Книга - Os Lusíadas

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Os Lusíadas
Luís Camões






Os Lusíadas



Eu el Rey faço ſaber aos que eſte Aluara virem que eu ey por bem & me praz dar licença a Luis de Camoẽs pera que poſſa fazer imprimir neſta cidade de Lisboa, hũa obra em Octaua rima chamada Os Luſiadas, que contem dez cantos perfeitos, na qual por ordem poetica em verſos ſe declarão os principaes feitos dos Portugueſes nas partes da India depois que ſe deſcobrio a nauegação pera ellas por mãdado del Rey dom Manoel meu viſauo que ſancta gloria aja, & iſto com priuilegio pera que em tempo de dez anos que ſe começarão do dia que ſe a dita obra acabar de empremir em diãte, ſe não poſſa imprimir nẽ vender em meus reinos & ſenhorios nem trazer a elles de fora, nem leuar aas ditas partes da India pera ſe vender ſem licẽça do dito Luis de Camoẽs ou da peſſoa que pera iſſo ſeu poder tiuer, ſob pena de quẽ o contrario fizer pagar cinquoenta cruzados & perder os volmes que imprimir, ou vender, a metade pera o dito Luis de Camoẽs, & a outra metade pera quem os acuſar. E antes de ſe a dita obra vender lhe ſera poſto o preço na meſa do deſpacho dos meus Deſembargadores do paço, o qual ſe declarará & porá impreſſo na primeira folha da dita obra pera ſer a todos notorio, & antes de ſe imprimir ſera viſta & examinada na meſa do conſelho geral do ſanto officio da Inquiſição pera cõ ſua licença ſe auer de imprimir, & ſe o dito Luis de Camões tiuer acrecentados mais algũs Cantos, tambem ſe imprimirão auendo pera iſſo licença do ſancto officio, como acima he dito. E eſte meu Aluara ſe imprimirà outroſi no principio da dita obra, o qual ey por bem que valha & tenha força & vigor, como ſe foſſe carta feita em meu nome por mim aſſinada & paſſada por minha Chancellaria ſem embargo da Ordenação do ſegundo liuro, tit. xx. que diz que as couſas cujo effeito ouuer de durar mais que hum ano paſſem per cartas, & paſſando por aluaras não valhão. Gaſpar de Seixas o fiz em Lisboa, a .xxiiij: de Setembro, de M.D.LXXI. Iorge da Coſta o fiz eſcreuer.




OS LVSIADAS DE LVIS DE CAMÕES





Canto primeiro


As armas, & os barões aſsinalados,
Que da Occidental praya Luſitana,
Por mares nunca de antes nauegados,
Paſſaram, ainda alem da Taprobana,
Em perigos, & guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana.
E entre gente remota edificarão
Nouo Reino, que tanto ſublimarão.

E tambem as memorias glorioſas
Daquelles Reis, que forão dilatando
A Fee, o Imperio, & as terras vicioſas
De Affrica, & de Aſia, andarão deuaſtando,
E aquelles que por obras valeroſas
Se vão da ley da Morte libertando.
Cantando eſpalharey por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho & arte.

Ceſſem do ſabio Grego, & do Troyano,
As nauegações grandes que fizerão:
Calleſe de Alexandro, & de Trajano,
A fama das victorias que tiuerão,
Que eu canto o peyto illuſtre Luſitano,
A quem Neptuno, & Marte obedeçerão:
Ceſſe tudo o que a Muſa antigua canta,
Que outro valor mais alto ſe aleuanta.

E vos Tagides minhas, pois criado
Tendes em my hum nouo engenho ardente.
Se ſempre em verſo humilde, celebrado
Foy de my voſſo rio alegremente,
Daime agora hum ſom alto, & ſublimado,
Hum estillo grandiloco, & corrente,
Porque de voſſas agoas Phebo ordene,
Que não tenhão enueja aas de Hypocrene.

Daime hũa furia grande & ſonoroſa,
E não de agreſte a vena, ou frauta ruda:
Mas de tuba canora & belicoſa,
Que o peito acende, & a cor ao geſto muda:
Daime igoal canto aos feitos da famoſa
Gente voſſa, que a Marte tanto ajuda:
Que ſe eſpalhe & ſe conte no vniuerſo,
Se tam ſublime preço cabe em verſo.

E vos ò bem naſcida ſegurança
Da Luſitana antigua liberdade,
E não menos certiſsima eſperança,
De aumento da pequena Chriſtandade:
Vos o nouo temor da Maura lança,
Marauilha fatal da noſſa idade:
Dada ao mundo por Deos q̃ todo o mande,
Pera do mundo a Deos dar parte grande.

Vos tenrro, & nouo ramo florecente,
De hũa aruore de Christo mais amada
Que nenhũa naſcida no Occidente,
Ceſarea, ou Christianiſsima chamada:
Vedeo no voſſo eſcudo, que preſente
Vos amostra a victoria ja paſſada.
Na qual vos deu por armas, & deixou
As que elle pera ſi na Cruz tomou.

Vos poderoſo Rei, cujo alto Imperio,
O Sol logo em naſcendo ve primeiro:
Veo tambem no meio do Hemiſpherio,
E quando dece o deixa derradeiro.
Vos que eſperamos jugo & vituperio,
Do torpe Ismaelita caualleiro:
Do Turco Oriental, & do Gentio,
Que inda bebe o licor do ſancto Rio.

Inclinay por hum pouco a magestade,
Que neſſe tenrro gesto vos contemplo,
Que ja ſe mostra, qual na inteira idade,
Quando ſobindo yreis ao eterno templo,
Os olhos a real benignidade
Ponde no chão: vereis hum nouo exemplo,
De amor, dos patrios feitos valeroſos,
Em verſos deuulgado numeroſos.

Vereis amor da patria, não mouido
De premio vil: mas alto, & quaſi eterno
Que nam he premio vil, ſer conhecido
Por hum pregão do ninho meu paterno.
Ouui vereis o nome engrandecido
Daquelles de quem ſois ſenhor ſuperno.
E julgareis qual he mais excelente,
Se ſer do mundo Rei, ſe de tal gente:

Ouui, que não vereis com vãs façanhas
Fantaſticas, fingidas, mentiroſas,
Louuar os voſſos, como nas eſtranhas
Muſas, de engrandecerſe deſejoſas,
As verdadeiras voſſas ſam tamanhas,
Que excedem as ſonhadas fabuloſas:
Que excedem Rodamonte, & o vão Rugeiro,
E Orlando, inda quefora verdadeiro.

Por eſtes vos darey hum Nuno fero,
Que fez ao Rei, & ao Reino tal ſeruiço,
Hum Egas, & hũ dom Fuas, q̃ de Homero
A Citara parelles ſo cobiço:
Pois polos doze pares daruos quero,
Os doze de Inglaterra, & o ſeu Magriço.
Douuos tambem aquelle illustre Gama,
Que para ſi de Eneas toma a fama.

Pois ſe a troco de Carlos Rei de França,
Ou de Ceſar, quereis iqual memoria:
Vede o primeiro Afonſo, cuja lança
Eſcura faz qualquer eſtranha gloria:
E aquelle que a ſeu Reino a ſegurança
Deixou, com a grande & proſpera victoria.
Outro Ioane, inuicto caualleiro,
O quarto, & quinto Afonſos, & o terceiro.

Nem deixarão meus verſos eſquecidos,
Aquelles que nos Reinos la da Aurora,
Se fizerão por armas tam ſubidos,
Voſſa bandeira ſempre vencedora.
Hum Pacheco fortiſsimo, & os temidos
Almeidas, por quem ſempre o Tejo chora.
Albuquerque terribil, Caſtro forte,
E outros em quem poder não teue a morte.

E em quanto eu eſtes canto, & a vos nam poſſo
Sublime Rei, que nam me atreuo a tanto,
Tomay as redeas vos do Reino voſſo,
Dareis materia a nunca ouuido canto:
Comecem a ſentir o peſo groſſo,
(Que polo mundo todo faça eſpanto,)
De exercitos, & feitos ſingulares,
De affricas as terras, & do Oriente os mares.

Em vos os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vè ſeu exicio afigurado,
So com vos ver o barbaro Gentio,
Moſtra o peſcoço ao jugo ja inclinado:
Thetis todo o ceruleo ſenhorio,
Tem pera vos por dote aparelhado:
Que affeiçoada ao geſto bello, & tenro,
Deſeja de compraruos pera genro.

Em vos ſe vem da Olimpica morada,
Dos ous auôs, as almas ca famoſas,
Hũa na paz Angelica dourada,
Outra polas batalhas ſanguinoſas:
Em vos eſperão, verſe renouada,
Sua memoria, & obras valeroſas.
E la vos tem lugar no fim da idade,
No templo da ſuprema eternidade.

Mas em quanto eſte tempo paſſa lento,
De regerdes os pouos, que o deſejão:
Day vos fauor ao nouo atreuimento,
Pera que estes meus verſos voſſos ſejão:
E vereis ir cortando o ſalſo argento:
Os voſſos Argonautas, por que vejão,
Que ſam vistos de vos no mar yrado,
E costumaiuos ja a ſer inuocado.

Ia no largo Occeano nauegauão,
As inquietas ondas apartando,
Os ventos brandamente reſpirauão,
Das naos as vellas concauas inchando:
Da branca eſcuma, os mares ſe moſtrauão
Cubertos, onde as proas vão cortando.
As maritimas agoas conſagradas,
Que do gado de Proteo ſam cortadas.

Quando os Deuſes no Olimpo luminoſo,
Onde o gouerno esta, da humana gente,
Se ajuntão em conſilio glorioſo,
Sobre as couſas futuras do Oriente:
Piſando o criſtalino Ceo fermoſo,
Vem pela via Lactea, juntamente
Conuocados da parte do Tonante,
Pelo Neto gentil do velho Atlante.

Deixão dos ſete Ceos o regimento,
Que do poder mais alto lhe foi dado,
Alto poder, que ſo co penſamento
Governa o Ceo, a Terra, & o Mar yrado:
Ali ſe acharão juntos num momento,
Os que habitão o Arcturo congelado.
E os que o Auſtro tem, & as partes onde
A Aurora naſce, & o claro Sol ſe eſconde.

Eſtava o Padre ali ſublime & dino,
Que vibra os feros rayos de Vulcano,
Num aſſento de estrellas criſtalino,
Com geſto alto, ſevero, & ſoberano,
Do roſto reſpiraua hum ar diuino,
Que diuino tornàra hum corpo humano:
Com hũa coroa, & ceptro rutilante,
De outra pedra mais clara que diamante.

Em luzentes aſſentos, marchetados
De ouro, & de perlas, mais abaixo estavão
Os outros Deuſes todos aſſentados,
Como a Razão, & a Ordem concertauão.
Precedem os antiguos mais honrrados,
Mais abaixo os menores ſe aſſentauão:
Quando Iupiter alto, aſſy dizendo,
Cum tom de voz começa, graue & horrendo.

Eternos moradores do luzente
Eſtelifero polo & claro aſſento,
Se do grande valor da forte gente,
De Luſo, não perdeis o penſamento,
Deueis de ter ſabido claramente
Como he dos fados grandes certo intento
Que por ella ſeſqueção os humanos,
De Aſsirios, Perſas, Gregos & Romanos.

Ia lhe foy (bem o vistes) concedido
Cum poder tam ſingelo & tam pequeno
Tomar ao Mouro forte & guarnecido,
Toda a terra que rega o Tejo ameno:
Pois contra o Caſtelhano tam temido
Sempre alcançou fauor do Ceo ſereno.
Aſsi que ſempre em fim com fama & gloria,
Teue os tropheos pendentes da victoria.

Deixo Deoſes atras a fama antigua,
Que co a gente de Romulo alcançarão,
Quando com Viriato, na inimiga
Guerra Romana tanto ſe affamarão.
Tambem deixo a memoria, que os obriga
A grande nome, quando aleuantarão
Hum, por ſeu capitão, que peregrino
Fingio na Cerua eſpirito diuino.

Agora vedes bem, que cometendo,
O diuidoſo mar, num lenho leue,
Por vias nunca vſadas, não temendo
De Affrico & Noto a força a mais ſatreue:
Que auendo tanto ja que as partes vendo,
Onde o dia he comprido, & onde breue.
Inclinão ſeu propoſito, & perfia
A ver os berços, onde naſce o dia

Prometido lhe eſtà do fado eterno,
Cuja alta ley nam pode ſer quebrada,
Que tenhão longos tempos o gouerno
Do mar, que vé do Sol a roxa entrada.
Nas agoas tem paſſado o duro Inuerno,
A gente vem perdida & trabalhada.
Ia parece bem feito, que lhe ſeja
Mostrada a noua terra que deſeja.

E porque, como viſtes, tem paſſados
Na viagem, tam aſperos perigos,
Tantos Climas & Ceos experimentados,
Tanto furor de ventos inimigos
Que ſejam, de termino, agaſalhados
Neſta coſta affricana como amigos.
E tendo guarnecida a laſſa frota,
Tornarão a ſeguir ſua longa rata.

