Книга - Memórias

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Memórias
Raul Brandão






Memórias





PREFACIO




    Janeiro de 1918.

Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões. Não me arrependo, nunca me arrependi. Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda n'este sonho poído. Não me habituo: não posso vêr uma arvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida. Ignoro tudo, acho tudo esplendido, até as coisas vulgares: extraio ternura duma pedra. Não sei – nem me importo – se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu sêr agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectaculo desabalado da vida. Isso me basta. Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante seculos e seculos, até ao juizo final. Nunca fui homem de acção e ainda bem para mim: tive mais horas perdidas… Fugi sempre dos phantasmas agitados, que me metem medo. Os homens que mais me interessaram na existencia foram outros: foram, por exemplo, D. João da Camara, poeta e santo, Correia d'Oliveira, um chapeu alto e nervos, nascido para cantar, Columbano e a sua arte exclusiva, e alguns desgraçados que mal sabiam exprimir-se. Conheci muitos ignorados e felizes. Meio doidos e atonitos. O Napoles ainda hoje dorme sobre a mesma rima de jornaes?.. Outro andava roto e dava tudo aos pobres. O homem é tanto melhor quanto maior quinhão de sonho lhe coube em sorte. De dôr tambem.

A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada… De tudo o que se passou comigo só conservo a memoria intacta de dois ou tres rapidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e enebriam-me, como um pouco d'agua fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nitidas como na primeira hora: ouço hoje como hontem os passos de meu pae quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hydranjas que enchiam o canteiro da parede. O resto esvae-se como fumo. Até as figuras dos mortos, por mais esforços que eu faça, cada vez se afastam mais de mim… Algumas sensações, ternura, côr, e pouco mais. Tinta. Pequenas coisas frivolas, o calor do ninho, e sempre dois traços na retina, o cabedelo d'oiro, a outra banda verde… Passou depois por mim o tropel da vida e da morte, assisti a muitos factos historicos, e essas impressões vão-se desvanecidas. Ao contrario este facto trivial ainda hoje o recordo com a mesma vibração: a morte daquella laranjeira que, de velha e tonta, deu flôr no inverno em que seccou. O resto usa-se hora a hora e todos os dias se apaga. Todos os dias morre.

Lá está a velha casa abandonada, e as arvores que minha mãe, por sua mão, dispoz: a bica deita a mesma agua indiferente, o mesmo barco archaico sobe o rio, guiado á espadela pelo mesmo homem do Douro, de pé sobre a gaiola de pinheiro. Só os mortos não voltam. Dava tudo no mundo para os tornar a vêr, e não ha lagrimas no mundo que os façam resuscitar.

Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diaphano ou colerico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morreu a minha avó; no armario, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve noticias d'elle. Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o Feliz Independente do mundo e dafortuna e as Recreações philosophicas do padre Theodoro d'Almeida. Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha: – Ó sê Manuel cá p'ra baixo p'r'o mar! – Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bilé, o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Ha que tempos! – e foi hontem… A quarenta braças lança-se o ancorote. Na noite cerrada uma luzinha á prôa; do mar profundo – chape que chape – só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua, com reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro, o oceano immenso que me envolve. – Iça! iça! – e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia. Voltamos. Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diaphana, emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar. A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!.. As mulheres, de perna nua, acodem á praia para lavar as rêdes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á porta da Pensão, fuma inalteravel o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete. Mais barcos vão aparecendo, vela a vela: o Vae com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o bemdito, tanta foi a pesca. – Quantas duzias? – Um cento! dois centos! – Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o caes. Ás vezes o peixe miudo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres. Em setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastelam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fóra, anunciando o inverno que vem proximo. O quadro muda, e os homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada – vento sul, camaroeiro içado – com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lagrimas: – Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver! – E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva todos para o fundo.

O que sei de bello, de grande ou de util, aprendi-o n'esse tempo: o que sei das arvores, da ternura, da dôr e do assombro, tudo me vem desse tempo… Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balburdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram misterio que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fertil em emoção e aventura, que a armadilha aos passaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro. Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as hervas gordas como bichos, pégadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céo implacavel de agosto. Os passaros com as azas abertas desconfiam e hesitam: a sêde aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!.. Uma andorinha descreve lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o bico a agua estagnada. Toca n'uma palheira de visco – é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? É pennas e vida phrenetica. E essa vida pertence-te!.. Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rans e os olhos deslumbrados. Nenhuma figura tôrva, nem o Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada… Sou capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmurio da minha bica não me sae dos ouvidos até á hora da morte. Quasi todos os meus amigos – o Nel, que não tornei a ver… – são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos – que já não existem – acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longinquo. Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim… Olha, olha ainda e extasia-te: o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Boia espuma na agua viva que a maré traz da barra… E não ha cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.



    Agosto de 1910.

Aos 23 do mez passado morreu meu pae amachucado, exhausto e pobre. Encontrão de um, repelão de outro, assim foi até á cova. Tinha 67 annos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Ha muitos annos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lagrimas sem fim sobre um velho romance de Camillo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. Lá ficou a velha casa abandonada…

Sobe a lua no céo, e a sombra no monte. Seis arvores, quatro paredes – tudo aqui me enche de saudades. A bica continua a correr, mas outras sêdes se apagarão n'aquella agua. Outros virão tambem sentar-se no banco de pedra… Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto… Olho para ti e os teus primeiros cabellos brancos fazem-me chorar.



    Setembro de 1910.

Hoje acordei com este grito: eu não soube fazer uso da vida!

O que me pesa é a inutilidade da vida. Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete: – É inutil! é inutil!

A aquiescencia, o sorriso: – pois sim… pois sim… – a necessidade de transigir, o preceito, a lei, fizeram de mim este sêr inutil, que não sabe viver e que já agora não pode viver. Não grito de desespero porque nem de desespero sou capaz.

A vida antiga tinha raizes, talvez a vida futura as venha a ter. A nossa epocha é horrivel porque já não cremos – e não cremos ainda. O passado desapareceu, de futuro nem alicerces existem. E aqui estamos nós, sem tecto, entre ruinas, á espera…

Não entendo nada da vida. Cada dia que avança entendo menos da vida. Contudo ha horas, as horas perdidas – e só essas – que queria tornar a viver e a perder.

Deus, a vida, os grandes problemas, não são os philosophos que os resolvem, são os pobres vivendo. O resto é engenho e mais nada. As coisas bellas reduzem-se a meia duzia: o tecto que me cobre, o lume que me aquece, o pão que como, a estôpa e a luz.

Detesto a acção. A acção mete-me medo. De dia pódo as minhas arvores, á noite sonho. Sinto Deus – toco-o. Deus é muito mais simples do que imaginas. Rodeia-me – não o sei explicar. Terra, mortos, uma poeira de mortos que se ergue em tempestades, e esta mão que me prende e sustenta e que tanta força tem…

Como em ti, ha em mim varias camadas de mortos não sei até que profundidade. Ás vezes convoco-os, outras são elles, com a voz tão sumida que mal a distingo, que desatam a falar. Preciso da noite eterna: só num silencio mais profundo ainda, conto ouvil-os a todos.

Nunca os meus me chamaram tão alto. Sentam-se a meu lado. Rodeiam-me, e pouco a pouco o circulo da minha vida restringe-se a um ponto – a cova.

Teimo: ha uma acção interior, a dos mortos, ha uma acção exterior, a da alma. A inteligencia é exterior e universal e faz-nos vibrar a todos d'uma maneira diferente. Destas duas acções resulta o conflicto tragico da vida. O homem agita-se, debate-se, declama, imaginando que constroe e se impõe – mas é impelido pela alma universal, na meia duzia de coisas essenciaes á Vida, ou obedece apenas ao impulso incessante dos mortos.

A minha alegria em velho consistiria em ter aqui meu pae para falar com elle. Não é só saudade que sinto: é uma impressão physica. Agora é que acharia encanto até ás lagrimas em termos a mesma idade, conversarmos ao pé do lume e morrermos ao mesmo tempo…



    Fevereiro de 1918.

Isso que ahi fica não são memorias alinhadas. Não teem essa pretensão. São notas, conversas colhidas a esmo, dois traços sobre um acontecimento – e mais nada. Diante da fita que a meus olhos absortos se desenrolou, interessou-me a côr, um aspecto, uma linha, um quadro, uma figura, e fixei-os logo no canhenho que sempre me acompanha. Sou um mero espectador da vida, que não tenta explical-a. Não afirmo nem nego. Ha muito que fujo de julgar os homens, e, a cada hora que passa, a vida me parece ou muito complicada e misteriosa ou muito simples e profunda. Não aprendo até morrer – desaprendo até morrer. Não sei nada, não sei nada, e saio d'este mundo com a convicção de que não é a razão nem a verdade que nos guiam: só a paixão e a chimera nos levam a resoluções definitivas. O papel dos doidos é de primeira importancia neste triste planeta, embora depois os outros tentem corrigil-o e canalisal-o… Tambem entendo que é tão dificil asseverar a exactidão de um facto como julgar um homem com justiça. Todos os dias mudamos de opinião, todos os dias somos empurrados para leguas de distancia por uma coisa phrenetica, que nos leva não sei para onde. Succede sempre que, passados mezes sobre o que escrevo – eu proprio duvido e hesito. Sinto que não me pertenço… É por isso que não condemno nem explico nada, e fujo até de descer dentro de mim proprio, para não reconhecer com espanto que sou absurdo – para não ter de discriminar até que ponto creio ou não creio, e de verificar o que me pertence e o que pertence aos mortos. De resto isto de ter opiniões não é facil. Sempre que me dei a esse luxo, fui forçado a reconhecer que eram falsas ou erroneas. Sou talvez uma arvore que cresce á sua vontade, pernada para aqui, pernada para acolá, á chuva e ao vento. Não admitto poda. Perco horas com inutilidades, e passo alheado e frio diante do que os outros contemplam extasiados. Admiro, por exemplo, muito mais, perdoem-me, a vida ignorada do meu visinho, o senhor Crasto, que morreu de oitenta annos, curvado, a lavrar a terra, do que a do senhor Hintze Ribeiro, que considero inutil e destituida de toda a belleza.

