Ubirajara pensou que era o rasto de Arací, a filha da luz.

A jurití arrolhou docemente na mata e Ubirajara lembrou-se da voz mavioza da virjem do sol.

O guerreiro tornou á rêde, esperando achar ali outra vez o sonho que vizitára sua alma; porém o sono fujira de seus olhos.

Quando raiou a primeira alvorada, Ubirajara saiu da cabana e buscou no mais espesso da mata a sombra propicia á saudade.

Seu passo o guiava sem querer para as bandas do grande rio, onde devia ficar a taba dos tocantins.

É assim que os coqueiros, imoveis na praia, inclinam para o nacente seu verde cocar.

Ubirajara ouviu o rumor de um passo lijeiro através da mata; de lonje conheceu Jandira que o procurava.

A doce virjem achára á porta da cabana o rasto do guerreiro e o seguira através da floresta.

– Que máu sonho aflige Ubirajara, o senhor da lança e o maior dos guerreiros, chefe da grande nação araguaia, para que elle se afaste de sua taba e esqueça a noiva que o espera.

– A tristeza entrou no coração de Ubirajara, que não sabe mais dizer-te palavras de alegria, linda virjem.

– A tristeza é amarga; quando entra no coração do guerreiro, o enche de fel. Mas Jandira fará como sua irmã, a abelha, ella fabricará em seus labios os favos mais doces para seu guerreiro; suas palavras serão os fios de mel que ella derramará na alma do espozo.

– Filha de Majé, doce virjem, ainda não chegou o dia em que Ubirajara escolha uma espoza; nem elle sabe ainda qual o seio que Tupan destinou para gerar o primeiro filho do grande chefe dos araguaias.

O labio de Jandira emudeceu; mas o peito soluçou.

A virjem conheceu que o amor de Ubirajara retirava-se della, e que de todo o perderia se o não defendesse.

Então escondeu a dôr no fundo da alma e chamou o rizo a seus labios, a alegria a seus olhos.

Ella sabia que os guerreiros amam a flôr da formozura, como a folhajem da arvore; e que a tristeza murcha a graça da mais linda virjem.

– Chefe dos araguaias, Ubirajara, não desprezes Jandira que outr'ora escolheste para tua noiva. Se então ella era formoza a teus olhos, mais formoza se fará para merecer teu amor. Tu gostavas de seus cabelos negros que arrastam no chão; ella os entrançará com as plumas vermelhas do guará para que te pareçam mais bonitos. Seus olhos negros que te falavam, ella os cercará de uma listra amarela como os olhos da jaçanan. Sua boca, que ainda não provaste, Jandira a encherá de amor para que bebas nella o contentamento.

Jandira esperou a palavra de Ubirajara; mas os labios mudos do guerreiro não se abriram.

– Teu amor, Ubirajara, ficará em meu seio como a flôr no vale. Jandira te dará muitos filhos e todos dignos de teu valor. Nestes peitos, que te pertencem, ella os nutrirá com seu sangue, não menos guerreiro do que o teu; porque é o sangue de Majé, o maior dos anciãos, depois de Camacan. Seus braços que outr'ora querias para tua cintura, não servirão unicamente para te abraçarem, mas tambem para te servirem. Tua espoza te acompanhará por toda a parte, na taba, como no campo do combate; ella cuidará de tua cabana; aprontará as mais saborozas iguarias para seu guerreiro, e fabricará para elle o vinho, que é a alma da festa.

– Jandira é a mais bela das virjens araguaias. Seu amor fará a ventura de um guerreiro valente. Ubirajara não podia achar para si uma espoza mais fiel, nem para seus filhos outra mãi tão fecunda. Mas a noite deceu em sua alma. Só a estrela do dia póde restituir-lhe a alegria que o abandonou. A filha de Majé merece um guerreiro que tenha olhos para a sua formozura.

Pojucan sentou-se pensativo á porta da cabana.

O semblante, sempre grave, como convém a um chefe, cobre-se de tristeza.





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