Eſtas palauras Iupiter dezia,
Quando os Deoſes por ordem reſpondendo,
Na ſentença hum do outro difiria,
Razões diuerſas dando & recebendo.
O padre Baco, ali nam conſentia
No que Iupiter diſſe, conhecendo
Que eſquecerão ſeus feitos no Oriente,
Se la paſſar a Luſitana gente.

Ouuido tinha aos Fados que viria
Hũa gente fortiſsimo de Heſpanha,
Pelo mar alto, a qual ſojeitaria
Da India, tudo quanto Doris banha:
E com nouas victorias venceria,
A fama antiga, ou ſua, ou foſſe eſtranha.
Altamente lhe doe perder a gloria,
De que Niſa celebra inda a memoria.

Ve que ja teue o Indo ſojugado,
E nunca lhe tirou Fortuna, ou caſo,
Por vencedor da India ſer cantado,
De quantos bebem a agoa de Parnaſo.
Teme agora que ſeja ſepultado,
Seu tam celebre nome, em negro vaſo,
Dagoa do eſquecimento, ſe la chegão
Os fortes Portugueſes, que nauegão,

Suſtentaua contra elle Venus bella,
Affeiçoada aa gente Luſitana,
Por quantas qualidades via nella,
Da antiga tam amada ſua Romana,
Nos fortes corações, na grande estrella,
Que mostrarão na terra Tingitana:
E na lingoa, na qual, quando imagina,
Com pouca corrupção cre que he a Latina.

Eſtas cauſas mouião Cyterea,
E mais, porque das Parcas claro entende
Que ha de ſer celebrada a clara Dea,
Onde a gente beligera ſe eſtende.
Aſsi que hum pela infamia que arrecea,
E o outro polas honras que pretende,
Debatem, & na perfia permanecem,
A qualquer ſeus amigos fauorecem:

Qual Auſtro fero, ou Boreas na eſpeſſura,
De ſilueſtre aruoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata eſcura,
Com impito & braueza deſmedida.
Brama toda montanha, o ſom murmura,
Rompenſe as folhas, ferue a ſerra erguida.
Tal andaua o tumulto leuantado,
Entre os Deoſes no Olimpo conſagrado.

Mas Marte que da Deoſa ſuſtentaua,
Entre todos as partes em porfia,
Ou por que o amor antiguo o obrigaua,
Ou porque a gente forte o merecia,
De entre os Deoſes em pee ſe leuantaua,
Merencorio no gesto parecia:
O forte eſcudo ao collo pendurado,
Deitando para tràs medonho e irado.

A viſeira do elmo de Diamante,
Aleuantando hum pouco, muy ſeguro,
Por dar ſeu parecer ſe pos diante
De Iupiter, armado, forte & duro:
E dando hũa pancada penetrante,
Co conto do baſtão, no ſolio puro:
O ceo tremeo, & Apolo de toruado,
Hum pouco a luz perdeo, como infiado.

E diſſe aſsi, ò padre a cujo imperio,
Tudo aquillo obedece, que criaſte,
Se eſta gente que buſca outro Emiſpherio,
Cuja valia, & obras tanto amaſte:
Não queres que padeção vituperio,
Como ha ja tanto tempo que ordenaste
Não ouças mais, pois es juyz direito,
Razões de quem parece que he ſoſpeito.

Que ſe aqui a razão ſe não mostraſſe
Vencida do temor demaſiado,
Bem fora que aqui Baco os ſoſtentaſſe,
Pois que de Luſo vem, ſeu tam priuado:
Mas eſta tenção ſua, agora paſſe,
Porque em fim vem de eſtamago danado.
Que nunca tirarà alhea enueja,
O bem que outrem mereçe, & o ceo deſeja.

E tu padre de grande fortaleza,
Da determinaçam que tẽs tomada,
Nam tornes por detras pois he fraqueza
Deſistir ſe da couſa começada.
Mercurio pois excede em ligeireza
Ao vento leue, & aa ſeta bem talhada,
Lhe va mostrar a terra, onde ſe informe
Da India, & onde a gente ſe reforme.

Como iſto diſſe o Padre poderoſo,
A cabeça inclinando, conſentio
No que diſſe Mauorte valeroſo,
E Nectar ſobre todos eſparzio:
Pelo caminho Lacteo glorioſo,
Logo cada hum dos Deoſes ſe partio.
Fazendo ſeus reaes acatamentos,
Pera os determinados apouſentos.

Em quanto iſto ſe paſſa, na fermoſa
Caſa eterea do Olimpo omnipotente
Cortaua o mar a gente belicoſa:
Ia la da banda do Auſtro, & do Oriente,
Entre a coſta Ethiopica, & a famoſa
Ilha de ſam Lourenço, & o Sol ardente
Queimaua entam os Deoſes, que Tifeô
Co temor grande em pexes conuerteô.

Tam brandamente os ventos os leuauão,
Como quem o ceo tinha por amigo:
Sereno o ar, & os tempos ſe mostrauão
Sem nuuẽs, ſem receio de perigo:
O promontorio praſſo ja paſſauão
Na coſta de Ethiopia, nome antiguo.
Quando o mar deſcobrindo lhe moſtraua,
Nouas ilhas que em torno cerca, & laua.

Vaſco da gama, o forte Capitão,
Que a tamanhas empreſas ſe offerece,
De ſoberbo, & de altiuo coração,
A quem fortuna ſempre fauorece
Pera ſe aqui deter, não ve razão,
Que inhabitada a terra lhe parece:
Por diante paſſar determinaua:
Mas nam lhe ſoccedeo como cuydaua.

Eis aparecem logo em companhia,
Hũs pequenos bateis, que vem daquella
Que mais chegada à terra parecia,
Cortando o longo mar com larga vella:
A gente ſe aluoroça, & de alegria
Não ſabe mais que olhar a cauſa della.
Que gente ſera eſta, em ſi dezião,
Que costumes, que ley, que Rei terião?

As embarcações erão, na maneira
Muy veloces, eſtreitas, & compridas,
As vellas com que vem erão de eſteira,
Dũas folhas de Palma bem tecidas:
A gente da cor era verdadeira,
Que Phaeton, nas terras acendidas
Ao mundo deu, de ouſado, & não prudente,
O Pado o ſabe, & Lampetuſa o ſente.

De panos de algodão vinhão veſtidos,
De varias cores, brancos, & liſtrados,
Hũs trazem derredor de ſi cingidos,
Outros em modo ayroſo ſobraçados,
Das cintas pera cima vem deſpidos:
Por armas tem adagas, & tarçados.
Com toucas na cabeça, & nauegando,
Anafis ſonoroſos vão tocando.

Cos panos, & cos braços açenauão,
Aas gentes Luſitanas, que eſperaſſem:
Mas ja as proas ligeiras, ſe inclinauão,
Pera que junto aas Ilhas amainaſſem.
A gente, & marinheiros trabalhauão,
Como ſe aqui os trabalhos ſacabaſſem:
Tomão vellas, amainaſe a verga alta,
Da ancora o mar ferido, encima ſalta.

Não erão ancorados, quando a gente
Eſtranha, polas cordas ja ſubia,
No geſto ledos vem, & humanamente,
O Capitão ſublime os recebia.
As meſas manda por em continente,
Do licor que Lieo prantado auia:
Enchem vaſos de vidro, & do que deitão,
Os de Phaeton queimados nada engeitão.

Comendo alegremente perguntauão,
Pela Arabica lingoa, donde vinhão,
Quem erão, de que terra, que buſcauão,
Ou que partes do mar corrido tinhão?
Os fortes Luſitanos lhe tornauão,
As diſcretas repostas que conuinhão.
Os Portugueſes ſomos do Occidente,
Himos buſcando as terras do Oriente.

Do mar temos corrido, & nauegado
Toda a parte do Antartico, & Caliſto,
Toda a coſta Affricana rodeado,
Diuerſos Ceos, & Terras temos viſto:
Dum Rei potente ſomos, tam amado,
Tam querido de todos, & bem quisto:
Que nam no largo Mar, com leda fronte:
Mas no lago entraremos de Acheronte.

E por mandado ſeu, buſcando andamos
A terra Oriental, que o Indo rega,
Por elle o Mar remoto nauegamos,
Que ſo dos feos Focas ſe nauega:
Mas ja razão parece que ſaibamos,
Se entre vos a verdade não ſe nega.
Quem ſois, que terra he eſta que abitais?
Ou ſe tendes da India algũs ſinais?

Somos, hum dos das Ilhas lhe tornou,
Eſtrangeiros na terra, Lei, & nação
Que os proprios, ſam aquelles que criou
A Natura ſem Lei, & ſem Razão:
Nos temos a Lei certa que inſinou,
O claro deſcendente de Abrahão:
Que agora tem do Mundo o ſenhorio,
A mãy Hebrea teue, & o pai Gentio.

Esta Ilha pequena que habitamos,
He em toda eſta terra certa eſcala,
De todos os que as Ondas nauegamos,
De Quiloa, de Mombaça, & de Sofala:
E por ſer neceſſaria, procuramos,
Como proprios da terra, de habitala.
E porque tudo em fim vos notifique,
Chamaſe a pequena Ilha Moçambique.

E ja que de tam longe nauegais,
Buſcando o Indo Idaſpe, & terra ardente,
Piloto aqui tereis, por quem ſejais
Guiados pelas ondas ſabiamente.
Tambem ſera bemfeito que tenhais,
Da terra algum refreſco, & que o Regente
Que esta terra gouerna, que vos veja,
E do mais neceſſario vos proueja.

Iſto dizendo, o Mouro ſe tornou
A ſeus bateis com toda a companhia,
Do Capitão & gente ſe apartou,
Com mostras de deuida corteſia:
Niſto Febo nas agoas encerrou,
Co carro de Christal, o claro dia:
Dando cargo aa Irmaã, que alumiaſſe,
O largo Mundo, em quanto repouſaſſe.

A noyte ſe paſſou na laſſa frota,
Com eſtranha alegria, & não cuydada,
Por acharem da terra tão remota,
Noua de tanto tempo deſejada:
Qualquer então conſigo cuyda, & nota
Na gente, & na maneira deſuſada.
E como os que na errada Seita crérão,
Tanto por todo o mundo ſe eſtendérão.

Da Lũa os claros rayos rutilauão,
Polas argenteas ondas Neptuninas,
As Estrellas os Ceos acompanhauão.
Qual campo reueſtido de boninas,
Os furioſos ventos repouſauão,
Polas couas eſcuras peregrinas.
Porem da armada a gente vigiaua,
Como por longo tempo coſtumaua.

Mas aſſy como a Aurora marchetada,
Os fermoſos cabellos eſpalhou,
No Ceo ſereno, abrindo a roxa entrada,
Ao claro Hiperionio que acordou,
Começa a embandeirarſe toda a armada,
E de todos alegres ſe adornou:
Por receber com festas, & alegria,
O Regedor das Ilhas que partia.

Partia alegremente nauegando,
A ver as naos ligeiras Luſitanas,
Com refreſco da terra, em ſi cuidando,
Que ſam aquellas gentes inhumanas:
Que os apouſentos Caſpios habitando,
A conquiſtar as terras Aſianas
Vierão: & por ordem do deſtino,
O Imperio tomarão a Coſtantino.

Recebe o Capitão alegremente,
O Mouro, & toda ſua companhia,
Dalhe de ricas peças hum preſente,
Que ſo pera eſte effeito ja trazia:
Dalhe conſerua doçe, & dalhe o ardente
Não vſado licor que dâ alegria.
Tudo o Mouro contente bem recebe,
E muito mais contente come, & bebe.

Eſtà a gente maritima de Luſo,
Subida pela exarcia, de admirada,
Notando o estrangeiro modo, & vſo,
E a lingoagem tam barbara & enleada.
Tambem o Mouro astuto eſtà confuſo,
Olhando a cor, o trajo, & a forte armada.
E perguntando tudo lhe dezia,
Se porventura vinhão de Turquia.

E mais lhe diz tambem, que ver deſeja
Os liuros de ſua ley, preceito, ou fé,
Pera ver ſe conforme à ſua ſeja,
Ou ſe ſam dos de Christo, como crè:
E porque tudo note, & tudo veja,
Ao Capitão pedia, que lhe dé,
Mostra das fortes armas de que vſauão,
Quando cos inimigos pelejauão.

Responde o valeroſo Capitão,
Por hum que a lingoa eſcura bem ſabia:
Darte ey Senhor illuſtre relação
De my, da ley, das armas que trazia:
Nem ſou da terra, nem da geraçam,
Das gentes enojoſas de Turquia:
Mas ſou da forte Europa belicoſa,
Buſco as terras da India tam famoſa?

A ley tenho daquelle, a cujo imperio
Obedece o viſibil, & inuiſibil,
Aquelle que criou todo o Emispherio,
Tudo o que ſente, & todo o inſenſibil
Que padeceo deshonra, & vituperio,
Sofrendo morte injuſta, & inſufribil:
E que do ceo aa terra em fim deceo,
Por ſubir os mortais da terra ao ceo.