Por isso, repito, muitas folhas destes canhenhos serão mal interpretadas, talvez alguns tipos falsos. Só vemos mascaras, só lidamos com phantasmas, e ninguem, por mais que queira, se livra de paixões. No que o leitor deve acreditar é na sinceridade com que na ocasião as escrevi. Poderão objectar-me: – Então com que destino publico tantas paginas desalinhadas, de que eu proprio sou o primeiro a duvidar? É que ellas ajudam a reconstituir a atmosphera d'uma epocha; são, como dizia um grande espirito, o lixo da historia. Ensinam e elucidam. Foi sempre com a legenda que se construiu a vida. Sei perfeitamente que a historia viva tanto se faz com a verdade como com a mentira – se não se faz mais com a mentira do que com a verdade. Para gerar um acontecimento é preciso crear-lhe primeiro a atmosphera propicia. «Algumas palavras sob caricaturas grosseiras dispersas pelos campos, formaram uma lenda na imaginação popular, concernente ao rei, á rainha, ao conde de Artois, a madame Lamballe, ao pacto da fome, aos vampiros que sugam o sangue do povo, etc. Dessa lenda, que elle acha util, sahiu a grande revolução» – diz um historiador. A gente nunca sabe ao certo se da infamia poderão nascer coisas bellas… A mentira, o boato, o que se diz ao ouvido, o que se deturpa, e que tanta força tem, a meada de odio, de ambição e de interesses, que não cabe na historia com H grande, tem o seu logar n'um livro como este de memorias despretenciosas. Eis uma razão. Tenho outra ainda: torno a vêr e a ouvir alguns mortos. Recordo, o que é necessario a quem cada vez mais se isola com o seu sonho e as suas arvores. Isto aquece quasi tanto os primeiros annos da minha velhice, como o lume que arde até junho na lareira d'esta casa[1 - Estas Memorias devem formar quatro volumes: – 2.º vol. – Os bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro por dentro; 3.º vol. – A Republica. O comercio e a finança. Jornaes e jornalistas; 4.º vol. – A Republica e os seus homens. Vida militar.].



Cantareira, Foz do Douro – 1918.





ALGUMAS FIGURAS




    Janeiro – 1900.

Urbano de Castro, com um olho tôrto e um chapelinho afadistado, na aparencia reservado e sardonico, sae-se encantador na intimidade. Os seus amigos adoram-no, o Camara, o Schwalbach, a antiga roda do Correio da Manhã. Trouxe para o jornalismo uma grande leitura de classicos – conhece muito a lingua – e uma forma ironica e precisa: em meia duzia de linhas incisivas deixa o adversario a sangrar. Os politicos temem-no tanto, que uma das condições impostas pelo José Luciano, quando do pacto com o Hintze, foi que o Urbano terminasse na Tarde com o Espirito de S. Ex.a.

Eis algumas maximas de Urbano de Castro:

– A paciencia é uma virtude de capote e lenço.

– Quanto mais leve é a cabeça da mulher, mais pesada é a do marido.

– Os homens publicos são como os papeis de credito – o que hoje tem uma alta cotação, amanhã não vale, e inversamente.

– Quando tiveres muitos argumentos, não empregues senão os melhores. Quando não tiveres nenhum, emprega todos.

– A paternidade é, muitas vezes, um rotulo. A garrafa é a mesma, mas o vinho é outro.

– Viuva rica, com um olho dobra, com outro repica.

– No coração mora-me Deus, no figado o diabo.

– Mortal é o contrario de imortal. Imortal é o que é sempre. Logo, mortal – é o que não é nunca.

– Theologia – a arte de fazer comprehender aos outros aquillo que nós não entendemos.

– De todas as armas, a mais dificil de manejar é o pau… de dois bicos.

– Jornalista – fabricante da opinião publica. Cada um afirma que a unica genuina é a da sua lavra.

– Se os homens de mais juizo pensarem a serio em muitos dos seus actos hão de reconhecer que não teem juizo nenhum.

– O suicida tem para mim um lado sympathico – não se julga insubstituivel.



    Junho – 1903.

Deparo hoje com o Garrido, redondinho, baixo, de bigode grisalho e um ventre de proprietario. Nunca se altera nem perde a paciencia. Jovial? Não, triste e falando sempre baixinho. Tem ganho fortunas, tem dissipado fortunas com o mesmo ar inalteravel. Houve ocasiões em que todos os theatros do Rio representaram peças com o seu nome. Está cheio de dividas. E o seu ideal, o ideal d'esta existencia de acaso, com aflições de morte, ou dispersa pelo Brazil entre dois numeros de opereta – pan! pan! pan! – e dinheiro atirado a rodos, é um casebre no campo, duas arvores n'um retalho de horta viçosa e uma nora pingue que pingue no fundo do quintal. Paz. E não escrever uma linha.

Um agiota não o larga. É este velhinho paternal, de cabellos brancos, que faz recados, deita as cartas ao correio e leva coiro e cabelo. Parece inofensivo. Começou a vida por creado de servir e esfolou os patrões. Afirma que o Garrido é capaz de arrancar dinheiro a um morto:

– Este senhor Garrido dá-me cada aflição! Até me faz crear caspa!



    Fevereiro – 1900.

A paixão d'este homem é não ter um livro de geito. G… só escreveu trez folhetos, e por ahi ficou o seu talento. Espremido não deu mais nada. É no entanto uma figura epigramatica e nitida de conversador e um typo curioso de bohemio lisboeta. Dormiu nas escadas dos predios, pertenceu ao grupo que o Fialho arrastava pelas ruas até ante manhã, dispersando com elle o oiro da sua esplendida phantasia. Para essa meia duzia de bohemios improvisou o grande escriptor as suas melhores satyras. Uma noite, no café, G… aludiu á sua obra, e logo do lado o Fialho acudiu:

– A tua obra, bem sei… Vinte e cinco cartas a vinte e cinco amigos pedindo vinte e cinco tostões emprestados.

G… embezerrou. Mas passados minutos aproveitou uma pausa no dialogo, para perguntar com indiferença ao Fialho, que tinha ha pouco casado rico com uma prima, que gastou a vida a esperal-o no fundo da provincia:

– O Fialho fazes favor de me dizer que horas são… no relogio do teu sogro?



    Fevereiro – 1903.

Vejo sempre diante de mim o D. João da Camara, já cansado e e asmathico, olhando por cima das lunetas, e falando baixinho com receio, uma modestia no dizer, e um medo de magoar… A barba espessa, a grenha espessa e um chapelinho pôsto ao lado, completam a figura um pouco molle. É quasi um santo. Joga e jejua. Dá tudo o que tem. Exploram-no.

– O que me perdeu na vida foi não ter energia. Nunca me decido. – E mais baixo: – Isto vem talvez dos jesuitas que me educaram. Tive alguns condiscipulos que são homens notaveis e ninguem dá por elles.

Vive de noite, com uns e outros, ao acaso, nos bastidores dos theatros, ou encantado com uma ceiasinha na taberna, que descobriu no Arco da Bandeira. Se encontra o Pinturas está perdido: não se largam mais. Vae sempre para casa de manhã, e a sua vida é tão aflictiva que desejaria, como o Schwalbach, que o metessem algum tempo no Limoeiro, para não pensar no dia seguinte.

Hontem contou-me isto que é encantador:

– Não me importava nada de ter quatorze filhos em vez de sete. São muito meus amigos. O Vicente nunca sae de casa sem me dar um beijo. Eu estou sempre a dormir… Esta manhã – estava acordado, mas fingi que dormia, quando aquelle rapagão me entrou no quarto, pé ante pé, para não me acordar, e beijou-me…

E fica extatico.

Ás vezes fala-me das peças que ha-de fazer, do Sermão da Montanha e de outra com tipos de sonhadores, que se alimentam de mentira e de um passado que nunca existiu, forjado ponto por ponto. Assobia-se, por exemplo, um trecho d'opera, e logo este atalha: – Bem sei é da Dinorah!… Tempos que já lá vão! O que eu vivi com Fulano e Sicrano, e as ceias que demos juntos! – Tudo ilusão! tudo sonho! Vae-se a ver nem sequer conheceram as pessoas de quem falam… Outras vezes conta-me a sua vida:

– O que eu tenho sofrido! Tive muitos dias d'angustia… N'essa noite O Pantano cahira. Toda a gente dizia mal de mim. Nos bastidores a intriga fervia com a Lucinda á frente. Sahi do theatro a pensar no que havia de empenhar no dia seguinte. Fui para casa muito tarde. – Não haveria que pôr no prégo? – Por fim descobri uma casaca, e, ainda muito cedo, sahi com o embrulho debaixo do braço, n'um papel de jornal. O papel amolecia, a casaca rompia para fóra, e eu batia de prégo em prégo. Sete horas da manhã… Estavam todos fechados. N'um disseram-me com seccura: – Não emprestamos sobre casacas. – Fui a outro e esperei no portal que abrisse. Lembro-me como se fosse hoje. Chovia a potes. Defronte, estava uma carroça, com um cavallo branco. Era um burro pelle e osso, a cabeça metida n'uma linhagem, a comer. E eu no portal, com o embrulho já todo roto debaixo do braço, invejei aquelle cavalo!..

Já não joga. Mas antigamente ia todos os dias para casa ás cinco horas, tendo perdido tudo: – Foi n'essas noites que imaginei as minhas melhores peças… – Cuidadosamente punha sempre de lado um tostão para o americano – e quasi sempre succedia tambem que um velho fidalgo, das suas relações, lhe pedia o tostão emprestado para um calice de vinho do Porto, que se habituara a beber ahi pelas tres da madrugada. O D. João dava-lh'o, e lá ia a pé para a Junqueira, a sonhar nas peças, sob a lufada, molhado até aos ossos, de casaco de alpaca.



    Junho – 1903.

Passei a noite em casa do Columbano, com o Raphael Bordalo Pinheiro. Durante o jantar falou sempre. Todo elle mexe, todo elle é caricatura e imprevisto: os olhos, o nariz, as mãos e até o bigode que se encrespa, desenham e imitam. – Era um homem com um ôlho assim… – E logo o ôlho se lhe envieza. Em rapaz o seu sonho era o theatro. Chegou a ter lições do Rosa pae. Está um pouco cansado. Queixa-se muito. Amua. – Ninguem faz caso de mim… – Estranha quando o não vão esperar á estação – e está sempre a chegar das Caldas e partir para as Caldas. Depois esquece-se e põe-se a rir. Depois torna: – Eu não jogo, mas lá em casa todas as noites jogam e pedem-me dinheiro emprestado. – Agora arremeda este e aquelle de quem fala. Conta que em Paris ouviu o rei dizer: – Isto aqui é uma terra, lá é uma piolheira. – E que o infante, quando lhe perguntaram: – Então em Londres que tal, com aquelles principes todos? – Mal, mal… eu sou um principe aza de mosca…

E acaba – é nas vesperas do jantar que lhe vão oferecer no theatro D. Maria – por dizer: – Veja o senhor que desgraça a minha! Daqui a pouco não posso fazer a caricatura de ninguem!

Efectivamente lá estavam no banquete todos os homens imponentes, os conselheiros, os politicos decorativos, a serie completa das figuras do Antonio Maria. Não faltou ninguem á chamada. E nos camarotes aplaudiram-no com delirio as lisboetas palidas de que troçou em tantas paginas de genio. Confundiram-no e arrazaram-no. Creio que foi a primeira vez que perdeu a linha.

Gostou sempre de fazer partidas. É o Schwalbach que conta:

– O imperador do Brazil logo que chegava ao theatro metia-se no camarote, descalçava as botas e calçava com regalo uns chinelos. Uma noite o Raphael, que estava então no Rio, foi pé ante pé, meteu a mão pela cortina e roubou-lhe as botas. O pobre homem não se desconcertou: sahiu em chinelos, atravessou em chinelos a multidão, saudando para a direita e para a esquerda, desceu ao pateo, e meteu-se em chinelos na carruagem.



    Dezembro – 1900.

Latino Coelho, contado por Maximiliano d'Azevedo:

Tinha coisas absurdas: estava sentado a conversar e levantava-se sem mais nem menos, compunha a trumpha, e ia espreitar á janella. Era todo de enguiços. Nunca sahia de dia. E que memoria! Dizia-se-lhe qualquer banalidade, e elle, d'ahi a mezes, repetia-a palavra por palavra. Discursos que revelam o conhecimento inteiro d'uma epocha, como o de Camões, que leu na Academia, e que foi escripto das sete ás onze da manhã, e lido ao meio dia, compunha-os com extrema facilidade.

D'uma vez estava elle em casa politicando com alguns amigos reformistas, o Mariano, o Lopo Vaz e não sei quem mais. Discutia-se a revolução de onze de maio. O Latino, dando um geito á trumpha, chegou á janella e viu o carro, puxado a mulinhas, do Saldanha:

– Ahi vem o duque… E aposto que vem para cá.

Efectivamente o carro parou á porta. Era o Saldanha. O Latino foi recebel-o n'outra sala, e, depois dos cumprimentos habituaes, o Saldanha perguntou-lhe:

– Sabe a que venho? Venho saber a sua opinião sobre o dia de hontem.

– Mas não tenho opinião nenhuma…

– Não se recuse, Latino. Peço-lho como amigo.

– Então, marechal, deixe-me dizer-lhe que quem como V. Ex.a conquistou um nome glorioso com a espada, não deve servir-se da canalha para fazer o que fez. A sua situação é deploravel.

– Não me diga isso! E se eu aproveitasse a situação para firmar de vez a liberdade em Portugal e salvar o paiz?

– Se V. Ex.a quizesse…

– Mas é que quero, e para isso venho ter comsigo.

Combinaram que o Latino redigiria os decretos ampliando as liberdades publicas, tornando-as efectivas, e convocando constituintes com poderes amplissimos.

– O maior segredo… – recomendou o Latino.

N'essa noite não dormiu. Acompanhado d'um amanuense do ministerio, redigiu os decretos, que no dia seguinte o proprio Saldanha foi buscar, metendo-os dentro da pasta. Mas fosse que os amigos que lá estavam em casa tivessem desconfiado; fosse que o Saldanha désse á lingua, o que é certo é que o rei foi prevenido a tempo por alguem que lhe disse:

– O Saldanha vae trazer-lhe uns decretos. V. Magestade não os assigne ou está perdido.

Quando o Saldanha chegou ao Paço o rei abraçou-o:

– Pois o duque ajudou a conquistar-me o throno e não quer que meus filhos reinem? Nem talvez eu chegue até ao fim da vida no poder…

Saldanha que era um fraco recuou. D'ahi a dias encontrou-se com o Latino que lhe disse:

– V. Ex.a não podia deixar-me dormir a minha noite socegado?

Por trez vezes, conclue Maximiliano, o Latino me contou isto. Já tenho querido descobrir os decretos. Devem estar em casa do irmão, n'um quarto interior, onde a traça vai roendo os papeis do grande escriptor…


*

Um dia o Saraiva de Carvalho foi propor a revolução ao Latino:

– Mas ha-de ser tudo assassinado – toda a familia real.

– Isso não! – protestou logo o Latino.


*

Morreu virgem, como Newton. No dia de sua morte, estava o cadaver na cama, apenas coberto com um lençol. Alguem disse para o Maximiliano:

– Bastaria arrancar aquelle lençol para descobrirmos o segredo de toda a sua existencia.


*

Junqueiro dizia de Latino:

– Sim, é um homem admiravel, que em logar de c… tem duas castanhas piladas!



    Maio – 1903.

Um jornal publica hoje esta noticia:

POVOA DE LANHOSO, 29 – Faleceu, sepultando-se hoje, o sr. dr. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura, da freguezia de Santo Emilião, bacharel formado em philosophia e mathematica pela Universidade de Coimbra.

O povo apelidava-o de santo, pelas suas sublimes virtudes christãs. Tinha 92 annos de edade; o falecido fôra frade agostinho.

O homem, a quem estas seccas linhas se referem, era na verdade um santo. Deixou tudo para viver pobre, perto de S. Martinho do Campo, entre cavadores e a gente humilde da terra que o adorava. Vi-o muitas vezes passar na estrada, todo branco, minguado, com o burel, que nunca quiz largar, no fio, e os sapatos rotos. Era efectivamente formado em philosophia e direito, e até por vezes fôra convidado para lente da Universidade de Coimbra. Recusou sempre, recusou tudo, preferindo a convivencia com a gente do povo e com a natureza que o rodeava. Ha entre as duas povoações, S. Bento e S. Martinho, que ficam á beira da estrada da Povoa de Lanhoso, uma fonte que brota da raiz de uma arvore. Perto fica a ermida. Alli se costumava o santo homem sentar, horas e horas embebido nas suas meditações. Em que scismava? Decerto no passado longinquo…

Lembram-se d'uma narrativa de Alexandre Herculano, que se chama, creio eu, «O ultimo dia de convento?» Um frade chora ao deixar para sempre a cella caiada, onde passou a vida inteira. É só isto, afóra a ternura, as lagrimas, a prosa do grande escriptor. Assim D. Joaquim da Boa Morte contava tambem as ultimas horas de convento. Velhinho, tremulo, vivendo de esmolas, recolhido por caridade em casa de duas mulheres, que o cuidavam, nunca esqueceu o convento, a cella, o dia de separação. E, ao pé da arvore, junto ao fio limpido d'agua, lhe ouvi mais d'uma vez contar o que sofrera.

– E dos seus companheiros lembra-se? Teve mais tarde noticias?

E elle, com os olhos razos de lagrimas:

– Viveram ainda dispersos por esse mundo. Ha annos, ha muitos annos, recebi, dum d'elles um recado, esta palavra: – «Adeus!» Foi o ultimo!

Agora acompanhava-o sempre um rapazinho. Com a vida, ia-se-lhe desfeito o burel, rôtos os sapatos. Deixára de dizer missa, mas o povo d'aquelles logares, que é ingenuo e crente, consultava-o nas suas doenças e nos seus sofrimentos. É que D. Joaquim fazia milagres. Excusam de sorrir… O milagre é uma comunicação entre pessoas que têm radicada e viva esta força enorme: – a fé. D. Joaquim da Boa Morte curava as creaturas simples, as mulheres, as creanças e os homens da serra que o iam visitar, com boas palavras, e, quando muito, com alguns cachos de uvas, que elle proprio colhera e lhes distribuia, depois de benzidos.

Antes de morrer pediu que o enterrassem embrulhado na manta coçada que pertencera a sua mãe e que alli tinha no fundo da arca. Essa velha manta como eu lh'a invejo! Era n'um farrapo assim, com um resto de calor e de ternura, que eu queria ir aconchegado para a terra. Nem a eternidade das eternidades, nem o isolamento, nem o frio dos frios, conseguiriam jamais trespassal-a.

Que descance em paz. Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida. A sua grande figura só desaparece da terra, depois de ter feito muito bem e estancado muitas lagrimas.



    Julho – 1903.

O Silva Pinto a respeito do Cardia, que ha tres dias, em plena mocidade, meteu uma bala no coração:

– Eu não faço como elle, não me vou embora, porque tenho duas creanças, o Mario e o Raul. Era de certo a isto que o Manuel se referia ao escrever: «Não faço falta a ninguem». Isto atura-se lá a sangue frio e determinadamente! Matava-me para me ver livre d'estes bandalhos!

E os olhos enchem-se-lhe de lagrimas, arrasta a perna apegado á bengala, e sacode a cabelleira branca. Parece um trapo ameigado, mas resistente ainda: – Arre bandidos!

De repente, sem transição, põe-se a rir:

– Sabe de que me rio? Lembrou-me o Camillo, que tinha uma lingua viperina e dizia mal de toda a gente. Um dia em Seide falei-lhe n'este e naquelle, disse mal de todos. Por fim: – Sempre me refugio em Victor Hugo, para ver se você tambem diz mal d'elle…

E o mestre:

– Esse velho não era nada tolo!

Ri-se. Depois fica outra vez triste:

– Aquellas paginas de Hugo quando o avô vê entrar o neto ferido pela porta dentro!


*

O Fialho descrevendo o Cardia, esse rapaz ingenuo, insinuante e espontaneo, que aos dezanove annos se lembra de estourar o coração com uma bala, por causa d'uma reles cantora de quarenta e dous annos – o Fialho diz:

– …era isto e aquillo e uma mão enorme atirada p'ra aqui e p'ra acolá a toda a gente, apertando a nossa.

O que nunca mais me esquece são aquelles olhos tristes e a bocca moça sempre a sorrir!..



    Fevereiro – 1904.

Hoje almoço em casa do Schwalbach com o Bulhão Pato, o Camara, João Chagas, Antonio Bandeira, etc. O Bulhão Pato é um homensinho secco e resistente, de cabeleira e pera branca – miniatura do alentado Pato caçador que todos nós imaginamos ao ler-lhe algumas paginas. Parte no dia 20 para S. Miguel, de passeio… Quando morrer desaparece com elle toda uma epocha: – Meu rapaz podes ter lido todos os philosophos, que se não tiveres sentimento… Minha mulher, uma velhinha lá fica… Não vae comigo, porque recolhemos em casa uma pequena pobre, pobrissima, e queremos-lhe como se fosse nossa filha. Sentamol-a á nossa meza… Bem sei que ha por ahi uns moços que dizem mal de mim. Não me importo. Quando vejo um rapaz de talento abro-lhe logo os braços.

No fim do almoço, beija a mão ás senhoras. Conviveu com o Herculano, ouviu-lhe dizer: – Isto dá vontade de morrer! «Que faria – accrescenta – se vivesse hoje!» – O Conservatorio lembra-lhe o Palmeirim – «que foi da minha creação» – É simpathico, vivo e cheira a outros tempos: conserva, como o linho guardado no fundo d'um armario, o perfume da maçã. E que contraste com os outros, com o Chagas, com o Schwalbach, sempre aflicto e sempre despreocupado, com o Antonio Bandeira, que, sob uma aparencia futil, é pratico como o diabo, e que conta que foi uma noite em Roma, com alguns portugueses, mulheres e guitarras, bater o fado para as ruinas do Colyseo! Depois, por blague, sustenta com o Chagas, que ninguem devia ter mais de duzentas e cincoenta grammas de principios.



    Março – 1904.

Encontrei hoje o Marcellino Mesquita: ventas largas, marcas de bexigas, barba com muitas brancas aparada rente, chapeu desabado, capinha curta e olho vivo. Tipo crestado do sol, materialista e secco.

– A gente quando chega a certa edade tem de se isolar para não viver n'uma perpetua irritação. Olhem agora se eu encontrava o Pequito ministro, o Pequito de quem a gente fazia troça em rapaz! E muitos outros, que aos quarenta annos começam a desafinar-nos os nervos… Vivo no Cartaxo, n'um descampado: a quinta fica entre duas estradas. Não passa lá ninguem… Leio, fumo, e trabalho. Tinha um moinho; primeiro acrescentei-lhe uma cozinha, depois um quarto: agora tenho lá uma casa. E já não posso viver sem o ruido das mós. O meu quarto fica mesmo por cima. D'aqui a oito dias, com as macieiras em flôr, aquillo é adoravel…



    Abril – 1903.