Deste Deos homem, alto, & infinito,
Os Liuros que tu pedes, nam trazia,
Que bem poſſo eſcuſar trazer eſcripto
Em papel, o que na alma andar deuia.
Se as armas queres ver, como tẽs dito,
Comprido eſſe deſejo te ſeria:
Como amigo as veras, porque eu me obrigo,
Que nunca as queiras ver como inimigo.

Iſto dizendo, manda os diligentes
Miniſtros, amoſtrar as armaduras,
Vem arneſes, & peitos reluzentes,
Malhas finas, & laminas ſeguras,
Eſcudos de pinturas differentes,
Pilouros, eſpingardas de aço puras,
Arcos, & ſagittiferas aljauas,
Partaſanas agudas, chuças brauas.

As bombas vem de fogo, & juntamente
As panellas ſulfureas, tam danoſas,
Porem aos de Vulcano nam conſente
Que dem fogo aas bombardas temeroſas:
Porque o generoſo animo, & valente,
Entre gentes tam poucas, & medroſas,
Não mostra quanto pode, & com razão,
Que he fraqueza entre ouelhas ſer lião.

Porem diſto que o Mouro aqui notou,
E de tudo o que vio, com olho atento,
Hum odio certo na alma lhe ficou,
Hũa vontade mà de penſamento.
Nas moſlras, & no gesto o não moſtrou:
Mas com riſonho, & ledo fingimento,
Tratalos brandamente determina,
Ate que moſtrar poſſa o que imagina.

Pilotos lhe pedia o Capitão,
Por quem podeſſe aa India ſer leuado,
Dizlhe, que o largo premio leuarão,
Do trabalho que niſſo for tomado.
Prometelhos o Mouro, com tenção
De peito venenoſo, & tão danado:
Que a morte ſe podeſſe neste dia,
Em lugar de Pilotos lhe daria.

Tamanho o odio foy, & a mà vontade,
Que aos eſtrangeiros ſupito tomou,
Sabendo ſer ſequaces da verdade,
Que o filho de Dauid nos enſinou,
Os ſegredos daquella Eternidade
A quem juyzo algum não alcançou.
Que nunca falte hum perfido inimigo,
A aqueles de quem foſte tanto amigo?

Partioſe nisto em fim co a companhia,
Das naos o falſo Mouro despedido,
Com enganoſa & grande corteſia,
Com geſto ledo a todos, & fingido:
cortárão os bateis a curta via
Das agoas de Neptuno, & recebido
Na terra do obſequente ajuntamento,
Se foy o Mouro ao cognito apouſento:

Do claro aſſento Etereo, o grão Tebano,
Que da paternal coxa foy naſcido
Olhando o ajuntamento Luſitano,
Ao Mouro ſer moleſto, & auorrecido:
No penſamento cuyda hum falſo engano
Com que ſeja de todo deſtruydo.
E em quanto iſto ſo na alma imaginaua
Configo eſtas palauras praticaua.

Eſtà do fado ja determinado,
Que tamanhas victorias tam famoſas,
Ajão os Portugueſes alcançado,
Das Indianas gentes belicoſas.
E eu ſo filho do Padre ſublimado,
Com tantas qualidades generoſas:
Ey de ſofrer que o Fado fauoreça
Outrem, por quem meu nome ſe eſcureça?

Ia quiſeram os Deoſes que tiueſſe,
O filho de Filipo neſta parte,
Tanto poder, que tudo ſometeſſe
Debaixo do ſeu jugo, o fero Marte:
Mas aſſe de ſoffrer que o Fado deſſe,
A tam poucos tamanho esforço, & arte
Queu co gram Macedonio, & Romano,
Demos lugar ao nome Luſitan?

Não ſera aſſy, porque antes que chegado
Seja eſte Capitão, astutamente
Lhe ſera tanto engano fabricado,
Que nunca veja as partes do Oriente:
Eu decerey aa terra, & o indignado
Peito, reuoluerey da Maura gente,
Porque ſempre por via yra dereita,
Quem do oportuno tempo ſe aproueita.

Iſto dizendo yrado, & quaſi inſano,
Sobre a terra Affricana deſcendeo,
Onde vestindo a forma & geſto humano,
Pera o Praſſo ſabido ſe moueo.
E por milhor tecer o aſtuto engano,
No geſto natural ſe conuerteo,
Dum Mouro, em Moçambique conhecido,
Velho, ſabio, & co Xeque muy valido.

E entrando aſſy a falarlhe, a tempo & horas,
A ſua falſidade acomodadas,
Lhe diz como erão gentes roubadoras,
Eſtas que ora de nouo ſam chegadas:
Que das nações na coſta moradoras,
Correndo a fama veio, que roubadas,
Forão por estes homẽs que paſſauão,
Que com pactos de paz ſempre ancorauão.

E ſabe mais, lhe diz, como entendido
Tenho destes Christãos ſanguinolentos,
Que quaſi todo o mar tem destruido,
Com roubos, com incendios violentos:
E trazem ja de longe engano vrdido,
Contra nos, & que todos ſeus intentos
Sam pera nos matarem, & roubarem,
E molheres & filhos captiuarem.

E tambem ſey que tem determinado,
De vir por agoa a terra muito cedo,
O Capitão dos ſeus acomponhado,
Que da tençam danada naſce o medo:
Tu deues de yr tambem cos teus armado
Eſperallo em cilada, occulto & quedo:
Por que ſaindo a gente deſcuydada,
Cairão facilmente na cilada.

E ſe inda não ficarem deste geito,
Destruydos, ou mortos totalmente,
Eu tenho imaginada no conceito,
Outra manha & ardil que te contente:
Mandalhe dar Piloto, que de geito
Seja aſtuto no engano, & tam prudente,
Que os leue aonde ſejão deſtruydos,
Desbaratados mortos, ou perdidos.

Tanto que eſtas palauras acabou,
O Mauro nos tais caſos, ſabio & velho
Os braços pelo collo lhe lançou,
Agradecendo muito o tal conſelho:
E logo neſſe inſtante concertou,
Pera a guerra o beligero aparelho:
Pera que ao Portugues ſe lhe tornaſſe,
Em roxo ſangue a agoa que buſcaſſe.

E buſca mais pera o cuydado engano,
Mouro que por Piloto aa nao lhe mande,
Sagaz, aſtuto, & ſabio em todo o dano
De quem fiar ſe poſſa hum feito grande,
Dizlhe que acompanhando o Luſitano,
Por tais coſtas, & mares co elle ande:
Que ſe daqui eſcapar, que la diante
Va cair onde nunca ſe aleuante.

Ia o rayo Apolina viſitaua,
Os Montes Nabatheos acendido,
Quando Gama cos ſeus determinaua,
De vir por agoa a terra apercebido:
A gente nos bateis ſe concertaua,
Como ſe foſſe o engano ja ſabido:
Mas pode ſoſpeitarſe facilmente,
Que o coração preſago nunca mente.

E mais tambem mandado tinha a terra,
De antes pelo Piloto neceſſario:
E foilhe reſpondido em ſom de guerra,
Caſo do que cuydaua muy contrario:
Por iſto, & porque ſabe quanto erra,
Quem ſe cre de ſeu perfido aduerſario,
Apercebido vay como podia,
Em tres bateis ſomente que trazia:

Mas os Mouros que andauão pela praya,
Por lhe defender a agoa deſejada,
Hum de eſcudo embarcado, & de azagaya,
Outro de arco encuruado, & ſeta eruada:
Eſperão que a guerreira gente ſaya,
Outros muytos ja poſtos em cillada.
E porque o caſo leue ſe lhe faça,
Poem hũs poucos diante por negaça.

Andão pela ribeira alua arenoſa,
Os belicoſos Mouros acenando,
Com a adarga, & co a aſtea perigoſa,
Os fortes Portugueſes incitando:
Nam ſoſfre muito a gente generoſa,
Andarlhe os cães os dentes amoſtrando.
Qualquer em terra ſalta, tam ligeiro,
Que nenhum dizer pode que he primeiro.

Qual no corro ſanguino, o ledo amante,
Vendo a fermoſa dama deſejada,
O Touro buſca, & pondo ſe diante,
Salta, corre, ſibila, acena, & brada:
Mas o animal atroçe neſſe instante,
Com a fronte cornigera inclinada,
Bramando duro corre, & os olhos cerra,
Derriba, fere, & mata & poem por terra.

Eis nos bateis o fogo ſe leuanta,
Na furioſa & dura artilheria,
A plumbea pela mata, o brado eſpanta:
Ferido o ar retumba, & aſſouia:
O coraçam dos Mouros ſe quebranta,
O temor grande o ſangue lhe resfria.
Ia foge o eſcondido de medroſo,
E morre o deſcuberto auenturoſo.

Não ſe contenta a gente Portugueſa:
Mas ſeguindo a victoria eſtrue, & mata
A pouoação ſem muro, & ſem defeſa,
Esbombardea, acende, & desbarata.
Da caualgada ao Mouro ja lhe peſa,
Que bem cuidou comprala mais barata:
Ia blasfema da guerra, & maldizia,
O velho inerte, & a mãy que o filho cria.

Fugindo, a ſeta o Mouro vay tirando,
Sem força, de couarde, & de apreſſado,
A pedra, o pao, & o canto arremeſſando,
Dalhe armas o furor deſatinado:
Ia a Ilha, & todo o mais, deſemparando,
Aa terra firme foge amedrontado.
Paſſa, & corta do mar o eſtreito braço,
Que a Ilha em torno cerca, em pouco eſpaço.

Hũs vão nas almádías carregadas,
Hum corta o mar a nado diligente,
Quem ſe affoga nas ondas encuruadas,
Quem bebe o mar, & o deita juntamente:
Arrombão as meudas bombardadas
Os Pangaios ſotis da bruta gente.
Desta arte o Portugues em fim caſtiga,
A vil malicia, perfida, inimiga.

Tornão victorioſos pera a armada,
Co deſpojo da guerra, & rica preſa,
E vão a ſeu prazer fazer agoada,
Sem achar reſiſtencia, nem defeſa
Ficaua a Maura gente magoada,
No odio antigo, mais que nunca aceſa.
E vendo ſem vingança tanto dano,
Somente estriba no ſegundo engano.

Pazes cometer manda arrependido,
O Regedor daquella inica terra,
Sem ſer dos Luſitanos entendido,
Que em figura de paz lhe manda guerra:
Porque o Piloto falſo prometido,
Que toda a mà tenção no peito encerra.
Pera os guiar aa morte lhe mandaua,
Como em ſinal das pazes que trataua.

O Capitão, que ja lhe entam conuinha,
Tornar a ſeu caminho acoſtumado,
Que tempo concertado, & ventos tinha,
Pera yr buſcar o Indo deſejado.
Recebendo o Piloto que lhe vinha,
Foy delle alegremente agaſalhado:
E reſpondendo ao menſageiro, a tento
Aas vellas manda dar ao largo vento.

Desta arte deſpedida a forte armada,
As ondas de Anfitrite diuidia,
Das filhas de Nerêo acompanhada,
Fiel, alegre, & doçe companhia.
O Capitão, que não cahia em nada,
Do enganoſo ardil que o Mouro vrdia:
Delle muy largamente ſe informaua,
Da India toda, & coſtas que paſſaua:

Mas o Mouro inſtruido nos enganos,
Que o maléuolo Baco lhe enſinára
De morte, ou captiueiro nouos danos,
Antes que aa India chegue lhe prepara,
Dando razão dos portos Indianos,
Tambem tudo o que pede lhe declara.
Que auendo por verdade o que dizia,
De nada a forte gente ſe temia.

E diz lhe mais co falſo penſamento,
Com que Synon os Phrigios enganou,
Que perto eſtà hũa Ilha, cujo aſſento,
Pouo antigo Chriſtão ſempre abitou:
O Capitão que a tudo eſtaua a tento,
Tanto co estas nouas ſe alegrou,
Que com dadiuas grandes lhe rogaua,
Que o leue aa terra onde eſta gente eſtaua.

Ho mesmo o falſo Mouro determina,
Que o ſeguro Chriſtão lhe manda & pede,
Que a Ilha he poſſuida da malina
Gente, que ſegue o torpe Mahamede:
Aqui o engano & morte lhe imagina,
Porque em poder & forças muito excede
Aa Moçambique, eſta Ilha que ſe chama
Quîloa, muy conhecida pola fama.

Pera là ſe inclinaua a leda frota:
Mas a Deoſa em Cythere celebrada,
Vendo como deixaua a certa rota,
Por yr buſcar a morte não cuidada,
Não conſente que em terra tão remota
Se perca a gente della tanto amada.
E com ventos contrairos a deſuia,
Donde o Piloto falſo a leua, & guia.

Mas o maluado Mouro nam podendo,
Tal determinação leuar auante,
Outra maldade inica cometendo,
Ainda em ſeu propoſito constante,
Lhe diz, que pois as agoas diſcorrendo,
Os leuàrão por força por diante,
Que outra Ilha tem perto, cuja gente,
Erão Chriſtãos com Mouros juntamente.

Tambem nestas palauras lhe mentia,
Como por regimento em fim leuaua,
Que aqui gente de Chriſto não auia:
Mas a que a Mahamede celeebraua.
O Capitão que em tudo o mouro cria,
Virando as vellas, a Ilha demandaua:
Mas nam querendo a Deoſa guardadora,
Nam entra pela barra, & ſurge fora.

Eſtaua a Ilha aa terra tam chegada,
Que hum eſtreito pequeno a diuidia,
Hũa cidade nella ſituada,
Que na fronte do mar aparecia,
De nobres edificios fabricada,
Como por fora, ao longe deſcobria,
Regida por hum Rei de antigua idade,
Mombaça he o nome da Ilha, & da Cidade.

E ſendo a ella o Capitão chegado,
Eſtranhamente ledo, porque eſpera
De poder ver o pouo baptizado,
Como o falſo Piloto lhe diſſera:
Eis vem bateis da terra com recado
Do Rei, que ja ſabia a gente que era,
Que Baco muito de antes o auiſara,
Na forma doutro Mouro que tomàra.

O recado que trazem he de amigos:
Mas debaxo o veneno vem cuberto,
Que os penſamentos erão de inimigos,
Segundo foy o engano deſcuberto.
O grandes & grauiſsimo perigos,
O caminho de vida nunca certo:
Que aonde a gente poem ſua eſperança,
Tenha a vida tam pouca ſegurança.

No mar tanta tormenta, & tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida,
Na terra, tanta guerra, tanto engano,
Tanta neceſsidade auorrecida:
Onde pode acolherſe hum fraco humano,
Onde terà ſegura a curta vida?
Que não ſe arme, & ſe indigne o Ceo ſereno.
Contra hum bicho da terra tam pequeno.

Fim.




Canto Segundo


Ia neſte tempo o lucido Planeta,
Que as horas vay do dia diſtinguindo,
Chegaua aa deſejada, & lenta Meta,
A luz Celeſte aas gentes encobrindo:
E da caſa maritima ſecreta,
Lhe eſtaua o Deos Nocturno a porta abrĩdo:
Quando as infidas gentes ſe chegárão
Aas naos, que pouco auia que ancorarão

Dantre elles hum que traz encomendado,
O mortifero engano, aſsi dezia.
Capitão valeroſo, que cortado
Tens de Neptuno o reyno, & ſalſa via,
O Rei que manda eſta Ilha, aluoraçado
Da vinda tua tem tanta alegria,
Que nam deſeja mais que agaſalharte,
Verte, & do neceſſario reformarte.

E porque eſtà em eſtremo deſejoſo
De te ver, como couſa nomeada,
Te roga que de nada receoſo,
Entres a barra, tu com toda armada:
E porque do caminho trabalhoſo,
Traras a gente debil, & canſada,
Diz que na terra podes reformala,
Que a natureza obriga a deſejada,

E ſe buſcando vas mercadoria,
Que produze o aurifero Leuante,
Canella, Crauo, ardente eſpeciaria,
Ou Droga ſalutifera, & preſtante:
Ou ſe queres luzente pedraria,
O Rubí fino, o rigido Diamante:
Daqui leuaras tudo tam ſobejo.
Com que faças o fim a teu deſejo:

Ao menſageiro o Capitão reſponde,
As palauras do Rei agradecendo,
E diz que porque o Sol no mar ſe eſconde,
Não entra pera dentro obedecendo,
Porem que como a luz mostrar por onde
Va ſem perigo, a frota não temendo,
Comprirà ſem receio ſeu mandado,
Que a mais por tal ſenhor eſtà obrigado.

Perguntalhe deſpois, ſe estão na terra
Chriſtãos, como o Piloto lhe dezia,
O menſageiro aſtuto que não erra,
Lhe diz, que a mais da gẽte em Chriſto cria:
Deſta ſorte do peito lhe desterra
Toda a ſoſpeita, & cauta fantaſia:
Por onde o Capitão ſeguramente,
Se fia da infiel, & falſa gente.

E de algũs que trazia condenados,
Por culpas, & por feitos vergonhoſos
Porque podeſſem ſer auenturados,
Em caſos deſta ſorte duuidoſos.
Manda dous mais ſagazes, enſaiados,
Porque notem dos Mouros enganoſos,
A Cidade, & poder, & porque vejão,
Os que Chriſtãos, que ſo tanto ver deſejão.

E por eſtes ao Rei preſentes manda,
Porque a boa vontade que moſtraua,
Tenha firme, ſegura, limpa, & branda,
A qual bem ao contrario em tudo eſtaua.
Ia a companhia perfida, enefanda
Das naos ſe deſpedia, & o mar cortaua,
Foram com geſtos ledos, & fingidos,
Os dous da frota em terra recebidos.

E deſpois que ao Rei apreſentàrão,
Co recado os preſentes que trazião,
A Cidade correrão, & notarão
Muito menos daquillo que querião,
Que os Mouros cauteloſos ſe guardarão
De lhe moſtrarem tudo o que pedião.
Que onde reina a malicia, eſtà o receio
Que a faz imaginar no peito alheio.

Mas aquelle que ſempre a mocidode
Tem no roſto perpetua, & foy naſcido
De duas mãis: que vrdia a falſidade,
Por ver o nauegante deſtruydo:
Eſtaua nũa caſa da Cidade,
Com roſto humano, & habito fingido
Moſtrandoſe Chriſtão, & fabricaua
Hum altar ſumptuoſo que adoraua.

Ali tinha em retrato affigurada
Do alto & Sancto ſpirito a pintura,
A candida Pombinha debuxada,
Sobre a vnica Fenix virgem pura,
A companhia ſancta eſtà pintada,
Dos doze tam toruados na figura,
Como os que, ſo das lingoas que cayrão,
De fogo, varias lingoas referirão.

Aqui os dous companheiros conduzidos,
Onde com este engano Baco estaua
Poem em terra os giolhos, & os ſentidos
Naquelle Deos, que o mundo gouernaua
Os cheiros excellentes produzidos,
Na Panchaia odorifera queimaua
O Thioneû, & aſsi por derradeiro
O falſo Deos adora o verdadeiro.

Aqui forão denoite agaſalhados,
Com todo o bom, & honeſto tratamento
Os dous Chriſtãos, nam vendo que enganado
Os tinha o falſo, & ſancto fingimento:
Mas aſsi como os rayos eſpalhados
Do Sol forão no mundo, & num momento
Apareceo no rubido Orizonte,
Na moça de Titão a roxa ſronte.

Tornão da terra os Mouros co recado
Do Rei, pera que entraſſem, & conſigo
Os dous que o Capitão tinha mandado,
A quem ſe o Rei moſtrou ſincêro amigo:
E ſendo o Portugues certificado,
De não auer receio de perigo.
E que gente de Chriſto em terra auia,
Dentro no ſalſorio entrar queria

Dizem lhe os que mandou, que em terra vîrão,
Sacras aras, & ſacerdote ſancto,
Que ali ſe agaſalhàrão, & dormirão,
Em quanto a luz cubrio o eſcuro manto:
E que no Rei, & gentes não ſentirão
Senão contentamento, & gosto tanto:
Que não podia certo auer ſoſpeita,
Nũa mostra tão clara, & tão perfeita.

Co iſto o nobre Gama recebia
Alegremente os Mouros que ſubião,
Que leuemente hum animo ſe fia,
De mostras que tão certas parecião:
A nao da gente perfida ſe enchia,
Deixando a bordo os barcos que trazião:
Alegres vinhão todos, porque crem
Que a preſa deſejada certa tem.

Na terra cautamente aparelhauão,
Armas, & monições, que como viſſem
Que no Rio os nauios ancorauão,
Nelles ouſadamente ſe ſubiſſem:
E neſta treição determinauão,
Que os de Luſo de todo deſtruiſſem:
E que incautos pagaſſem deste geito
O mal que em Moçambique tinhão feito.

As ancoras tenaces vão leuando,
Com a nautica grita coſtumada,
Da proa as vellas ſos ao vento dando,
Inclinão pera a barra abaliſada:
Mas a linda Ericina, que guardando
Andaua ſempre a gente aſsinalada:
Vendo a cilada grande, & tam ſecreta,
Voa do Ceo ao Mar como hũa ſeta.

Conuoca as aluas filhas de Nerêo,
Com toda a mais cerulea companhia,
Que porque no ſalgado Mar naſceo,
Das agoas o poder lhe obedecia.
E propondo lhe a cauſa a que deceo,
Com todos juntamente ſe partia:
Pera eſtoruar que a armada não chegaſſe
Aonde pera ſempre ſe acabaſſe.

Ia na agoa erguendo vão com grande preſſa,
Com as argenteas caudas branca eſcuma,
Cloto co peito corta, & atraueſſa
Com mais furor o Mar do que coſtuma.
Salta Niſe, Nerine ſe arremeſſa,
Por cima da agoa creſpa, em força ſuma:
Abrem caminho as ondas encuruadas,
De temor das Nereidas apreſſadas.

Nos hombros de hum Tritão com geſto aceſo,
Vay a linda Dione furioſa,
Não ſente quem a leua o doçe peſo,
De ſoberbo, com carga tam fermoſa:
Ia chegão perto donde o vento teſo,
Enche as vellas da frota belicoſa.
Repartenſe, & rodeão neſſe inſtante
As naos ligeiras que hião por diante.

Poem ſe a Deoſa com outras em dereito
Da proa capitaina, & ali fechando,
O caminho da barra estão de geito,
Que em vão aſſopra o vento, a vella inchãdo:
Poem no madeiro duro o brando peito,
Pera detras a forte nao forçando.
Outras em derredor leuandoa eſtauão,
E da barra inimiga a deſuiauão.

Quaes pera a coua as pròuidas formigas,
Leuando o peſogrande acomodado,
As forças exercitão, de inimigas,
Do inimigo Inuerno congelado:
Ali ſam ſeus trabalhos, & fadigas,
Ali mostrão vigor nunca eſperado.
Tais andauão as Nimphas eſtoruando
Aa gente Portugueſa o fim nefando.

Torna pera detras a Nao forçada,
A peſar dos que leua, que gritando,
Mareão vellas, ferue a gente yrada,
O leme a hum bordo, & a outro atraueſſando
O Meſtre aſtuto em vão da popa brada,
Vendo como diante ameaçando
Os estaua hum maritimo penedo,
Que de quebrarlhe a Nao lhe mete medo:

A celeuma medonha ſe aleuanta,
No rudo Marinheiro que trabalha,
O grande eſtrondo, a Maura gente eſpanta,
Como ſe viſſem horrida batalha:
Nam ſabem a razão de furia tanta,
Nam ſabem neſta preſſa quem lhe valha,
Cuydão que ſeus enganos ſam ſabidos,
E que ande ſer por iſſo aqui punidos.

Eilos ſubitamente ſe lançauão,
A ſeus bateis veloces que trazião,
Outros encima o mar aleuantauão,
Saltando nagoa a nado ſe acolhião:
De hum bordo & doutro ſubito ſaltauão,
Que o medo os compelia do que vião.
Que antes querem ao mar auenturarſe,
Que nas mãos inimigas entregarſe.

Aſsi como em ſeluatica alagoa,
As rãs no tempo antigo Lycia gente,
Se ſentem por ventura vir peſſoa,
Estando fora da agoa incautamente,
Daqui, & dali ſaltando, o charco ſoa,
Por fogir do perigo que ſe ſente,
E acolhendo ſe ao couto que conhecem,
Sos as cabeças na agoa lhe aparecem.

Aſsi fogem os Mouros, & o Piloto,
Que ao perigo grande as naos guiâra,
Crendo que ſeu engano eſtaua noto,
Tambem foge ſaltando na agoa amara:
Mas por nam darem no penedo immoto,
Onde percão a vida doçe, & cara:
A ancora ſolta logo a capitaina,
Qualquer das outras junto della amaina.

Vendo o Gama, atentado a eſtranheza
Dos Mouros não cuidada, & juntamente,
O Piloto fugir lhe com preſteza,
Entende o que ordenaua a bruta gente,
E vendo ſem contraste, & ſem braueza
Dos ventos, ou das, agoas ſem corrente,
Que a Nao paſſar auante não podia,
Auendo o por milagre aſsi dezia.

O caſo grande, eſtranho, & não cuydado,
O milagre clariſsimo, & euidente,
O deſcuberto engano inopinado,
O perfida inimiga, & ſalſa gente,
Quem poderà do mal aparelhado
Liurarſe ſem perigo ſabiamente.
Se la de cima a guarda ſoberana,
Não acudir aa fraca força humana?

Bem nos moſtra a diuina prouidencia,
Destes portos, a pouca ſegurança,
Bem claro temos viſto na aparencia,
Que era enganada a noſſa confiança
Mas pois ſaber humano, nem prudencia
Enganos tam fingidos nam alcança:
O tu guarda diuina, tem cuidado
De quem ſem ti nam pode ſer guardado.