Vi o Marianno nas camaras. É um cadaver, com uma sobrecasaca riquissima de gola de veludo. Nunca phisionomia exprimiu maior cansaço, indiferença ou desprezo, a palpebra cahida, o olhar vazio de expressão. – Que me importa! que me importa!.. – Parece um morto, farto de sofrimento e de goso, e, sob aquella apparencia de sceptico raros se magoam como elle. Toda a vida tem sido ludibriado. Contam que a mulher passa horas a descompol-o. Elle, sentado, escreve tiras e tiras de papel, a tarefa do jornal, sem dizer palavra nem levantar a cabeça. D'uma vez chamou-lhe tudo quanto lhe veio á bocca, e elle inalteravel, curvado sobre os linguados, sem lhe dizer palavra… Por fim ella, desesperada, berrou-lhe:

– És um estupido!

Elle então parou, ergueu a cabeça, e muito calmo:

– Teem-me chamado tudo, mas estupido é a primeira vez!

E continuou a escrever.

Por fóra uma aparencia de sceptico, por dentro uma sensibilidade enorme. Anda sempre metido em complicações e negocios, em caminhos de ferro, em pedaços de Africa, bahia de Lobito, etc., e afinal não passa d'um sonhador que tem as propriedades de Azeitão hipothecadas em quatorze contos de reis.



    Setembro – 1903.

O Antonio José de Freitas, homem de lettras mediocre, é um conversador admiravel. Se conseguisse escrever como fala, e désse á prosa aquella vida que dá á palavra, seria um grande escriptor. Pequeno, branco, na ponta dos pés, sempre a segurar as lunetas, todo elle nervos:

– Dei-me muito com o Castello-Melhor. Um dia começou a imaginar que estava pobre, porque no Banco de Portugal lhe não quizeram, como sempre se fez, descontar uma lettra só com o nome d'elle. Disse ao Barros Gomes: – Vae beber da merda! – E sahiu furioso. D'ahi começou a imaginar que tinha cahido na pobreza e alugou o jardim para o circo Whytoine. Uma vez sahi com elle d'um baile pela madrugada e acompanhei-o a casa. – Sobe. – Tenho ainda que escrever para o Brazil… – Insistiu, subi – e eil-o a clamar no quarto: – Que diriam meus avós se vissem alli o circo e os palhaços!.. – Estava desesperado. Descompul-o.

Passaram-se annos e morreu de repente. Vestimol-o n'aquelle mesmo quarto, e, altas horas da noite, ouvimos, de repente, um clamor: era o circo Whytoine que ardia. E eu assisti ao espectaculo do cadaver, iluminado pelo clarão do incendio, alli onde o ouvira evocar com desespero os seus mortos. Foi tudo ao enterro. O povo abria alas, e quando chegamos ao cemiterio e quizemos pegar no caixão, veio de roldão uma chusma de cocheiros e vadios, que nol-o arrancaram das mãos, e, erguendo-o no alto dos braços, levaram-no até á cova…


*

– O Eça usou toda a vida bentinhos ao pescoço. Vi-lhos eu, que dormi por diferentes vezes com elle no mesmo quarto…


*

Depois fala no Resende:

– Se vivesse era decerto o chefe do partido conservador. Que homem encantador, polido e sceptico! E tinha uma poderosa ascendencia magnetica sobre nós todos. O medico, já quando elle estava muito mal, recomendou-lhe ares do mar. Passeava n'um bote no Tejo. Umas vezes ia eu com elle, outras o Soveral, e levavamos-lhe botijas com agua quente, porque sentia sempre um frio mortal. Estou a ver o Soveral, com uma botija em cada mão. O Rabecão, um jornal de caricaturas do tempo, disse que nós iamos emborrachar todas as noites para o rio. Muito nos rimos… Pois o Resende, atheu toda a vida, morreu como um crente.

Foi elle que se esmurrou com o Eça n'uma das piramides do Egypto. Nessa viagem ouviram ambos missa no tumulo de Jesus, em Jerusalem. O Eça cahiu logo de joelhos; quando levantou a cabeça para ver o quadro, dois ou trez mil peregrinos tinham como elle ajoelhado sob o mesmo impulso irresistivel: só a seu lado, de badine e sobretudo no braço, se conservava de pé, sem perder a serenidade nem a linha, um unico homem: o Resende.


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Os vencidos da vida, depois que se juntaram diziam mal uns dos outros. Não se podiam ver.



    Março – 1900.

Ha mezes que Junqueiro não aparecia na Praça, onde outrora era certo á noite, rodeado de esbirros, e discutindo politica ou arte com alguns amigos mais intimos. Eil-o agora de volta, depois de umas febres palustres apanhadas n'essa longinqua quinta que replanta de vinha lá para a Barca d'Alva.

Vem curioso. Teem por acaso os senhores noticia d'um Junqueiro adunco e janota, mephistophelico, com ditos em braza explodindo sobre o ultimo acontecimento, e conhecem talvez a lenda da casa de hospedes celebre da rua dos Retrozeiros, d'onde em tempos sahiram gritos subversivos, pamphletos, versos, theorias philosophicas, satyras e revistas do anno, e onde – consta dos archivos da policia – morou o proprio Diabo em pessoa, na intimidade do poeta?.. Lembram-se? Depois, n'outra phase da vida, viram-no talvez autoritario e feroz, com o mesmo perfil em bico d'aguia, sob um chapéo molle e gasto, atacar o velho Padre Eterno?.. Pois ahi o teem agora philosopho e christão. Parece um prégador socialista-tolstoiano, um santo cavador, de barba negra e inculta: traz ainda terra pegada nas mãos e uma roupa velha, a que só faltam alguns remendos cosidos á ultima hora… Usa uma camisola de lã e diz assim: – Eu não me visto: cubro-me.

Chega da Barca d'Alva, um terreno enorme lá para a raia, entre pantanos, que reuniu leira a leira, depois d'uma scena, que dava um capitulo á Balzac. É elle mesmo que a evoca em meia duzia de traços, e a gente vê logo d'um lado os cavadores tartamudos e hesitantes, do outro o Senhor Poeta, como elles lhe chamam, com um livro de cheques na algibeira, encafuando-os a todos na sala do cartorio: – Se chegam a concertar-se era uma discussão para seculos. Pediam-me uma fortuna! – Um a um compareceram diante do tabelião: – Quanto quer? Assigne! – E sahiam logo por outra porta.

Já pouco a pouco a lenda se forma, discutindo-se a nova thebaida, que d'aqui a annos será visitada como Valle de Lobos e Seide. Que procuram os nossos grandes escriptores, desde Herculano a Fialho, na natureza, que pouco nos dá em troca do muito que lhe damos? Afastar-se dos outros ou esquecer-se a si proprios?Talvez as arvores e os montes nos preparem melhor para o sepulchro e para o verme, ainda que eu julgue que não ha como um 6.º andar, com livros e papeis, e um cinematographo no rez do chão, para acabar com a vida.

Seria um curioso estudo aquelle que comparasse Valle de Lobos, Seide e a quinta de Junqueiro, a decoração escolhida por tres homens superiores – o fundo de tres grandes retratos. Na Barca tem o poeta uma casota de cão, com os muros ainda em osso, e uma varanda onde passeia todo o dia infatigavelmente. De quando em quando escreve na cal da parede versos ou contas. Seide, n'um cahir de tarde outomniça, lembra a alma de Camillo. Ha lá um calvario d'arvores decepadas que parecem forcas. Ha lá uma casa tragica, pintada d'amarello. Um ermo, que, a meia legoa da estrada, fica ao cabo do mundo, e que parece escolhido de proposito para esconder uma desgraça ou combinar um crime. Peor: ficou na casa abandonada, no ambito, nas pedras, alguma coisa daquella alma dilacerada de sceptico e de crente, mixto doloroso que só tinha como solução o infortunio. O que se ouve são risos ou gritos de dor? Depressa! depressa!.. Parece que elle anda ainda por aqui, sardonico e immenso, desgraçado e immenso. Valle de Lobos, se uma vez o avistaram, não emociona de uma forma toda diferente, e não diz bem com a alma de Herculano?.. Quanto a Junqueiro, a sua paizagem querida é indubitavelmente a trasmontana, grave, revolta e grandiosa como o seu genio.

Camillo não encontrou decerto resignação nas arvores, nem nos montes, porque, para o mestre, em toda a natureza só o homem existia: – Não ha na sua obra uma arvore, nota o poeta… – Nem Guerra Junqueiro por ora se isola. Está na lucta, com os seus livros, as suas theorias, a sua maneira suprema de discutir e de encarar os problemas do universo.

– Para viver na aldeia é preciso, diz elle, ser João Brandão ou S. Francisco d'Assis.

De forma que a Barca d'Alva não é bem uma thebaida para o poeta. Os senhores vão agora conhecel-o sob este aspecto novo – agricultor. A Barca é-lhe mais que um refugio: é (palavras que fazem bater o coração de todos os homens) o futuro dos seus filhos. E Junqueiro, agricultor, tem ainda genio: inventa e descobre. Quatrocentos cavadores desbravam-lhe a terra, que deve produzir um vinho magnifico. O mosquito propaga a febre. O jornaleiro macilento bate o queixo com sezões. Elle ordena, dirige e resolve as questões agricolas muito melhor que os lavradores da região, de quem diz:

– Plantam vinhas, como quem joga na batota – ao acaso!

Ouçam-no! Desfilam os jornaleiros, que adquirem logo uma vida extraordinaria, as boccas que não falam, a Maria Colhôna, que tem filhos de toda a gente, filhos para o Brazil, filhos para soldados, filhos para a desgraça, os sêres deformados e enormes, os tipos que se transformam em simbolos… Descobriu um novo processo para evitar que a enxertia, essa operação cirurgica, como elle lhe chama, falhe, e, sob as suas ordens, trabalham alguns centos de homens, que se encostam ás enxadas para ouvirem o Senhor Poeta… Não é raro vel-o subito, tempo humido, perigo para as vides, abalar para a quinta com saccos de sulphato. Adivinha, presente melhor a natureza que os sabios – e cria. Tudo o que toca toma sob as suas mãos um aspecto novo, tão certo é que os homem de genio, como quer Carlyle, são sempre superiores e ineditos.

E de que maneira paradoxal elle expõe as suas theorias! Nervoso, pequeno, calcando o lagedo da Praça, a mordiscar a ponta do charuto, que giganteas formas de sonho não vae creando aquella magica palavra!.. A sua phantasia é eminentemente decorativa.

– Sabem – dizia o poeta uma noite – sabem que scismo na fórma de transformar toda a agricultura? Acabaram-se os pobres, a fome, os annos tristes! Para o vinho, d'aqui em deante, não bastarão toneis como torres e para o pão arcas como predios. Uma carrada de bois será apenas suficiente para carregar uma abobora, e um simples cacho de uvas dará vinho para duzias de borrachões. Como? Aplicando ás arvores, ás vides, ás plantas emfim, o methodo de Brown-Séquard. O sabio dá a um organismo gasto uma vida assombrosa, injectando-lhe a vitalidade de coelhos. Calculem o resultado d'esse sistema aplicado na agricultura…

Um castanheiro dura seculos, tem uma vida extraordinaria. É mais que uma arvore – é uma força. Apodera-se dos montes. As suas raizes alastram, os seus ramos tocam no céo. Imagine que injecto polen de castanheiro n'uma vide… Obtenho logo uvas como as da Terra da Promissão. D'um pé de melancia tiro um fructo capaz de carregar um carro. Tres maçãs metem no fundo uma náu.

E eis, por uma noite de invernia, a natureza transfigurada, pelo poder da phantasia e do sonho. Flores são arvores abrindo lá em cima no céo em parasoes roxos; pinheiros transformam-se em montanhas; monstros erguem as suas corolas de veludo, e na verdade não passam de humildes flores bravias. Uma petala desaba com o fragor de penedos, e multidões sobre multidões sequiosas veem dessedentar-se n'este fructo colossal: – o morango. Ha que tempos que eu erro perdido n'esta floresta monstruosa de papoulas!..

Junqueiro na intimidade é prodigioso de genio, de imprevisto, de elevação. Vê os factos mais simples com um olhar que os engrandece. Assombra de pitoresco e de inedito. O homem de genio é, como todos os homens, filho da mesma lama, mas, por acaso, vão n'esse humus lagrimas, aguas correntes, detrictos de florestas, restos de nuvens e a emoção profunda da natureza. Por isso sabem tudo, sentem tudo… É pena que as suas conversas, os seus fragmentos, esses pedaços de sonho e de vida, atirados com febre, perdidos, e decerto esquecidos, se não possam juntar, porque dariam um dos aspectos mais extraordinarios do seu genio. Seria esse talvez o seu melhor livro. Assim, por exemplo, as cathedraes de Hespanha, onde Jesus está preso e a ferros, a explicação prodigiosa dos Christos de madeira – o Christo dos soldados, o dos ladrões, o dos cavadores, da sua sala de jantar, unicas obras d'arte de que não quer desfazer-se, e a sua philosophia, a maneira superior como encara o universo e ilumina o desconhecido…

Pois ahi o teem de novo no Porto, de barba hisurta, embrulhado n'um casaco coçado, com um ar iluminado de Santo. Direis que vae prégar ás multidões. Demais já ha annos que elle escrevia:


Tolstoi o meu sapateiro…

E um dia, ao saber Camillo sceptico, Camillo com noites de sombrio desespero, palpando a coronha do revólver, não foi de proposito procural-o para lhe prégar Deus?

Era n'uma dessas tardes tragicas de Seide, de que o grande escriptor fala nos Serões. A natureza chorava revolvida: a acacia de Jorge batia-lhe devagarinho nos vidros. Quem é que o chama? Atormentado de dores, ouve vozes, vê phantasmas, e sae do horror com blasphemias e sarcasmos. Junqueiro encontra-o mergulhado na dolorosa tinta do crepusculo, com a pala com que escrevia sobre os olhos, absorto, calado, desesperado, o rosto marcado de dedadas, «esboçado n'uma argila côr de mel», segundo o retrato de Ricardo Jorge. Eu tinha-lhe medo… O poeta tenta arrancal-o ao negrume que o envolve: desenrola theorias, explicações, argumentos; ataca-o a fundo, persuade-o talvez… Já o julga abalado e convertido, quando d'essa figura só osso e dor, saem emfim estas palavras ironicas:

… – Sim, sim, Junqueiro, você convencia-me se eu não tivesse ainda no estomago, desde o almoço, tres bolinhos de bacalhau, que me estão aqui como tres Voltaires.



    Março – 1904.

Veiu a Lisboa acompanhar, por solidariedade, os lavradores do Douro, o poeta Guerra Junqueiro. É outro homem, que perdeu talvez em exterioridades mas ganhou em funda emoção. Tendo-se-lhe um dia deparado universaes interrogações no caminho; tendo encontrado frente a frente, ao meio da vida, idéas abaladoras, que só o homem de genio pode encarar sem o pavor e o deslumbramento que o grande mistério comunica – as raizes do universo – elle mudou de rumo, tão simplesmente como se praticasse o acto mais banal da existencia. Sendo já um dos maiores poetas da Europa – quiz ser tambem um santo… Durante annos procurou como Fausto o segredo da vida no fundo dos laboratorios. E n'outra phase do seu espirito decorativo tendo entrevisto, pelo poder do genio, novas veredas a tentar, seguiu-as, fazendo experiencias que a sciencia d'hoje plenamente confirma.

Guerra Junqueiro está na mesma: alguns fios brancos a mais na grande barba de santo, começo de calva amarelada no alto da cabeça, chapéo baixo, uma simplicidade de trajo que vae bem com a simplicidade verdadeira ou ficticia da sua alma. E sobre isto os olhos terriveis que nos fitam e nos adivinham até ao fundo. A conversa é prodigio que evoca, ilumina, toca em todos os problemas da vida, dando-lhes uma grandeza e novos aspectos que entontecem.

Fala-se a proposito de um livro, e elle diz, não palidamente, nem decerto com as inexactidões com que reproduzo, o seguinte:

– É um livro interessante. O autor conseguiu deixar falar a parte de inconsciente que cada um de nós traz comsigo… Porque, meu amigo, a porção de infinito que cabe a cada homem é exactamente a mesma. O camiseiro alli defronte e um homem de genio teem na alma identico quinhão. Sómente o camiseiro não consegue encontral-a nem pode exteriorisal-a. Porque? Porque só pensa em camisas. O homem é o universo reduzido… Que cada um pudesse deixar-se narrar – e teriamos a mais maravilhosa historia do mundo!..

E como incidentemente se refira á sciencia, eil-o que se desvia por outro esplendido caminho:

– As ultimas descobertas modificaram completamente a sciencia. Foi um terremoto. E eu entrevi isto mesmo: ha annos que chegára ao seguinte resultado: – radiação universal e desassociação dos atomos. Fiz experiencias, que me de sciencia que não me quizeram atender. Um dia vim de proposito a Lisboa falar a Sousa Martins e expuz-lhe as minhas theorias. Ouviu-me… Quando me fui embora encolheu decerto os hombros. E no emtanto, passados annos, vejo confirmado experimentalmente tudo o que eu previra… Que quer?.. Faltavam-me como comprehende os meios de verificação. Precisava de factos.

Cala-se um momento e depois continua:

– Hei-de publicar, depois da Oração á luz, que sae brevemente, uma serie de memorias, com os resultados dessas experiencias. A vida – é o Amor e a Dor. Procurar as suas leis eis tudo. Seguir-se-ha a minha theoria philosophica. Adivinhei todo este terremoto que se deu ultimamente na sciencia. Hoje a materia não existe: já a definem – associação d'energias. O que é feito dos materialistas? A sciencia futura será portanto o estudo de energias. Por ultimo publicarei uma introducção á sciencia, visto que não posso escrever essa obra: seria a revisão dos trabalhos de Spencer – a tarefa de toda uma vida.

– E tem muitos documentos?

– Tenho tudo prompto. Necessito apenas de encontrar a fórma precisa, a fórma mathematica, para exprimir as minhas idéas.

Incansavel. É de ferro. Pequeno e mirrado passeia horas e horas, a conversar… Não conversa – monologa.


*

Da Barca d'Alva diz:

A minha casa de jantar tem uma meza e cadeiras de pinho. Depois de comer, quando quero um palito, corto-o na meza.


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Ramalho definido por Junqueiro: – um pinheiro com uma melancia em cima.


*

Junqueiro na redacção do «Mundo»:

– D'aqui a pouco reparto a minha fortuna com as minhas filhas e o que me restar dou-o aos pobres.


*

Ha outro Junqueiro de que a caricatura se apoderou, o Junqueiro do bric-á-brac. O Junqueiro que a má lingua do Porto afirma que percorre disfarçado as ruas de Hespanha, com um burro pela arreata apregoando: – Ha por ahi quem tenha louça para vender? – O Junqueiro que foi procurado um dia no hotel, em Salamanca: – Está cá o grande poeta Guerra Junqueiro? – Não conheço, – disse o porteiro. – Mas elle vem sempre para aqui. É um homem de barbas… – teimou, explicou o outro. – Esse es Guerra el antiquario!..

Mas até no Junqueiro caricatural algumas linhas são indispensaveis para completar o retrato. Ha n'este grande homem uma mascara. Sinto uma parte que se deve ao arranjo – e que é a inferior e outra em que elle obedece á raça e que é a mais viva, a que tem raizes nos mortos. Melhor: o homem é sempre um tablado onde varios phantasmas se despedaçam. Ha mãos que nos puxam para o fundo, ha outras que nos procuram levantar cada vez mais alto. Deus nos livre de julgar os mortos!


*

Junqueiro, de volta do Bussaco, indignado:

– E não aparecer um doido, com um grande martelo, que deite tudo aquillo abaixo! Qualquer dia botam as arvores a terra e põem pedraria até á Pampilhosa!



    Dezembro – 1907.

Encontro-o hoje em Lisboa, emagrecido, com um velho casaco comprado n'um adelo, e muitas rugas, finas como linhas, ao canto dos olhos. E, como o José de Figueiredo lhe fale no Rodin:

– É verdade, passei um dia inteiro com o Rodin, a explicar-lhe a sua obra. Disse-lhe: você é um grande artista, mas exactamente, como em todos os grandes artistas, a melhor parte da sua obra é inconsciente. Porque em todos nós a razão é nada, o que é grande é o inconsciente. Aquella cabeça que você tem no Luxembourg, emergindo da pedra – é assim, é aquillo… Mas falta-lhe não sei quê de simbolico que ligue a cabeça á pedra. Assim choca, é brutal. É como o Pensador, a estatua que está no Pantheon. Toda a critica franceza tem tentado explicar aquella estatua, e ainda ninguem disse as palavras necessarias. Eu lh'as digo: Aquillo não é o Pensador, nem o Pensamento: é o primeiro pensamento em cabeça de homem. Dispa você um tipo de verdadeiro pensador, Kant, o Dante, por exemplo, e encontra um corpo deformado. Porque o pensamento peza mais de que montanhas. Devora. O que você fez foi uma besta, um gorilha, um homem capaz de arrastar calháos: Pois bem: inconscientemente fez uma grande obra d'arte: o primeiro pensamento na cabeça d'homem. Esse primeiro homem athletico, ao deparar com o primeiro pensamento, essa flor abstracta, fica dominado, subjugado: cae-lhe o Atlas em cima e esmaga-o… E adeus, são horas de partir para o comboio.


*

D. Carracida, professor de chimica biologica na Universidade de Madrid, homem ilustre e que conhece perfeitamente a literatura portugueza, diz assim de Junqueiro… (D. Carracida fala portuguez pausadamente).