E ſe te moue tanto a piedade,
Deſta miſera gente peregrina,
Que ſo por tua altiſsima bondade,
Da gente a ſaluas, perfida & malina,
Nalgum porto ſeguro de verdade:
Conduzirmos ja agora determina,
Ou nos amostra a terra que buſcamos,
Pois ſo por teu ſeruiço nauegamos.

Ouuiolhe eſtas palauras piadoſas,
A fermoſa Dione, & comouida,
Dantre as Nimphas ſe vay, que ſaudoſas
Ficarão deſta ſubita partida:
Ia penetra as Eſtrellas luminoſas,
Ia na terceyra Eſphera recebida
Auante paſſa, & la no ſexto Ceo
Pera onde eſtaua o Padre ſe moueo.

E como hia afrontada do caminho
Tão fermoſa no geſto ſe moſtraua,
Queas Eſtrellas, & o Ceo, & o Ar vizinho,
E tudo quanto a via namoraua
Dos olhos, onde faz ſeu filho o ninho
Hũs eſpiritos viuos inspiraua,
Com que os Polos gelados acendia,
E tornaua do Fogo a eſphera fria.

E por mais namorar o ſoberano
Padre, de quem foy ſempre amada, & cara
Se lhapreſenta aſsi como ao Troyano,
Na ſelua Idea ja ſe apreſentàra:
Se a vira o caçador, que o vulto humano
Perdeo, vendo Diana na agoa clara:
Nunca os famintos galgos o matàrão,
Que primeiro deſejos o acabárão.

Os creſpos fios douro ſe eſparzião
Pelo colo, que a neue eſcurecia,
Andando as lacteas tetas lhe tremião,
Com quem Amor brincaua, & não ſe via.
Da alua petrina flamas lhe ſaião,
Onde o minino as almas acendia.
Polas liſas colũnas lhe trepauão,
Deſejos, que como Era ſe enrolauão.

Cum delgado cendal as partes cobre,
De quem vergonha he natural reparo,
Porem nem tudo eſconde, nem deſcobre
O veo dos roxos lirios pouco auaro:
Mas pera que o deſejo acenda, & dobre,
Lhe poem diante aquelle objecto raro.
Ia ſe ſentem no Ceo, por toda a parte,
Ciumes em Vulcano, Amor em Marte:

E mostrando no angelico ſembrante,
Co riſo hũa tristeza miſturada,
Como dama que foi do incauto amante,
Em brincos amoroſos mal tratada,
Que ſe aqueixa, & ſe ri, num meſmo inſtãte,
E ſe torna entre alegre maogada.
Deſta arte a Deoſa, a quem nenhũa iguala,
Mais mimoſa que triſte ao Padre fala.

Sempre eu cuidey, ô Padre poderoſo,
Que pera as couſas, que eu do peito amaſſe
Te achaſſe brando, affabil, & amoroſo,
Poſto que a algum contrairo lhe peſaſſe:
Mas pois que contra my te vejo yroſo,
Sem que to mereceſſe, nem te erraſſe.
Façaſe como Baco determina,
Aſſentarey em fim que fuy mofina.

Eſte pouo que he meu, por quem derramo,
As lagrimas que em vão caidos vejo,
Que aſſaz de mal lhe quero, pois que o amo,
Sendo tu tanto contra meu deſejo:
Por elle a ti rogando choro, & bramo,
E contra minha dita em fim pelejo.
Ora pois porque o amo he mal tratado,
Quero lhe querer mal, ſera guardado.

Mas moura em fim nas mãos das brutas gentes,
Que pois eu fuy: & niſto de mimoſa
O rosto banha, em lagrimas ardentes,
Como co orualho fica a freſca roſa.
Calada hum pouco, como ſe entre os dentes
Lhe impedira a falla piedoſa.
Torna a ſeguila, & indo por diante,
Llhe atalha o poderoſo, & grão Tonante.

E deſtas brandas moſtras comouido,
Que mouerão de hum Tigre o ptito duro,
Co vulto alegre, qual do Ceo ſubido,
Torna ſereno & claro o ar eſcuro.
As lagrimas lhe alimpa, & acendido
Na façe a beija, & abraça o colo puro.
De modo que dali, ſe ſo ſe achara,
Outro nouo Cupido ſe gerara.

E co ſeu apertando o roſto amado,
Que os ſaluços, & lagrimas aumenta,
Como minino da ama castigado,
Que quem no aſſago o choro lhe acrecenta,
Por lhe por em ſoſſego o peito yrado,
Muitos caſos futuros lhe apreſenta.
Dos fados as entranhas reuoluendo,
Deſta maneira em fim lhe eſtà dizendo.

Fermoſa filha minha não temais
Perigo algum, nos voſſos Luſitanos,
Nem que ninguem comigo poſſa mais,
Que eſſes choroſos olhos ſoberanos:
Que eu vos prometo filha que vejais
Eſquecerenſe Gregos & Romanos.
Pelos illuſtres feitos que esta gente,
Ha de fazer nas partes do Oriente.

Que ſe o facundo Vliſſes eſcapou,
De ſer na Ogigia Ilha, eterno eſcrauo:
E ſe Antenor os ſeios penetrou,
Iliricos, & a fonte de Timauo.
E ſe o piadoſo Eneas nauegou,
De Scila, & de Caribdis o Mar brauo.
Os voſſos môres couſas atentando,
Nouos mundos ao mundo yrão moſtrando.

Fortalezas, Cidades, & altos muros,
Por elles vereis filha edificados:
Os Turcos belaciſsimos & duros,
Delles ſempre vereis desbaratados.
Os Reis da India liures, & ſeguros,
Vereis ao Rei potente ſojugados.
E por elles de tudo em fim ſenhores,
Serão dadas na terra leis milhores.

Vereis eſte, que agora preſuroſo,
Por tantos medos o Indo vay buſcando,
Tremer delle Neptuno de medroſo,
Sem vento ſuas agoas encreſpando.
O caſo nunca viſto, & milagroſo
Que trema, & ferua o Mar em calma eſtãdo?
O gente forte, & de altos penſamentos,
Que tambem della hão medo os Elementos.

Vereis a terra que a agoa lhe tolhia,
Que inda ha de ſer hum porto muy decente,
Em que vão deſcanſar da longa via,
As naos que nauegarem do Occidente.
Toda eſta coſta em fim, que agora vrdia,
O mortifero engano, obediente,
Lhe pagarà tributos, conhecendo,
Não poder reſistir ao Luſo horrendo:

E vereis o Mar roxo tam famoſo,
Tornar ſelhe amarello de infiado:
Vereis de Ormuz o Reino poderoſo,
Duas vezes tomado, & ſojugado.
Ali vereis o Mouro furioſo,
De ſuas meſmas ſetas traſpaſſado.
Que quem vay contra os voſſos, claro veja,
Que ſe reſiſte, contra ſi peleja.

Vereis a inexpugnabil Dio fortes,
Que dous cercos terà, dos voſſos ſendo:
Ali ſe mostrarà ſeu preço, & ſorte,
Feitos de armas grandiſsimos fazendo.
Enuejoſo vereis o grão Mauorte,
Do peito Luſitano, fero & horrendo.
Do Mouro ali verão que a voz extrema,
Do falſo Mahamede ao Ceo blasfema.

Goa vereis aos Mouros ſer tomada,
A qual virá deſpois a ſer ſenhora,
De todo o Oriente, & ſublimada
Cos triumphos da gente vencedora.
Ali ſoberba altiua, & exalçada,
Ao Gentio que os Idolos adora.
Duro ſreo porà, & a toda a terra,
Que cuidar de fazer aos voſſos guerra.

Vereis a fortaleza ſuſtentarſe,
De Cananor, com pouca força & gente:
E vereis Calecu desbaratarſe,
Cidade populoſa, & tam potente.
E vereis em Cochim aſsinalarſe,
Tanto hum peito ſoberbo, & inſolente,
Que Cîtara ja mais cantou victoria,
Que aſsi mereça eterno nome, & gloria.

Nunca com Marte, inſtructo & furioſo,
Se vio feruer Leucate, quando Auguſto
Nas ciuîs Actias guerras animoſo,
O Capitão venceo Romano injuſto,
Que dos pouos de Aurora, & do famoſo
Nilo, & do Bactra Scitico, & robusto,
A victoria trazia, & preſa rica,
Preſo da Egipcia linda & não pudica.

Como vereis o mar feruendo aceſo,
Cos incendios dos voſſos pelejando,
Leuando o Idololatra, & o Mouro preſo,
De nações differentes triumphando.
E ſogeita a rica Aurea Cherſoneſo,
Ate o longico China nauegando.
E as Ilhas mais remotas do Oriente,
Serlhe a todo o Occeano obediente.

De modo filha minha, que de geito,
Amoſtrarão esforço mais que humano,
Que nunca ſe vera tam forte peito,
Do Gangetico mar ao Gaditano,
Nem das Boreais ondas, ao Eſtreito,
Que moſtrou o agrauado Luſitano:
Poſto que em todo o mundo, de affrontados
Reſucitaſſem todos os paſſados.

Como isto diſſe, manda o conſagrado
Filho de Maia aa terra, porque tenha,
Hum pacifico porto, & ſoſſegado,
Pera onde ſem receyo a frota venha:
E pera que em Mombaça, auenturado
O forte Capitão ſe não detenha,
Lhe mãda mais, que em ſonhos lhe moſtraſſe
A terra, onde quieto repouſaſſe.

Ia pelo ar o Cylenêo voaua,
Com as aſas nos pês aa terra deçe,
Sua vara fatal na mão leuaua,
Com que os olhos canſados adormece:
Com eſta, as triſtes almas reuocaua,
Do Inferno, & o vento lhe obedeçe.
Na cabeça o galêro coſtumado,
E deſta arte a Melinde foy chegado.

Conſigo a Fama leua, porque diga,
Do Luſitano, o preço grande, & raro,
Que o nome illuſtre a hũ certo amor obriga,
E faz a quem o tem, amado & caro.
Deſta arte vay fazendo a gente amiga,
Co rumor famoſiſsimo, & perclaro.
Ia Melinde em deſejos arde todo,
De ver da gente forte o gesto, & modo.

Dali pera Mombaça logo parte,
Aonde as naos eſtauão temeroſas,
Pera que aa gente mando que ſe aparte
Da barra imiga, & terras ſoſpeitoſas:
Porque muy pouco val esforço, & arte,
Contra infernais vontades enganoſas:
Pouco val coração, aſtucia , & ſiſo,
Se la dos Ceos nam vem celeſte auiſo.

Meyo caminho a noite tinha andado,
E as Eſtrellas no Ceo co a luz alheia,
Tinhão o largo Mundo alumiado,
E ſo co ſono a gente ſe recreia.
O Capitão illuſtre, ja canſado,
De vigiar a noite, que arreceia,
Breue repouſo antam aos olhos daua,
A outra gente a quartos vigiaua.

Quando Mercurio em ſonhos lhe apareçe,
Dizendo, fuge, fuge Luſitano,
Da cilada que o Rei malicado teçe,
Por te trazer ao fim, & extremo dano,
Fuge, que o Vento, & o Ceo te fauoreçe,
Sereno o tempo tẽs, & o Occeano,
E outro Rei mais amigo, noutra parte,
Onde podes ſeguro agaſalharte.

Não tens aqui ſe não aparelhado,
O hoſpicio que o cru Diomedes daua,
Fazendo ſer manjar acostumado,
De cauallos a gente que hoſpedaua:
As aras do Buſiris infamado,
Onde os hoſpedes tristes imolaua
Teràs certas aqui ſe muito eſperas,
Fuge das gentes perfidas & feras.

Vaite ao longo da coſta diſcorrendo,
E outra terra acharàs de mais verdade
La quaſi junto donde o Sol ardendo,
Iguala o dia, & noite em quantidade:
Ali tua frota alegre recebendo
Hum Rei, com muitas obras de amizade,
Gaſalhado ſeguro te daria,
E pera a India certa & ſabia guia.

Isto Mercurio diſſe, & o ſono leua
Ao Capitão, que com muy grande eſpanto
Acorda, & ve ferida a eſcura treua,
De hũa ſubita luz, & rayo ſancto:
E vendo claro quanto lhe releua,
Não ſe deter na terra iniqua tanto.
Com nouo ſprito ao Mestre ſeu mandaua,
Que as vellas deſſe ao vento que aſſopraua.

Day vellas, diſſe, day ao largo vento,
Que o Ceo nos fauoreçe, & Deos o manda,
Que hum menſageiro vi do claro aſſento
Que ſo em fauor de noſſos paſſos ando:
Aleuantaſe niſto o mouimento,
Dos marinheiros, de hũa & de outra banda,
Leuão gritando as ancoras acima,
Moſtrando a ruda força, que ſe estima.

Neſte tempo, que as ancoras leuauão,
Na ſombra eſcura os Mouros eſcondidos,
Manſamente as amarras lhe cortauão,
Por ſerem, dando aa coſta, deſtruydos:
Mas com viſta de Linces vigiauão,
Os Portuegueſes ſempre apercebidos.
Elles como acordados os ſentirão,
Voando, & não remando lhe fogirão.