– O senhor Junqueiro, grande poeta, é um mistico… Está agora no misticismo. O senhor Junqueiro e eu passeavamos juntos no jardim de Villa do Conde, de cá para lá – e o senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor. Uns rapazinhos acendiam balões para uma festa, e eu e o senhor Junqueiro passeavamos de cá para lá… O senhor Junqueiro prégava a piedade e o amor, e um dos balões cahiu na cabeça do senhor Junqueiro, que levantou a bengala e deu com ella no rapazinho… E nós continuamos a passear de cá para lá, e o senhor Junqueiro a prégar a piedade e o amor…



    Março – 1903.

Fialho não é este janota de palio rico, com uma joia tão grande que parece falsa na gravata de veludo. Fialho era outro estranho tipo, intratavel e pobre, com o pêlo ralo e a bocca enorme cheia de sarcasmo. Um principe de gabinardo, que fazia cahir as peças do alto do galinheiro, a um gesto seu irrespeitoso. Seguia-o a malta atonita de matulas suspeitos e jornalistas de ocasião, que deslumbrou de sonho e atascou em sonho. – Fialho! Fialho!.. – Esses aplaudiram-no e amaram-no… Esquecidos do frio e da pobreza, não despregavam os olhos d'aquelle sonho desconforme. – Fialho! Fialho!.. – Depois sumia-se n'um terceiro andar, ou procurava os pobres que não pedem: só a mão sae da noite e implora. Havia uma velha – nunca mais me esquece – alli á porta do Monte Pio, que fazia parte do muro alto e espesso, e a quem elle, ao dar-lhe esmola, lhe afagava a cabeça… Depois, amargo, feroz, insuportavel, eil-o tornava com sarcasmos, transtornando as figuras decorativas, cheias de veneras, que á sua voz desatavam ás cambalhotas como palhaços. Vi-o exasperado, vi-o atordoado de phrases, como quem quer fugir ao proprio phantasma. Vi-o mergulhar n'uma absorpção dolorosa, e desaparecer na noite em correrias que duravam até de manhã pelos bairros escusos ou pelas azinhagas de crime, n'um debate perpetuo de que sahia livido, exhausto, e com a mascara transtornada. Este que fala do seu vinho: – Livros?.. O que eu trato de editar é um vinhinho branco lá de Cuba… – este, que vem, de quando em quando, a Lisboa deslumbrar-nos com um novo e horrivel fato, é outro Fialho, que talvez tenha saudades d'essa vida absurda de outros tempos…

Fialho! Fialho!.. Pronuncio este nome e diante de mim desfila o assombro, pamphletos, a obscenidade e o genio – farrapos arrancados a ferro e tão vivos que mal ouso tocar-lhes – o estoiro d'uma bexiga d'entrudo – ironia e esgares. E logo gritos! e agora gritos!.. Ouço a dor, sinto a dor, sinto-a sempre atravez da forma imprevista, d'uma audacia e d'um rithmo incomparavel, escorrendo sonho, aflição, miseria, sinto-a até nos impetos de máo gosto, nos pontapés aos leitores surprehendidos e irritados. Está aqui diante de mim aquella bocca enorme, aquella figura de gabinardo e chapeu molle que nas noites de tristeza e abandono me dizia: – O que eu sofri! o que eu sofri!.. – Vejo-o sempre invejar o barqueiro louro e sardento, de que fala nos Gatos, bello como um ephebo á prôa do seu barco. – Como eu queria ter saude e ser forte! – Deu-lhe Deus o mais rico quinhão que imaginar se pode, a lingua incomparavel para exprimir a chimera e a dor, e, esse macaco sem fé, esbanjou-a com o mais absoluto impudor: serviu-lhe para a chacota. Transtornou tudo, engrandeceu tudo, riu-se de tudo. As descripções perderam a proporção, as figuras a realidade, transformadas em figuras de dor ou de grotesco; a propria cidade resurgiu a uma tinta livida de antemanhã, com a casaria a escorrer vicio e aspectos tetricos… É isto sim, mas isto creou-o elle de pobreza e desespero, creou-o de gritos que nunca ninguem lhe ouviu. – E maior! ficou maior! A sua obra só tem outra que se lhe compare, a de Camillo. Exigem-lhe um livro harmonico —Os cavadores. Porque é que toda a gente reclama dos outros aquillo de que elles são incapazes? A obra de Fialho não podia ser senão esta, aos arrancos e enorme. Fialho via os pormenores atravez d'uma lente, e deturpava tudo, deformava tudo, dando genio á propria obscenidade. Nunca conheceu Barjona, nunca viu Barjona, e, com duas ou tres anecdotas, creou uma figura com um relevo que falta ao mediocre Barjona da realidade. Precisou sempre de se exagerar para se encontrar. Sacrificou o seu melhor amigo a um dito, é certo, mas começou por se sacrificar a si próprio. Foi sempre o primeiro a sofrer. Houve tempo em que alguem o definiu um doente com inveja das doenças dos outros… Desatou então a gargalhar com lagrimas nos olhos. Perdeu o pé. Arrancou as azas disformes ao Sonho e rojou-as com maldade no enxurro. – Encharcou-as de lama e empoou-as de estrellas… O vestido ficou mas era o d'um espectro… Não nos podemos medir todos pela mesma craveira. Fialho tem de tudo na alma: a casa de hospedes, a existencia reles d'estudante, a pobreza, as mil saburras, os pequenos nadas que gastam, desgastam e transformam, e uma alma vibratil, um feixe de nervos (capaz de tempestades que se domam com uma palavra) ligado a uma enchente de sonho e a um orgulho doentio, como os que sentem dentro de si, e o suportam, um mundo desconhecido e nunca dantes navegado. Fialho, se o virassem do avêsso, escorria ternura… É tambem um timido capaz de todas as audacias, e que sae da doença e do isolamento com desespero e escarneo. Esta figura tão conhecida de todos nós, não é a exacta expressão da sua alma. Ainda hoje ninguem se entende…


*

– O que eu sofri! – dizia elle. – Tiveram-me preso oito annos n'uma botica alli na Bemposta, ao pé da Escola do Exercito, na idade em que queria viver. Estragaram-me a vida, encheram-me de desespero. Quando me soltaram não imagina a minha alegria! Podia ter sido outro… Ter saude, ser forte!.. O que eu sofri! D'uma vez, no Reporter, o Martins mandou-me escrever um artigo sobre uma kermesse de fidalgas. Fui e fiz uma troça, e elle rasgou-me os linguados na cara. Para me vingar, tirando um bocado ás noites, escrevi um artigo formidavel para publicar em folheto. Era na occasião em que essas peidorreiras arranjavam um bazar para os pobres, que rendeu oitocentos mil reis. Ora eu descobri por acaso um gallego, que se juntava com outros e tiravam todas as semanas meio dia de ganho, para irem ao domingo ao hospital dar cigarros aos doentes, penteal-os, cortar-lhes as unhas, untar-lhes a cabeça com banha de porco. É um velho, de barba de passa piolho, que está sempre no largo de Camões. Homem de poucas falas. Tratou-me mal. Tive prompto o folheto em que comparava essas mulheres, cheias de snobismo, com adulterios e infamias, com esse santo desconhecido… Imagine… Perdi o artigo.

E depois, falando da mulher Oliveira Martins: – Não era a mulher que convinha áquelle homem. E elle subordinava-se-lhe. Foi ella que o fez confessar á hora da morte. Contou-me o Sousa Martins que a sacudira de ao pé de si ao morrer…


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Fala do livro A Cloaca, um d'estes livros que se sonham e nunca se chegam a escrever:

O primeiro capitulo está feito: é uma festa da alta sociedade no claustro da Batalha… Aproveito a epoca do Burnay e do marquez da Foz, a lucta da finança, quando o Foz tinha palacios e o Moser carro a duas parelhas. Deram-se festas esplendidas… Tenho as figuras todas, homens de negocio e jornalistas, o Mariano e o Navarro… Um dia alugam um comboio especial e vão dar uma festa no claustro da Batalha. É uma ceia formidavel, com mulheres da grande roda, politicos, literatos, e, dentro do claustro, entre a grandeza e a severidade d'aquellas pedras, caem de bebados e mijam pelos cantos, nos tumulos. O principe tambem lá está, com o conde de Maricas – fedes: no fim do banquete, á sahida, a babar-se, escreve nas paredes monumentaes esta palavra obscena: p… Os outros riem-se, as mulheres aplaudem. Fora a multidão apupa. Outro capitulo ha de ser a noite em que os jornaes apregoaram em suplemento o escandalo Foz e a sua prisão: – Foi n'essas horas – dizia a marqueza – que os cabellos se me puzeram brancos da noite para o dia.


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Nunca terminou outro livro A Quebra, que chegou a trezentas paginas impressas, no editor Costa Santos. Tinha capitulos admiraveis. Acabou por o inutilisar: – A minha dificuldade é a falta de proporções. Perco-me n'um incidente, e quando mal me percato estou em quatrocentas paginas. – Sei tambem que escreveu alguns capitulos d'Os Cavadores. Talvez d'Os Ceifeiros pertencessem a esse livro, em que elle queria pegar no homem do campo e leval-o, sempre explorado, desde o baptismo até á morte…


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Inventou este nome para o conde de Arnoso, a rainha Draga, e diz do retrato a oleo que o Columbano lhe pintou:

– O Columbano é tão cortezão que lhe poz um velho olho do Eça de Queiroz.


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Contemplando o cadaver do Cardia:

– Só aos quarenta anos é que se sabe o que é isto!

Isto é a morte, á qual tem horror, assim como á velhice.


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E falando a proposito do Cardia:

– Eu tambem sou assim… Ha dias em que ninguem me arranca seja o que fôr da cabeça. Sinto a mesma impressão de vasio que o Cardia sentia. Depois escrevo por impetos uma pagina, pedaços destacados que me matam de desespero para ligar. E se não escrever logo, passadas horas já não posso, não sei… Varreu-se-me tudo!


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Está furioso com a inauguração do monumento ao Eça. No fundo nunca o pode vêr: faltou-lhe o carinho, a consideração – e isso maguou-o muito – que rodeou o grande escriptor dos Maias. Elle proprio diz: ganhou sempre a trabalhar menos que um pedreiro. No jornaleco A Tribuna escreveu em dois numeros successivos, sem assignatura, as seguintes notas com o titulo o monumento

Já noticiamos n'outro numero do nosso jornal com todos os seus detalhes e pormenores, como foi a festa d'inauguração do monumento a Eça de Queiroz. Damos hoje um reflexo do humor da multidão que assistiu ao acto. Porque, emfim, a nosso vêr, tudo é documento para a historia.


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– Sobre a nudez forte da Verdade, o manto diaphano da phantasia. Dizem os amigos que n'esta frase se alegorisa a obra de Eça. Mas olha cá. Estando a Verdade completamente nua do ventre para cima, e só rebuçada d'ahi para baixo, o que sob o manto da fantasia se guarda é indecente.

– Ahi está a razão porque a alegoria é flagrantissima.


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– Tu, se fosses casado, davas o Primo Bazilio a lêr a tua mulher?

– Lá isso não. Mas não tinha a mais pequena duvida em o dar á tua.


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– Que lhe parece a Verdade do monumento?

– Um calix de bitter para fazer bocca ao Chat Noir, que fica em baixo.


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– Condessa, de todos os cavalheiros que fallaram, qual d'elles é o conde d'Avila?

– O conde d'Avila são todos.


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– Este Monteiro Milhões, que inconveniencia! Consentir que das suas cavallariças um burro esteja a interromper os oradores!

– Condessa, é o echo.


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– O que eu n'esta consagração sobretudo admiro, é o grande coração do conde d'Arnoso. O Municipio devia premiar tão nobre musculo.

– Com uma urna, como se fez ao D. Pedro IV?

– Com uma urna não. Com uma travessa.


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– Seria interessante conhecer todos os tramites do trabalho de creação do esculptor, até ao momento da estatua apparecer.

– Ah, eu lh'os conto. Primeiramente, o Carlos Mayer, na sua qualidade de judeu, queria uma descida da Cruz, e por isso, o grupo do Eça e da Verdade cheiram um pouco á scena da Paixão. Veio depois o Arnoso a lembrar se dessem ao monumento reminiscencias mais contemporaneas, ex.: o Genio perguntando á Verdade quantos dentes queixaes queria tirar. D'esta dualidade d'inspiração resulta o mysterio, que faz com que o monumento seja o que v. ex.a quizer, sendo o melhor – não perguntar.


*

Apparece no estrado o Conselheiro António Candido.

– Silencio! Vae fallar o maior orador da Peninsula.

– «…[*espaço?]no povo portuguez ainda ha o grande brio dos feitos altos, (sussurro). Se ámanhã esta Verdade tão núa fôr ter ao Pelourinho, ninguem sabe até onde o amor da Pátria ha-de crescer! (ovação).


*

Interview com o conselheiro Barahona.

– V. Ex.a leu alguma vez o Eça?

– Ler, nunca, mas conheci-o em Evora, delegado do thesouro, e até por causa d'isso vim ao Principe Real ver-lhe um drama de ladrões, que estava mesmo escripto ao meu sabor.

– Mas isso não é o Eça de Queiroz, é o Eça Leal.

– O que?! Não é o mesmo? Ai, os meus ricos dois contos de réis!


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Interview com o Snr. Monteiro Milhões.

– V. Ex.a que pensa do monumento?

– Penso que tenho de voltar a frontaria da minha casa, para o Theatro D. Amelia. Imagine que os meus netos estão constantemente a perguntar quem é aquella senhora sem camisa. Já o outro dia lhes disse que era D. Maria II, mas com estes frios, os pequenitos, educados na compaixão, não me largam para que lhe mande dar um cobertor.

– E que impressão faz das suas janellas a barriga da Verdade?

– Aqui entre nós (arregalando o olho) é uma d'aquellas barrigas que está mesmo a glorificar a «sensação nova» (irritado). Não era mais condizente á minha camoneana, transferirem o epico immortal aqui para o meu largo, e levarem aquelle senhor para as proximidades do Bairro Alto?

– De modo que V. Ex.a, irritado, nem chega á janella?

– Emquanto a Camara não mandar pôr, de roda da figura um resguardo pintado de cinzento.


*

– Tu ouviste os discursos. Que opinião por elles se pode ter da capacidade mental dos oradores?

– Metade d'aquelles senhores não leu o Eça, e a outra metade não tem lucidez para o julgar. Isto foi uma festa de «snobs»; o monumento que ali está, não foi erguido á memoria do Eça litterato: é a glorificação do conde Reinaldo e da Alfonsine.

– E se o flamejante garoto agora cá tornasse? Mettia-os a todos n'um romance endiabrado.

– Já estão mettidos. Mas o que tu acabas de vêr é os Maias em quadro vivo.


*

Duas guapissimas, na turba.

– Pero Eça de Queiroz, quien és?

– Un caballero que escribió del minuete.


*

G… antigo companheiro de Fialho, sepultado hoje no fundo d'uma biblioteca, diz assim a proposito da livraria do grande escriptor[2 - Republica, 23 de Fevereiro de 1915.]:

«Eu chamo a estes livros as onze mil virgens. São apenas quatro mil volumes ou pouco mais, mas – vae surprehendel-o esta minucia – estam quasi todos por abrir. Ha aqui Balzac e Zola, Eça e Ibañez, os Goncourt e Ponson du Terrail. Fialho tinha muito Ponson na sua biblioteca. Esta litteratura de costureiras e guarda-portões era para as grandes horas amarguradas».

Era. A elle e a outros grandes espiritos basta-lhes o proprio drama para os amargurar. Anthero, nos dias aziagos de Villa do Conde, deitado n'um sofá, só lia Gaborieu. Para tragedia chegava-lhe a sua.

«O Fialho tinha uma admiração extraordinaria pela obra camiliana. Imagine que até n'um livro da mocidade poz uma dedicatoria a Camillo, em que dizia: «acabo de lêr toda a sua obra». E quasi nada lêra a esse tempo… Afora as obras portuguesas, na biblioteca de Fialho só ha volumes em espanhol e em francez. Nos ultimos anos merecera-lhe uma atenção particular a literatura espanhola.»

E a proposito de Fialho intimo assevera:

«O Fialho, que tinha grandes rasgos generosos e perversidades femininas – repito-o não era bem o Fialho que se vê atravez dos seus livros admiraveis. Era o outro. As suas irreverencias das paginas rubras eram fundamentalmente apenas o odio do plebeu que inveja o fidalgo. Sim, porque ele invejava a sociedade na sua fase demolidora só porque não tinha nela um lugar. Uma infantilidade de homem de genio.»

E explica:

«Como se sabe o Fialho não tinha meios de fortuna nem ascendencias nobres. Fez a sua vida ali no «Martinho», vivia de noite e era um blageur incorrigivel, e apezar de valer bem os seis milhões de portugueses que existem sobre esse solo, a Monarquia, o Paço, os conselheiros, não lhe achavam qualidades para triunfar nessa sociedade formalisada e cheia de convencionalismos. Está explicado o Fialho dos Gatos– foi a revolta. Meteu-lhes medo – oh sim, um medo terrivel com as suas blagues sangrentas – fazia-os passar de largo, mas ainda mais se afastou do ancien régime. Entre os republicanos, onde se lançou de alma e coração, sentiu-se depois desconsiderado. O Fialho continuava a ser… o blageur. Nunca lhe deram um cargo de confiança. Que pena teve o Fialho de não ficar na Comissão da subscrição nacional a quando do ultimatum!»

E termina com esta nota inedita:

«Sabe que o Fialho era um orador. Nunca ouviu dizer talvez que elle fizesse um discurso? Mas ouvi-lhe eu muitos, todos os dias, durante longos annos. A sua timidez invencivel nunca o deixou falar em publico apesar de, como ninguem, sentir a necessidade do aplauso. Muita vez me disse que desejaria ser actor, ser um grande actor, para ouvir bem de perto o som das palmas com que o saudariam, para viver intensamente, ruidosamente, uma grande hora de triunfo. Tinha coisas o Fialho… Registe esta nota curiosa pois muito poucos a sabem: era soberbo, orando alucinado para um auditorio de tres amigos intimos no alto da Avenida, ou noite alta, á beira do Tejo.»


*

Á figura que se senta ao pé de mim falta-lhe talvez a rigidez das estatuas. O gabinardo, reparem, está amachucado e encardido, a phisionomia retrae-se no escuro e só a bocca se salienta, enorme e prestes a escorraçar-nos com gritos e apupos. Atravessou a vida: foi injusto, foi cruel por vezes, foi amargo. Desatou a rir para não chorar. Atordoou-se com sarcasmos e phrases. Foi incoherente. Obedeceu ao impulso. Não se pôde furtar a sentimentos que veem do fundo dos fundos e nos deixam prostrados, reclamando da morte que nos apavora – enfim! enfim! – o primeiro dia de descanço bem ganho, ao termo desta discussão que nunca cessa e em que nos despedaçamos, sem nos comprehendermos a nós proprios quantos mais aos outros… Toda a sua alma, que deixou fragmentada em varias figuras, em todas as paginas dos seus livros, nos retratos, nos tipos, nas paisagens, no Manuel, em Guilherme de Azevedo ou na manhã do Tejo, se condensa enfim n'esta bocca amarga capaz ainda de nos fulminar de colera ou de acusar bem alto a vida que lhe foi impiedosa… É assim que te vejo ao pé de mim, com detrictos, escorrencias, lama, mas tão grande, tão vivo, tão humano, que para sintetisar a tua vida, só me servem as palavras com que um espectador ilustre sauda o Hamlet no fim da representação: – Boas noites, meu principe, és um homem, o homem e todo o homem!



    4 de Janeiro – 1908.

Morreu ante hontem d'albuminuria o pobre D. João da Camara. Tinha feito annos no dia 27. Conheci-o sempre, até nos maiores frios, de casaco d'alpaca, a sorrir… Antes de acabar sahiu do torpôr e, em dois acessos de delirio, descreveu o fim do mundo com terror e espanto. Depois rezou, disse versos seus, e ficou, n'um ultimo suspiro. Remexeram-lhe nos papeis e nos bolsos: só lhe encontraram recortes de jornaes, anuncios de desgraçados pedindo esmola.

Mezes depois ainda os pobres o procuravam nos sitios do costume: – O senhor D. João? o senhor D. João? – Morreu. – Morreu! morreu!.. – E partiam a chorar.

Agora é que eu sinto todo o encanto d'esse homem falando baixinho, a olhar a gente por cima das lunetas. Andou mal vestido. Não soube o valor do dinheiro. Desceu aos desgraçados com uma ternura e uma simplicidade de fidalgo e de santo. Nos ultimos quatro annos ganhou alguns tão vivo, tão humano, que para sintetisar a contos de reis: deu tudo, levaram-lhe tudo. Até de madrugada o procuravam para lhe pedirem dinheiro emprestado. E nunca o ouvi queixar-se, nem dizer mal de ninguem. Foi um poeta e um santo. Deixa, alem de algumas obras admiraveis, uma peça incompleta, com poucas scenas escriptas —As comadres de Panoia, e talvez se lhe encontrem tambem apontamentos de outra em que tanto falou e em que tanto sonhou —O Sermão da Montanha.



    18 de Março – 1900.