Mas ja as agudas proas apartando,
Hião as vias humidas de argento,
Aſſopralhe galerno o vento, & brando,
Com ſuaue & ſeguro mouimento,
Nos perigos paſſados vão falando,
Que mal ſe perderão do penſamento,
Os caſos grandes, donde em tanto aperto
A vida em ſaluo eſcapa por acerto.

Tinha hũa volta dado o Sol ardente,
E noutra começaua, quando virão
Ao longe dous nauios, brandamente
Cos ventos nauegando, que reſpirão,
Porque auião de ſer da Maura gente,
Pera elles arribando, as vellas virão.
Hum de temor do mal que arreceaua,
Por ſe ſaluar a gente aa costa daua.

Não he o outro que fica tão manhoſo:
Mas nas mãos vay cair do Luſitano,
Sem o rigor de Marte furioſo,
E ſem a furia horrenda de Vulcano,
Que como foſſe debil & medroſo,
Da pouca gente o fraco peito humano:
Não teue reſiſtencia, & ſe a tiuêra,
Mais dãno reſiſtindo recebêra.

E como o Gama muito deſejaſſe,
Piloto pera a India que buſcaua,
Cuidou que entre eſtes Mouros o tomaſſe:
Mas não lhe ſoccedeo como cuidaua,
Que nenhum delles ha que lhe inſinaſſe
A que parte dos Ceos a India eſtaua.
Porem dezem lhe todos, que tem perto,
Melinde onde achàrão Piloto certo.

Louuão do Rei os Mouros a bondade,
Condiçam liberal, ſincero peito,
Mognificencia grande, & humanidade,
Com partes de grandiſsimo reſpeito.
O Capitão o aſſella por verdade,
Porque ja lho diſſera deſte geito,
O Cydenêo em ſonhos, & partia,
Pera onde o ſonho, & o Mouro lhe dizia.

Era no tempo alegre quando entraua,
No roubador de Europa a luz Febea,
Quando hum, & o outro corno lhe aquentaua
E Flora derramaua o de Amalthea:
A memoria do dia renouaua,
O preſuroſo Sol, que o Ceo rodea.
Em que aquelle, a quem tudo eſtà ſogeito,
O ſello pos a quanto tinha feito.

Quando chegaua a frota aaquella parte,
Onde o Reino Melinde ja ſe via,
De toldos adornada, & leda de arte
Que bem moſtra eſtimar o Sancto dia:
Treme a Bandeira, voa o Eſtandarte,
A cor porpurea ao longe aparecia.
Soão os atambores & pandeiros,
E aſsi entrauão ledos & guerreiros.

Enche ſe toda a praya Molindana,
Da gente que vem ver a leda armada,
Gente mais verdadeira, & mais humana
Que toda a doutra terra atras deixada.
Surge diante a frota Luſitana,
Pega no findo a ancora peſada.
Mandão fora hum dos Mouros q̃ tomàrão,
Por quem ſua vinda ao Rei manifeſtàrão.

O Rei que ja ſabia da nobreza
que tanto os Portugueſes engrandece,
Tomarem o ſeu porto tanto preza,
Quanto a gente fortiſsima merece:
E com verdadeiro animo, & pureza,
Que os peitos generoſos ennobrece.
Lhe manda rogar muyto que ſaiſſem,
Pera que de ſeus Reinos ſe ſeruiſſem:

Sam offerecimentos verdadeiros,
E palauras ſinceras, não dobradas,
As que o Rei manda aos nobres caualleiros,
Que tanto mar & terras tem paſſadas:
Mandalhe mais lanigeros carneiros,
E galinhas domeſticas çeuadas,
Com as fructas que antam na terra auia,
E a vontade aa dadiua excedia.

Recebe o Capitão alegremente
O menſageiro ledo, & ſeu recado,
E logo manda ao Rei outro preſente,
Que de longe trazia aparelhado:
Eſcarlata purpurea, cor ardente,
O ramoſo coral fino, & prezado.
Que debaxo das agoas mole creçe,
E como he fora dellas ſe endureçe.

Manda mais hum na pratica elegante,
Que co Rei nobre as pazes concertaſſe,
E que de não ſair naquelle inſtante,
De ſuas naos em terra o deſculpaſſe.
Partido aſsi o embaixador preſtante,
Como na terra ao Rei ſe apreſentaſſe:
Com eſtillo que Palas lhe enſinaua,
Estas palauras tais fallando oraua.

Sublime Rei, a quem do Olimpo puro,
Foy da ſuma Iustiça concedido,
Refrear o ſoberbo pouo duro,
Não menos delle amado, que temido,
Como porto muy forte, & muy ſeguro,
De todo o Oriente conhecido:
Te vimos a buſcar, pera que achemos
Em ti o remedio certo que queremos.

Não ſomos roubadores, que paſſando
Pelas fracas cidades deſcuidadas,
A ferro, & a fogo, as gentes vão matando
Por roubarlhe as fazendas cubiçadas:
Mas da ſoberba Europa nauegando,
Himos buſcando as terras apartadas
Da India grande, & rica, por mandado
De hum Rei que temos, alto, & ſublimado.

Que geração tam dura ahi de gente?
Que barbaro costume, & vſança fea,
Que não vedem os pertos, tam ſomente:
Mas inda o hospicio da deſerta area?
Que ma tençam? que peito em nos ſe ſente?
Que de tam pouca gente ſe arrecea.
Que com laços armados tam fingidos,
Nos ordenaſſem vernos deſtruydos?

Mas tu, em quem muy certo confiamos
Acharſe mais verdade, o Rei benigno,
E aquella certa ajuda em ti eſperamos,
Que teue o perdido Itaco em Alcino:
A teu porto ſeguros nauegamos,
Conduzidos do interprete diuino.
Que pois a ti nos manda, eſtà muy claro,
Que es de peito ſincêro, humano, & raro.

E não cuydes, ô Rei, que não ſaiſſe.
O noſſo Capitão eſclarecido
A verte, ou a ſeruirte, porque viſſe
Ou ſoſpeitaſſe em ti peito fingido:
Mas ſaberas que o fez porque compriſſe,
O regimento em tudo obedecido,
De ſeu Rei, que lhe manda que nam ſaia,
Deixando a frota, em nenhũ porto, ou praia.

E porque he de vaſſalos, o exercicio,
Que os membros tem regidos da cabeça
Não quereras, pois tẽs de Rei o officio,
Que ninguem a ſèu Rei deſobedeça:
Mas as merçes, & o grande beneficio,
Que ora acha em ti, promete que conheça
Em tudo aquillo que elle & os ſeus poderem,
Em quanto os rios pera o mar correrem.

Aſsi dizia, & todos juntamente,
Hũs com outros em pratica fallando,
Louuauão muito o eſtamago da gente,
Que tantos Ceos & mares vai paſſando,
E o Rei illuſtre, o peito obediente,
Dos Portugueſes, na alma imaginando.
Tinha por valor grande, & muy ſubido,
O do Rei que he tam longe obedecido.

E com riſonha viſta, & ledo aſpeito,
Responde ao Embaixador, que tanto estima
Toda a ſoſpeita mà tiray do peito,
Nenhum frio temor em vos ſe imprima:
Que voſſo preço, & obras ſam de geito,
Pera vos ter o mundo em muyta eſtima.
E quem vos fez mollesto tratamento,
Não pode ter ſobido penſamento.

De não ſair em terra toda a gente,
Por obſeruar a vſado preminencia,
Ainda que me peſe eſtranhamente,
Em muito tenho a muita obediencia:
Mas ſe lho o regimento não conſente,
Nem eu conſentirey que a excelencia,
De peitos tão leais em ſi desfaça,
So perque a meu deſejo ſatisfaça.

Porem como a luz crastina chegada,
Ao mundo for, em minhas almàdîas,
Eu irey viſitar a forte armada,
Que ver tanto deſejo, ha tantos dias.
E ſe vier do mar desbaratada,
Do furioſo vento, & longas vias:
Aqui tera, de limpos penſamentos
Piloto, munições, & mantimentos.

Isto diſſe, & nas agoas ſe eſcondia,
O filho de Latona, & o menſageiro
Co a embaixada alegre ſe partia
Pera a frota, no ſeu batel ligeiro:
Enchem ſe os peitos todos de alegria,
Por terem o remedio verdadeiro,
Pera acharem a terra que buſcauão,
E aſsi ledos a noite feſtejauão.

Não faltão ali os rayos de arteficio,
Os tremulos Cometas imitando,
Fazem os Bombardeiros ſeu officio:
O ceo, a terra, & as ondas atroando.
Moſtraſe dos Cyclopas o exercicio,
Nas bombas que de fogo estão queimando,
Outros com vozes, com que o Ceo ferião.
Inſtrumentos altiſſonos tangião.

Respondem lhe da terra juntamente,
Co rayo volteando, com zonido,
Anda em giros no ar a roda ardente,
Estoura o po ſulfureo eſcondido:
A grita ſe aleuanta ao Ceo, da gente,
O Mar ſe via em fogos acendido:
E não menos a terra, & aſsi feſteja
Hum ao outro a maneira de peleja.

Mas ja o Ceo inquieto reuoluendo,
As gentes incitaua a ſeu trabalho,
E ja a mãy de Menon a luz trazendo,
Ao ſono longo punha certo atalho:
Hião ſe as ſombras lentas desfazendo,
Sobre as flores da terra, em frio orualho,
Quando o Rei Milindano ſe embarcaua
A ver a frota que no mar estaua.

Vião ſe em derredor feruer as prayas
Da gente, que a ver ſo concorre leda,
Luzem da fina purpura as cabaias,
Lustrão os panos da tecida ſeda:
Em lugar de guerreiras a zagaias
E do arco, que os cornos arremeda
Da Lũa, trazem ramos de Palmeira,
Dos que vencem coroa verdadeira.

Hum batel grande & largo, que toldado
Venha de ſedas de diuerſas cores,
Traz o Rei de Melinde, acompanhado
De nobres de ſeu Reino, & de ſenhores:
Vem de ricos veſtidos adornado,
Segundo ſeus costumes, & primores.
Na cabeça hũa fota guarnecida,
De ouro, & de ſeda, & de algodão tecida.

Cabaya de Damaſco rico, & dino,
Da Tiria cor, entre elles eſtimada,
Hum colar ao peſcoço de ouro fino,
Onde a materia da obra he ſuperada,
Cum reſplandor reluze Adamantino,
Na cinta, a rica adaga bem laurada.
Nas alparcas dos pês, em fim de tudo,
Cobrem, ouro & aljofar ao veludo.

Com hum redondo emparo alto de ſeda,
Nũa alta & dourada astea enxerido,
Hum miniſtro aa ſolar quentura veda,
Que não offenda & queime o Rei ſubido:
Muſica traz na proa, eſtranha & leda,
De aſpero ſom, horriſsimo ao ouuido:
De trombetas arcadas em redondo,
Que ſem concerto fazem rudo estrondo.

Não menos guarnecido o Luſitano,
Nos ſeus bateis da frota ſe partia,
A receber no mar o Melindano,
Com luſtroſa & honrada companhia:
Vestido o Gama vem ao modo Hispano:
Mas Franceſa era a roupa que veſtia,
De cetim da Adriatica Veneza,
Carmeſi, cor que a gente tanto preza.

De botões douro as mangas vem tomadas,
Onde o Sol reluzindo a viſta cega:
As calças ſoldadeſcas recamadas,
Do metal que Fortuna a tantos nega,
E com pontas do meſmo delicadas,
Os golpes do gibão ajunta, & achega:
Ao Italico modo a aurea eſpada,
Pruma na gorra, hum pouco diclinada.

Nos de ſua companhia ſe moſtraua,
Da tinta que dà o Mûrice excelente,
A varia cor, que os olhos alegraua,
E a maneira do trajo diferente:
Tal o fermoſo eſmalte ſe notaua,
Dos veſtidos olhados juntamente:
Qual aparece o arco rutilante,
Da bella Nimpha filha de Thaumante.

Sonoroſas trombetas incitauão,
Os animos alegres reſoando,
Dos Mouros os bateis o Mar co lhauão,
Os toldos pelas agoas arrojando:
As bombardas horriſſonas bramando,
Com as nuuẽs de fumo o Sol tomando,
Ameudam ſe os brados acendidos,
Tapão com as mãos os Mouros os ouuidos.

Ia no batel entrou do Capitão
O Rei, que nos ſeus braços o leuaua,
Elle coa corteſia, que a razão
(Por ſer Rei) requeria, lhe fallaua.
Cũas moſtras de eſpanto, & admiração,
O Mouro o geſto, & o modo lhe notoua,
Como quem em muy grande estima tinha,
Gente que de tam longe à India vinha.

E com grandes palauras lhe offereçe,
Tudo o que de ſeus Reinos lhe compriſſe,
E que ſe mantimento lhe falleçe,
Como ſe proprio foſſe lho pediſſe:
Diz lhe mais, que por fama bem conheçe
A gente Luſitana, ſem que a viſſe.
Que ja ouuio dizer, que noutra terra
Com gente de ſua ley tiueſſe guerra.

E como por toda Affrica ſe ſoa,
Lhe diz, os grandes feitos que fizerão,
Quando nella ganharão a coroa
Do Reino, onde as Hesperidas viuerão:
E com muitas palauras apregoa,
O menos que os de Luſo merecerão:
E o mais que pela fama o Rei ſabia:
Mas deſta ſorte o Gama reſpondia.

O tu que ſo tiueste piedade,
Rei benigno, da gente Luſitana,
Que com tanta miſeria, & aduerſidade,
Doe mares experimenta a furia inſana.
Aquella alta, & diuina eternidade,
Que o Ceo reuolue, & rege a gente humana:
Pois que de ti tais obras reçebemos,
Te pague o que nos outros não pedemos.

Tu ſo de todos quantos queima Apolo,
Nos recebes em paz do Mar profundo
Em ti, dos ventos horridos de Eolo,
Refugio achamos bom, fido, & jocundo.
Em quanto apacentar o largo Polo,
As Eſtrellas, & o Sol der lume ao Mundo,
Onde quer que eu viuer, com fama & gloria,
Viuirão teus louuores em memoria.

Isto dizendo, os barcos vão remando,
Pera a frota, que o Mouro ver deſeja,,
Vão as naos, hũa & hũa rodeando,
Porque de todas tudo note, & veja:
Mas pera o Ceo Vulcano fuzilando,
A frota co as bombardas o feſteja,
E as trombetas canoras lhe tangião,
Cos anafis os Mouros reſpondião.

Mas deſpois de ſer tudo ja notado,
Do generoſo Mouro, que paſmaua,
Ouuindo o inſtrumento inuſitado,
Que tamanho terror em ſi moſtraua,
Mandaua estar quieto, & ancorado,
Nagoa o batel ligeiro que as leuaua,
Por fallar de vagar co forte Gama,
Nas couſas de que tem noticla, & fama.

Em praticas o Mouro diferentes,
Se deleitaua, perguntando agora,
Pelas guerras famoſas & excelentes,
Co pouo áuidas, que a Mafoma adora:
Agora lhe pergunta pelas gentes
De toda a Hispheria vltima, onde mora:
Agora pelos pouos ſeus vezinhos,
Agora pelos humidos caminhos.

Mas antes valeroſo Capitão,
Nos conta, lhe dezia, diligente,
Da terra tua o clima, & região
Do Mundo onde morais diſtintamente,
E aſsi de voſſa antiga geração,
E o principio do Reino tam potente:
Cos ſucceſſos das guerras do começo,
Que ſem ſabellas, ſey que ſam de preço.

E aſsi tambem nos conta dos rodeios
Longos, em que te traz o Mar yrado,
Vendo os coſtumes barbaros alheios,
Que a noſſa Affrica ruda tem criado
Conta: que agora vem cos aureos freios,
Os cauallos que o carro marchetado,
Do nouo Sol, da fria Aurora trazem,
O Vento dorme, o Mar & as ondas jazem.

E não menos co tempo ſe pareçe,
O deſejo de ouuirte o que contares,
Que quem ha, que por fama não conheçe
As obras Portugueſas ſingulares:
Não tanto deſuiado reſplandeçe,
De nos o claro Sol, pera julgares.
Que os Melindanos tem tam rudo peito,
Que não eſtimem muito hum grande feito.

Cometerão ſoberbos os Gigantes,
Com guerra vão, o olimpo claro, & puro,
Tentou Peritho, & Theſeu, de ignorantes,
O Reino de Plutão horrendo & eſcuro,
Se ouue feitos no mundo tam poſſantes,
Não menos he trabalho illuſtre, & duro,
Quanto foi cometer Inferno, & Ceo,
Que outrem cometa a furia de Nereo.

Queimou o ſagrado templo de Diana,
Do ſutil Teſifonio fabricado,
Horoſtrato, por ſer da gente humana
Conhecido no mundo, & nomeado:
Se tambem com tais obras nos engana,
O deſejo de hum nome auentajado.
Mais razão ha que queira eterna gloria
Quem faz obras tam dignas de memoria.

Fim.




Canto Terceiro


Agora tu Caliope me enſina,
O que contou ao Rei, o illustre Gama:
Inſpira immortal canto, & voz diuina,
Neſte peito mortal, que tanto te ama.
Aſsi o claro inuentor da Medicina,
De quem Orpheo pariſte, o linda Dama:
Nunca por Daphne, Clicie, ou Leucothôe
Te negue o Amor diuido, como ſoe.

Poem tu Nimfa em effeito meu deſejo,
Como mereçe a gente Luſitana,
Que veja & ſaiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre & mana,
Deixa as flores de Pindo, que ja vejo
Banharme Apolo na agoa ſoberana.
Senão direy, que tẽs algum receio,
Que ſe eſcureça o teu querido Orpheio.

Promptos eſtauão todos eſcuitando,
O que o ſublime Gama contaria
Quando, deſpois de hum pouco eſtar cuidãdo,
Aleuantando o roſto, aſsi dizia:
Mandas me, o Rei, que conte declarando,
De minha gente a grão geanaloſia:
Não me manda contar eſtranha hiſtoria:
Mas mandas me louuar dos meus a gloria.

Que outrem poſſa louuar esforço alheio,
Couſa he que ſe coſtuma, & ſe deſeja:
Mas louuar os meus proprios, arreceio,
Que louuor tão ſospeito mal me esteja,
E pera dizer tudo, temo & creio,
Que qualquer longo tempo curto ſeja:
Mas pois o mandas, tudo ſe te deue,
Irey contra o que deuo, & ſerey breue.

Alem diſſo, o que a tudo em fim me obriga,
He não poder mentir no que diſſer,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me ha de ficar inda por dizer:
Mas perque nisto a ordem leue & ſiga,
Segundo o que deſejas de ſaber.
Primeiro tratarey da larga terra,
Deſpois direy da ſanguinoſa guerra.

Entre a Zona que o Cancro ſenhorea,
Meta Septentrional do Sol luzente,
E aquella, que por fria ſe arrecea
Tanto, como a do meyo por ardente,
Iaz a ſoberba Europa, a quem rodea,
Pela parte do Arcturo, & do Occidente:
Com ſuas ſalſas ondas o Occeano,
E pela Auſtral, o Mar Mediterrano.

Da parte donde o dia vem naſcendo,
Com Aſia ſe auizinha: mas o Rio
Que dos montes Rifeios vay correndo,
Na alagoa Meotis, curuo & frio
As diuide: & o Mar, que fero & horrendo
Vio dos Gregos o yrado ſenhorio:
Onde agora de Troia triumfante,
Não vê mais que a memoria o nauegante.

La onde mais debaxo està do Polo,
Os montes Hyperboreos aparecem,
E aquelles onde ſempre ſopra Eolo,
E co nome do ſopros, ſe ennobrecem,
Aqui tam pouca força tem de Apolo,
Os rayos que no mundo reſplandecem.
Que a neue eſtà contino pelos montes,
Gelado o mar, geladas ſempre as fontes.

Aqui dos Cytas, grande quantidade
Viuem, que antigamente grande guerra
Tiuerão, ſobre a humana antiguidade,
Cos que tinhão antão a Egipcia terra:
Mas quem tão fera estaua da verdade,
(Ia que o juyzo humano tanto erra:)
Pera que do mais certo ſe informàra,
Ao campo Damaſceno o perguntàra.

Agora neſtas partes ſe nomea,
A Lapia fria, a inculta Noruega,
Eſcandinauia Ilha, que ſe arrea,
Das victorias que Italia não lhe nega
Aqui, em quanto as agoas não refrea,
O congelado Inuerno, ſe nauega.
Hum braço do Sarmatico Occeoano,
Pelo Bruſio, Suecio, & frio Dano.

Entre eſte Mar, & o Tanais viue eſtranha
Gente, Ruthenos, Moſcos, & Liuonios,
Sarmatas outro tempo, & na montanha
Hircinia, os Marcomanos ſam Polonios
Sugeitos ao Imperio de Alemanha,
Sam Saxones, Boemios, & Panonios,
E outras varias nações, que o Reno frio
Laua, & o Danubio, Amaſis, & Albis Rio.

Entre o remoto Iſtro, & o claro eſtreito,
Aonde Hele deixou, co nome, a vida,
Estão os Traces de robuſto peito,
Do fero Marte, patria tam querida,
Onde co Hemo, o Rodope ſugeito
Ao Otomano està, que ſometida,
Bizancio tem a ſeu ſeruiço indino,
Boa injuria do grande Coſtantino.

Logo de Macedonia eſtão as gentes,
A quem laua do Axio a agoa fria:
E vos tamhem, o terras excelentes,
Nos coſtumes, engenhos, & ouſadia,
Que criaſtes os peitos eloquentes,
E os juizos de alta fantaſia:
Com quem tu clara Grecia o Ceo penetras,
E não menos por armas, que por letras.

Logo os Dalmatas viuem, & no ſeio,
Onde Antenor ja muros leuantou,
A ſoberba Veneza eſtâ no meio
Das agoas, que tam baxa começou
Da terra, hum braço vem ao mar, que cheio
De esforço, nações varias ſogeitou,
Braço forte, de gente ſublimada,
Não menos nos engenhos que na eſpada.

Em torno o cerca o Reino Neptunino,
Cos muros naturais, por outra parte,
Pela meyo o diuide o Apinino,
Que tam illuſtre fez o patrio Marte:
Mas deſpois que o porteiro tem diuino,
Perdendo o esforço veio, & bellica arte:
Pobre eſtà ja de antiga poteſtade,
Tanto Deos ſe contenta de humildade.

Galia ali ſe verà, que nomeada,
Cos Ceſareos Triumfos foy no mundo,
Que do Sequana, & Rôdano he regada,
E do Garuna frio, & Reno fundo:
Logo os montes da Nimpha ſepultada
Pyrene ſe aleuantão, que ſegundo
Antiguidades contão, quando arderão,
Rios de ouro, & de prata antão corrèrão.

Eis aqui ſe deſcobre a nobre Eſpanha,
Como cabeça ali de Europa toda,
Em cujo ſenhorio & gloria eſtranha,
Muitas voltas tem dado a fatal roda:
Mas nunca poderà, com força, ou manha,
A fortuna inquieta porlhe noda:
Que lha não tire o esforço & ouſadia,
Dos belicoſos peitos, que em ſi cria.

Com Tingitania enteſta, & ali parece
Que quer fechar o mar Mediterrano,
Onde o ſabido estreito ſe ennobrece,
Co extremo trabalho do Thebano:
Com nações differentes ſe engrandece,
Cercadas com as ondas do Occeano.
Todas de tal nobreza, & tal valor,
Que qualquer dellas cuida que he milhor.

Tem o Tarragones, que ſe fez claro,
Sujeitando Partênope inquieta,
O Nauarro, as Aſturias, que reparo
Ia forão, contra a gente Mohometa,
Tem o Galego cauto, & o grande & raro
Caſtelhano, a quem fez o ſeu Planeta,
Restituidor de Eſpanha, & ſenhor della,
Bethis, Lião, Granada, com Castella.

Eis aqui quaſi cume da cabeça,
De Europa toda, o Reino Luſitano,
Onde a Terra ſe acaba, & o Mar começa,
E onde Febo repouſa no Occeano:
Eſte quis o Ceo juſto, que ſloreça
Nas armas, contra o torpe Mauritano,
Deitando o de ſi fora, & la na ardente
Affrica eſtar quieto o nam conſente.

Eſta he a ditoſa patria minha amada,
Aa qual ſe o Ceo me da, que eu ſem perigo
Torne, com eſta empreſa ja acabada,
Acabeſe eſta luz ali comigo.
Eſta foy Luſitania diriuada,
De Luſo, ou Lyſa: que de Bacho antigo,
Filhos forão pareçe, ou companheiros,
E nella antam os Incolas primeiros.

Desta o Paſtor naſceo, que no ſeu nome
Se ve, que de homem forte os feitos teue,
Cuja fama, ninguem virà que dome,
Pois a grande de Roma não ſe atreue:
Eſta, o velho que os filhos proprios come,
Por decreto do, Ceo ligeiro, & leue,
Veo a fazer no mundo tanta parte,
Criando a Reino illuſtre, & foi deſta arte.

Hum Rei, por nome Affonſo, foy na Eſpanha,
Que fez aos Sarracenos tanta guerra,
Que por armas ſanguinas, força & manha
A muitos fez perder a vida, & a terra:
Voando deſte Rei a fama eſtranha,
Do Herculano Calpe aa Caſpia ſerra,
Muitos, pera na guerra eſclarecerſe,
Vinhão a elle, & aa morte offerecerſe.

E com hum amor intrinſeco acendidos
Da Fè, mais que das honras populares,
Erão de varias terras conduzidos,
Deixando a patria amada, & proprios lares
Deſpois que em feitos altos & ſubidos.
Se moſtrarão nas armas ſingulares.
Quis o famoſo Affonſo, que obras tais,
Leuaſſem premio digno, & dões agoais.