Faz hoje annos que morreu Antonio Nobre. Foi uma figura inconfundivel de poeta. Por mim nunca encontrei tambem rapaz mais lindo. Um pouco afectado talvez… Em pequeno ia com Eduardo Caminha enterrar os seus versos no jardim solitario do Palacio, e pedia, com os olhos limpidos e sofregos, uma Biblia para repousar a cabeça quando o levassem no caixão… Estou a ve-lo, com uma camisola de pescador, saltar pela janella da casa á beira rio, de Mattosinhos, onde Alberto d'Oliveira já imperava, esse mesmo Alberto d'Oliveira, esperto e tão dominador, que, quando entrava em casa dos outros, começava por os convencer a desarrumar os móveis, para os arrumar de novo a seu modo… Antonio Nobre usava uma abotoadura de cabeças de pregos e sorria com um modo e um ar de ternura e desdem. Fugiam d'elle antes de publicar o Só; os poetas do seu tempo odiaram-no depois de publicar o Só. Ser diferente dos outros é já uma desgraça; ser superior aos outros é uma desgraça muito maior. Viveu efectivamente isolado. No concurso para consul quizeram reprová-lo: foi preciso que Alberto d'Oliveira explicasse ao jury quem era o poeta Antonio Nobre. Não pôde formar-se em Coimbra, e até os seus amigos mais intimos lhe fugiram. Entrou na morte como tinha vivido – só. Até Alberto d'Oliveira teve de interromper uma amizade de irmão quando se encontrou diante d'este dilema: ou deixar-se dominar por elle, que o tratava como uma creança, ou feril-o em pleno coração: – A nossa amizade é de tal ordem que não admite que lhe desçam dois ou trez pontos á craveira. Ou mante-la ou quebra-la. – Quebrou-a. O ilustre escriptor possue d'esse tempo um caixão enorme, tão pesado como o que levou o poeta para a cova, com as cartas afectadas e vivas de Antonio Nobre, as cartas que tem obrigação de publicar, com um prefacio que só elle pode e deve escrever.

Digamol-o, digamol-o… No fundo detestaram-no, detestaram-no todos. Não lhe poderam perdoar a impertinencia, o desdem, o genio. Era um sêr diferente. Não agradava a ninguem. Só as mulheres o amaram. Era um Poeta. Desconheceu a vida pratica. Tinha a consciencia do seu valor, e uma superioridade que se não podia aturar. Estavamos todos mortos por nos desfazermos d'esse ser aparte, d'esse eterno consul sem consulado, d'esse estudante de Coimbra que os lentes reprovavam e que nos fazia sombra. Mas debalde o arredamos: houve uma coisa nova que passou no mundo e que ficou no mundo – que nos ficou na alma…

Agora estamos todos apaziguados, todos podemos esquecer a superioridade, a afectação e o desdem infantil de Antonio Nobre.

Foi para a cova completar trinta e tres annos n'um dia de chuva como este, frio e sujo, o poeta insolente como um principe e adoravel como uma creança. Quantos estavam alli á beira do tumulo? Meia duzia escassa, o Frei, o Justino, o Eduardo de Souza, eu – e quem mais? quantos mais? Os jornaes deram a sua morte em duas rapidas linhas. Respirou-se.

Hoje é um dos poetas portuguezes com mais admiradores. É um poeta de simpathia. Nunca teve sorte senão depois de morto. Porquê? Porque não misturou, como nós todos, o sonho com a vida pratica. Ao contrario, raros homens terão posto tão de acordo a vida com o sonho. Fez mais: suprimiu a vida. Correu o globo e só a si proprio se encontrou. Viu o mundo e nunca assistiu a outro drama que não fosse o da sua alma. E poentes, arvores, estrellas ou pedras, entraram-lhe no coração como espadas. Nenhum outro exprimiu d'uma forma tão sua o universo. Que universo dirás? O meu? o teu?.. Não, o que elle descobriu, scismando como um navegador, á prôa do seu barco… Por isso nunca hão-de faltar sonhadores que evoquem essa singular figura de poeta, que uma vez atravessou a terra, soluçou, monologou como Hamlet, e sumiu-se logo no sepulchro.



    30 de Janeiro – 1911.

Janota e coçado, com uma flor na botoeira e a fumar um charuto de dez reis, ahi vae o poeta Gomes Leal. Quem não viu n'outro tempo este homem extraordinario, não conheceu um verdadeiro, um authentico poeta satanico. Passou nas ruas de chapéo alto, falando com intimidade ás estrellas e tocando no céo com as guias do bigode. Escreveu as paginas das Claridades do Sul, da Traição e do Anti-Christo. Viveu alheado, como é indispensavel a quem convive todo o dia, tu cá, tu lá, com o sonho. Cantou a plebe, destruiu os deuses, arremessou sarcasmos aos banqueiros, satirisou o grotesco, e tocou-nos hombro com hombro, apontando altivo o cravo vermelho da lapela:

– Amigos, as flores são as condecorações dos poetas!

Prodigalisou-o a caricatura: teve na vida misterios perturbantes: um dia acometeram-no no comboio, em Espinho, quando regressava do Porto, até onde seguira a rainha Maria Pia, depois de lhe atirar uma rosa escarlate, que arrancou da botoeira, em plena praça, com um desdem supremo pela burguezia endinheirada… Sim, foi este que teve a gloria da cadeia, que cantou as estrellas, Jesus e Mephistopheles, foi este mesmo homem, a quem falta roupa na cama no inverno glacial, e que sorri com humildade para nós, avelhantado e timido… As janellas não teem vidros, a roupa é pouca, mas tu viveste o que não vive um rei, e o imperio deslumbrante, que creaste á custa de dôr, cheio de obscuridades e de genio, com catadupas d'oiro, como nas lendas, e palidas figuras; essa mescla de gritos, de paixão; esse sonho confuso e immenso, pertence-te, e não ha quem t'o roube, mesmo com as janellas abertas de par em par. Deixa entrar o frio – e sorri…

Agora vae todas as manhãs ouvir missa á Pena ou ao Resgate. É um homem encolhido e friorento, que a banalidade tem gasto e desgasto como as moedas fóra de curso que se fartaram de correr de mão em mão, e ainda ha dias o encontrei no Porto, n'uma manhã de sol, de casaco de borracha e colarinho suspeito. Ia pregar á Associação Catholica, e atravessava a Praça entre os aplausos dos palidos sachristas, que o rodeavam como quem força um deus, sem repararem que só levavam um simulacro. No sonho de outrora não ha mãos que se atrevam a tocar… Elle sorria enlevado, com o eterno charuto ao canto da bocca.

A vida feroz torna-nos grotescos. Consegue tudo. Deforma-nos. O proprio sonho entra ás vezes no dominio da chacota. Onde, porém, Garrett chega ao ridiculo, com tres cabelleiras postiças, Gomes Leal, de casaco de borracha e discursos de propaganda, atinge o tragico… Eu bem sinto a tristeza, bem sei, bem vejo o arranco, bem palpo a dôr. A figura que cheira a bafio como se sahisse do fundo do armario do passado para a plena luz, faz rir e faz chorar. No esforço para não ir ao fundo, no gesto de naufrago que se apéga com desespero, quando a dôr estala por todas as costuras, ha um rictus de clown. Olha lá: o peor é tu ousares tocar no que ha em mim de mais sagrado, o peor é tu transformares-me o sonho n'uma noticia do Seculo, o peor de tudo é tu atreveres-te a tocar n'este jardim da vida – e, peor ainda, é que eu continuo a sorrir como se possuisse o antigo thesouro de Ali-Baba. Mais um momento, outro passo e reduzes-me á condição de trapo. Deitas-te commigo, acordo comtigo ao meu lado, e ha occasiões em que até o som da minha voz me sobresalta. Por ora debato-me, por ora sinto o coração opresso, fingindo que não existes, mas ha já terror no meu sorriso, e, quando me ouço, ouço-te tambem os passos. Sei perfeitamente que o momento terrivel depende de um unico traço de separação – agora, já, d'aqui a bocado…

Estás por traz de mim e o minuto grotesco será quando eu deixar de te conhecer e quando sentir a tua mão gelada… Estás por traz de mim! estás por traz de mim! Bem sei que estás por traz de mim, e que vaes ser a minha companhia até á cova. Confesso-te: o que me aterra não é o momento que passou, nem o que ha-de vir – é o momento, que vale um seculo, em que tenho de galgar o abysmo. Por ora teimo, por ora ainda digo: – A sciencia, meu rapaz, sabes o que é? É um cifrão cortado. – Mas como o digo!..

…Ha um momento tetrico nos Espectros em que um novo personagem se introduz em scena. Desde o principio que o sabemos atraz da frandulagem de papelão: está alli presente, não como uma figura de theatro, mas monstruoso, real e patente, como o Destino, á espera de intervir. Desde então perco o fio da peça, não sigo mais os bonecos que se agitam no tablado, só ouço o meu proprio monologo, e quedo-me d'olhos atonitos n'outro espectaculo atroz. Tenho a certeza absoluta de que não ha forças humanas que lhe detenham a marcha. Começa então a tragedia…

É este mesmo personagem que se intromete na vida do poeta. As palavras conteem ainda e sempre as mesmas letras, mas até as palavras mirraram. Esqueci tudo, troquei tudo pelo sonho, e, quando tu quizeres, de mim proprio ficarei desconhecido! Como eu comprehendo agora aquella phrase de outro poeta: «Sinto que não posso trabalhar! sinto que não posso trabalhar!» É com esta angustia que te ouço os passos mais perto. Já não é só a scena que tu enches, é a sala toda, figura invisivel, unico personagem do drama, que te entranhas na alma dos espectadores. Emquanto os bonecos teimam em pronunciar palavras que não ouço, que não teem significação nem importam, tu levas-me, quer eu queira, quer não queira, a sorrir com enlevo á propria banalidade.


*

A casa em que mora Gomes Leal, na esquina do palacio da Bemposta, parece arrancada a um velho quadro de Velasquez, com a sua entrada de pedra e um arco na escada. O soalho entreaberto oscila, as janellas não teem vidros. Conheço-a. Já lá morei ha annos no mesmo quarto que dá para um quintalorio, com duas ou trez oliveiras carcomidas. Do buraco, onde nunca chega o sol, sae um frio de morte. Bato, a porta abre-se, o soalho range, e o poeta surge com o velho chapeu ás trez pancadas, luvas pretas – até de luvas escreve Gomes Leal! – e no quarto desagasalhado ha luvas por toda a parte, por cima das mezas, entre os livros, penduradas no tecto. O leito é um catre. Ao lado um Christo, uma mezinha de pé de gallo, e no soalho apodrecido, montões de jornaes e de livros. Na parede, que ressuma humidade, um quadro a crayon, com o vidro partido: o retrato da mãe de Gomes Leal.

– Vivo só, não tenho familia. Minha mãe morreu-me e aqui estou como um orphão.

– Vive isolado sempre?

– Levanto-me cedo, vou aos templos. Depois passo pelas bibliothecas e pelos livreiros e venho para casa escrever. Almoço e janto onde calha. Quando tenho bebo para esquecer, á noite escrevo, deito-me cedo e durmo… Tenho trez livros para publicar: As memorias d'um revoltado, continuação da historia da minha vida, O macaco de Nero, estudo de Roma, e o livro em prosa Cidade do Diabo, onde trato da decadencia do mundo moderno. Comecei tambem Christo nos infernos





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notes



1


Estas Memorias devem formar quatro volumes: – 2.º vol. – Os bastidores da monarchia. Vida literaria. Theatro por dentro; 3.º vol. – A Republica. O comercio e a finança. Jornaes e jornalistas; 4.º vol. – A Republica e os seus homens. Vida militar.




2


Republica, 23 de Fevereiro de 1915.



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