Deſtes Anrique dizem que ſegundo,
Filho de hum Rei de Vngria exprimentado,
Portugal ouue em ſorte, que no Mundo
Entam não era illuſtre, nem prezado:
E pera mais ſinal damor profundo,
Quis o Rei Caſtelhano, que caſado,
Com Tereſa ſua filha o Conde foſſe,
E com ella das terras tomou poſſe.

Eſte deſpois que contra os deſcendentes,
Da eſcraua Agar, victorias grandes teue,
Ganhando muitas terras adjacentes,
Fazendo o que a ſeu forte peito deue.
Em premio destes feitos excellentes,
Deulhe o ſupremo Deos, em tempo breue,
Hum filho, que illuſtraſſe o nome vfano
Do belicoſo Reino Luſitano.

Ia tinha vindo Anrique da conquista,
Da cidade Hyeroſolima ſagrada,
E do Iordão a area tinha vista,
Que vio de Deos a carne em ſi lauada,
Que não tendo Gotfredo a quem reſiſta,
Depois de ter Iudea ſojugada.
Muitos que nestas guerras o ajudárão,
Pera ſeus ſenhorios ſe tornàrão.

Quando chegado ao fim de ſua idade,
O forte & famoſo Vngaro estremado,
Forçado da fatal neceſsidade,
O ſpirito deu, a quem lho tinha dado:
Ficaua o filho em tenra mocidade,
Em quem o pay deixaua ſeu traſlado:
Que do Mundo os mais fortes igualaua,
Que de tal pay tal filho ſe eſperaua.

Mas o velho rumor, não ſey ſe errado,
Que em tanta antiguidade não ha certeza,
Conta que a mãy tomando todo o eſtado
Do ſegundo Hymeneo, não ſe despreza:
O filho orfão deixaua deſerdado,
Dizendo que nas terras, a grandeza
Do ſenhorio todo, ſo ſua era,
Porque pera caſar ſeu pay lhas dera.

Mas o Principe Affonſo, que deſta arte
Se chamaua, do Auô tomando o nome,
Vendoſe em ſuas terras não ter parte,
Que a mãy com ſeu marido as mãda & come,
Feruendo lhe no peito o duro Marte,
Imagina conſigo como as tome.
Reuoluidas as cauſas no conceito,
Ao propoſito firme ſegue o effeito.

De Guimarães o campo ſe tingia,
Co ſangue proprio da intestina guerra,
Onde a mãy que tam pouco o perecia,
A ſeu filho negaua o amor, & a terra,
Co elle posta em campo ja ſe via,
E não ve a ſoberba, o muito que erra.
Contra Deos, contra o maternal amor:
Mas nella o ſenſual era maior.

O Progne crua, o magica Medea,
Se em voſſos proprios filhos vos vingais
Da maldade dos pais, da culpa alheia,
Olhay que inda Tereſa peca mais:
Incontinencia ma, cubiça fea,
São as cauſas deste erro principais.
Scilla por hũa mata o velho pay,
Eſta por ambas, contra o filho vay.

Mas ja o Principe claro, o vencimento,
Do padrasto & da inica mãy leuaua,
Ia lhe obedece a terra num momento,
Que primeiro contra elle pelejaua.
Porem vencido de Ira o entendimento,
A mãy em ferros aſperos ataua:
Mas de Deos foi vingada em tempo breue,
Tanta veneração aos pais ſe deue.

Eis ſe ajunta o ſoberbo Castelhano,
Pera vingar a injuria de Tereja,
Contra o tam raro em gente Luſitano,
A quem nenhum trabalho agraua, ou peſa:
Em batalha cruel, o peito humano,
Ajudado da Angelica defeſa.
Não ſo contra tal furia ſe ſuſtenta:
Mas o inimigo aſperrimo affugenta.

Não paſſa muito tempo, quando o forte
Principe, em Guimarães eſta cercado,
De infinito poder, que deſta ſorte,
Foy refazerſe o immigo magoado:
Mas com ſe offerecer aa dura morte,
O fiel Egas amo, foy liurado.
Que de outra arte podêra ſer perdido,
Segundo estaua mal aperçebido.

Mas o leal vaſſallo conhecendo,
Que ſeu ſenhor não tinha reſiſtencia,
Se vay ao Caſtelhano, prometendo,
Que elle faria darlhe obediencia.
Leuanta o inimigo o cerco horrendo,
Fiado na promeſſa, & conſciencia
De Egas moniz mas não conſente o peito
Do moço illuſlre, a outrem ſer ſogeito.

Chegado tinha o prazo prometido,
Em que o Rei Castelhano ja agoardaua,
Que o Principe a ſeu mando ſometido,
Lhe deſſe a obediencia que eſperaua.
Vendo Egas, que ficaua fementido,
O que delle Caſtella não cuydaua,
Determina de dar a doçe vida,
A troco da palaura mal comprida.

E com ſeus filhos & molher ſe parte,
A aleuantar co elles a fiança,
Deſcalços, & deſpidos, de tal arte,
Que mais moue a piedade que a vingança.
Se pretendes Rei alto de vingarte,
De minha temeraria confiança,
Dizia, eis aqui venho offerecido,
A te pagar co a vida o prometido.

Ves aqui trago as vidas inocentes,
Dos filhos ſem peccado, & da conſorte,
Se a peitos generoſos, & excellentes,
Dos fracos ſatisfaz a fera morte.
Ves aqui as mãos, & a lingoa delinquentes,
Nellas ſos exprimenta, toda ſorte
De tormentos, de mortes, pelo eſtillo
De Scinis, & do touro de Perillo.

Qual diante do algoz o condenado,
Que ja na vido a morte tem bebido,
Poem no çepo a garganta: & ja entregado,
Eſpera pelo golpe tam temido:
Tal diante do Principe indinado,
Egas eſtaua a tudo offerecido:
Mas o Rei vendo a eſtranha lealdade,
Mais pode em fim que a Ira a Piedade.

O grão fidelidade Portugueſa,
De vaſſallo, que a tanto ſe obrigaua,
Que mais o Perſa fez naquella empreſa,
Onde roſto & narizes ſe cortaua,
Do que ao grande Dario tanto peſa,
Que mil vezes dizendo ſuspiraua.
Que mais o ſeu Zopiro ſão prezâra,
Que vinte Babilonias que tomàra

Mas ja o Principe Affonſo aparelhaua,
O Luſitano exercito ditoſo,
Contra o Mouro que as terras habitaua,
Dalem do claro Tejo deleitoſo:
Ia no campo de Ourique ſe aſſentaua,
O arraial ſoberbo, & belicoſo:
Defronte do inimigo Sarraceno,
Poſto que em força, & gente tam pequeno.

Em nenhũa outra couſa confiado,
Senão no ſummo Deos, que o Ceo regia,
Que tam pouco era o pouo bautizado,
Que pera hum ſo cem Mouros aueria.
Iulga qualquer juyzo ſoſſegado,
Por mais temeridade que ouſadia,
Cometer hum tamanho ajuntamento,
Que pera hum caualleiro ouueſſe cento.

Cinco Reis Mouros ſam os inimigos,
Dos quaes o principal Ismar ſe chama,
Todos exprimentados nos perigos
Da guerra, onde ſe alcança a illuſtre fama:
Seguem guerreiras Damas ſeus amigos,
Imitando a fermoſa & forte Dama,
De quem tanto os Troyanos ſe ajudârão,
E as que o Termodonte ja goſtârão.

A matutina luz ſerena, & fria,
As Estrellas do Pollo ja apartaua,
Quando na Cruz o Filho de Maria,
Amoſtrando ſe a Affonſo o animaua:
Elle adorando quem lhe aparecia,
Na Fê todo inflamado aſsi gritaua.
Aos infieis Senhor, aos infieis,
E não a my que creio o que podeis.

Com tal milagre, os animos da gente
Portugueſa, inflamados leuantauão,
Por ſeu Rei natural, eſte excelente
Principe, que do peito tanto amauão:
E diante do exercito potente,
Dos imigos, gritando o ceo tocauão:
Dizendo em alta voz, real, real,
Por Affonſo alto Rei de Portugal.

Qoal cos gritos & vozes incitado,
Pola montanha o rabido Moloſo,
Contra o Touro remete, que fiado
Na força eſtà do corno temeroſo:
Ora pega na orelha, ora no lado,
Latindo mais ligeiro que forçoſo,
Ate que em fim rompendolhe a garganta,
Do brauo a força horrenda ſe quebranta.

Tal do Rei nouo, o eſtamago acendido,
Por Deos & polo pouo juntamente,
O barbaro comete apercebido,
Co animoſo exercito rompente:
Leuantão nisto os perros o alarido
Dos gritos, tocam a arma, ſerue a gente,
As lanças & arcos tomão, tubas ſoão,
Inſtromentos de guerra tudo atroão.

Bem como quando a flama que ateada,
Foi nos aridos campos (aſoprando
O ſibilante Boreas) animada
Co vento, o ſeco mato vay queimando:
A paſtoral companha, que deitada,
Co doçe ſono estaua, deſpertando,
Ao eſtridor do fogo que ſe atea,
Recolhe o fato, & ſoge pera a aldea.

Deſta arte o Mouro atonito & toruado,
Toma ſem tento as armas muy depreſſa,
Não foge: mas eſpera confiado,
E o ginete belligero arremeſſa:
O Portugues o encontra denodado,
Pelos peitos as lanças lhe atraueſſa.
Hũs caem meios mortos, & outros vão
A ajuda conuocando do Alcorão.

Ali ſe vem encontros temeroſos,
Pera ſe desfazer hũa alta ſerra,
E os animais correndo furioſos,
Que Neptuno amoſtrou ferindo a terra:
Golpes ſe dão medonhos, & forçoſos,
Por toda a parte andaua aceſa a guerra:
Mas o de Luſo, arnes, couraça & malha,
Rompe, corta, desfaz, a bola & talha.

Cabeças pelo campo vão ſaltando,
Braços, pernas, ſem dono & ſem ſentido,
E doutros as entranhas palpitando,
Palida a cor, o geſto amortecido:
Ia perde o campo o exercito nefando,
Correm rios do ſangue deſparzido
Com que tambem do campo a cor ſe perde
Tornado Carmeſi de branco & verde.

Ia fica vencedor o Luſitano
Recolhendo os trofeos & preſa rica,
Desbaratado & roto o Mauro Hispano,
Tres dias o gram Rei no campo fica:
Aqui pinta no branco eſcudo vfano,
Que agora esta victoria certifica:
Cinco escudos azues eſclarecidos,
Em ſinal destes cinco Reis vencidos.

E neſtes cinco eſcudos pinta os trinta
Dinheiros, porque Deos fora vendido,
Eſcreuendo a memoria em varia tinta,
Daquelle de quem foy fauorecido,
Em cada hum dos cinco, cinco pinta,
Porque aſsi fica o numero comprido:
Contando duas vezes o do meio,
Dos cinco azues que em Cruz pintando veio.

Paſſado ja algum tempo, que paſſada
Era esta grão victoria, o Rei ſubido
A tomar vay Leiria, que tomada
Fora muy pouco auia, do vencido:
Com eſta a forte Arronches ſojugada
Foy juntamente: & o ſempre ennobrecido
Scabelicaſtro, cujo campo ameno,
Tu claro Tejo regas tam ſereno.

A eſtas nobres villas ſometidas,
Ajunta tambem Mafra, em pouco eſpaço,
E nas ſerras da Lua conhecidas,
Sojuga a ſria Sintra, o duro braço,
Sintra onde as Naiades eſcondidas
Nas fontes, vão fugindo ao doçe laço:
Onde Amor as enreda brandameme,
Nas agoas acendendo fogo ardente.

E tu nobre Lisboa, que no Mundo,
Facilmente das outras es princeſa,
Que edificada foſte do facundo,
Por cujo engano foy Dardania aceſa:
Tu a quem obedece o Mar profundo,
Obedeceste aa força Portugueſa.
Ajudada tambem da forte armada,
Que das Boreais partes foy mandada.

La do Germanico Albis, & do Reno,
E da fria Bretanha conduzidos,
A destruir o pouo Sarraceno,
Muitos com tenção ſancta erão partidos,
Entrando a bocaja, do Tejo ameno,
Co arrayal do grande Affonſo vnidos.
Cuja alta fama antão ſubia aos ceos,
Foy posto cerco aos muros Vliſſeos.

Cinco vezes a Lũa ſe eſcondêra,
E outras tantas moſtrâra cheio o rosto,
Quando a Cidade entrada ſe rendêra,
Ao duro cerco, que lhe eſtaua poſto.
Foy a batalha tam ſanguina & fera,
Quanto obrigaua o firme proſupoſto:
De vencedores aſperos, & ouſados,
E de vencidos, ja deſesperados.

Deſta arte em fim tomada ſe rendeo,
Aquella que nos tempos ja paſſados
Aa grande força nunca obedeceo,
Dos frios pouos Sciticos ouſados:
Cujo poder a tanto ſe estendeo,
Que o Ibero o vio, & o Tejo amedrontados.
E em fim co Betis tanto algum podêrão,
Que aa terra do Vandalia nome dèrão.

Que cidade tam forte, por ventura





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